domingo, 29 de dezembro de 2013

De esquerda. Mas só se for com o dinheiro dos outros

Estou há uns 10 dias em um giro pelo sudeste do Brasil. Aproveitei o recesso natalino para visitar pessoas queridas. Já passei por São Paulo/SP, Piracicaba/SP, São José dos Campos/SP, Volta Redonda/RJ, Ipatinga/MG, hoje vou para Timóteo/MG e ainda passo pelo Rio e mais uma vez por São Paulo antes de voltar ao batente. Desnecessário dizer o quanto a viagem tem sido agradável: amigos, família, comilança, maratonas etílicas, etc.

Mas uma coisa me chamou muita atenção aqui no "sudeste maravilha": a explosão do discurso "classe média sofre" e suas variantes. Eu sei que essa conversa sempre existiu, e eu a escuto desde 1972, quando vim parar neste planeta. Mas me surpreendeu muito ver várias pessoas com um impecável histórico esquerdista (que eu mesmo posso atestar)adotando essa linha argumentativa. Aí fica uma coisa meio assim: "legais as políticas sociais do governo. mas a gente que tem de pagar?".

Exatamente: é a gente que tem de pagar, porra! Se não for a gente quem vai? Lamento informar, mas sem nossos impostos nenhuma das ações governamentais que melhoraram a vida de tanta gente teria existido. Naturalmente existe uma opção: maneirar nos impostos e também nas políticas sociais, acreditando que os mais pobres conseguirão se virar assim mesmo. Tudo bem, maior apoio. Mas essa é a visão da direita, né? Não dá pra defender algo assim e se dizer sequer progressista, o que dirá de esquerda.

A propósito, podemos começar a parar de repetir aquela tolice de que ninguém paga mais impostos que o brasileiro. Simplesmente não é verdade. Essa ideia repetida acriticamente por tanta gente, nada mais é do que uma manipulação estatística (veja aqui http://novascartaspersas.wordpress.com/2013/12/27/mitos-economicos-brasileiros-mito-2-o-brasil-tem-uma-carga-tributaria-muito-elevada/). Na verdade o Brasil fica lá pela metade do ranking dos países com maior carga tributária líquida.

Isso posto, achei excelente o aumento do IOF anunciado ontem. Viajar para o exterior não é necessidade, é uma opção para os que podem mais. Taxar essas pessoas é uma política de esquerda. Assim como a proposta de Fernando Haddad de aumentar o IPTU dos que tem mais e diminuir para os que tem menos. Tudo isso parte de um princípio consagrado da esquerda: usar o dinheiro dos que tem mais para financiar os que tem menos.

Claro que a direita odeia esse tipo de coisa, que vai contra tudo o que ela acredita. Direita não quer saber de imposto justamente porque odeia distribuição de renda. Sua postura nesse quesito é coerente. Agora, se você é de classe média, se diz de esquerda e é contra esse tipo de política, só vejo duas opções: 1) você não entendeu NADA; 2) Voce gosta de políticas sociais, mas só se elas forem pagas por outros, que eu não faço ideia de quem poderiam ser.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Mandela x Mandela x Mandela...


A morte de Nelson Mandela provocou uma onda de luto mundo afora. Ou ao menos no Brasil. Ou ao menos no meu facebook. Pelo que entendi, salvo um par de idiotas que a Veja mantém na sua folha de pagamento para gerar pageviews, comentários e compartilhamentos graças a seus textos patéticos, todo mundo parece amar Mandela e lamentar a sua morte.

É algo que merece reflexão. Com meus melhores professores da universidade aprendi algo que levarei pelo resto da vida: não existe unanimidade. No máximo existem falsas unanimidades. Que consistem em milhões de pessoas falando a mesma coisa, mas pensando em coisas totalmente diferentes. É exatamente o que vejo no caso em questão.

Meus amigos de direita estão tristes com a morte do Mandela. Que para eles é alguém que passou décadas na prisão de forma injusta (nem uma palavra sobre como ele foi parar lá) lutando por um valor que, teoricamente, deveria ser universal (a luta contra o racismo), e ao chegar ao poder promoveu uma grande conciliação entre brancos e negros. Como sabemos, a direita adora consensos. Para ela, Mandela é um herói consensual. Talvez seja por isso que não falam das suas controversas políticas de cunho neoliberal. Melhor ficar naquilo com que todos podem se identificar.

O Mandela pelo qual a esquerda chora é outro. É um líder armado de um povo oprimido por razões absurdas, vítima de um sistema de dominação, deplorado até o fim por gente como Reagan e Thatcher. E simpático a outros líderes da esquerda terceiro mundista, como Fidel Castro. O Mandela da esquerda não tem nada de conciliador, sendo muito mais um insurgente contra os privilégios.

Vou ser sincero: reconheço tranquilamente os dois Mandelas em questão. Ambos existiram. Simpatizo muito mais com o segundo, mas o primeiro não tem nada de falso, muito pelo contrário. O que nos lembra mais uma vez o mantra dos meus melhores professores: a unanimidade não é burra. Simplesmente porque ela não existe. Por mais que as aparências tendam a mostrar que sim, o mundo real grita que não.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Direita e esquerda

Este post é motivado por debates com meus alunos. Sempre eles. Sempre me incomodando com perguntas. Sempre me fazendo pensar e aprender. Num minuto estou falando do processo de modernização latino-americano no século XIX. No outro estou num debate puxado pelos alunos sobre o que é ser de direita e esquerda na América Latina de hoje...

O que disse a eles foi: só é difícil definir direita e esquerda se você tiver a cabeça fixa num manual. Aí fica dificil mesmo. Aí a América Latina não tem direita, centro, esquerda, liberalismo, neoliberalismo, social-democracia nem nada. Na verdade é exatamente isso o que pensam os bobões que gostam de babar pelo primeiro mundo. Como nenhuma dessas coisas existe aqui do mesmo jeito que no Atlântico Norte, acham simplesmente que estamos errados, que somos gentinha, etc. etc.

O que também ajuda a confundir é que termos como direita e esquerda mudam dependendo do contexto. Há as agendas específicas de um país ou região. Há as épocas também. E os contextos políticos: as mesmíssimas politicas sociais do governo FHC (cotas, benefícios para os mais pobres) foram ampliadas no governo do PT e hoje são odiados pela direita brasileira. Sem falar que também há equívocos conceituais muito difundidos, como achar que esquerda e socialismo são sinônimos.

Eu vejo esse tema da seguinte forma: direita e esquerda não existem no vácuo. Pelo contrário, se definem em termos relacionais. Ou seja, só se é de direita e de esquerda em relação a alguma coisa em algum determinado contexto. Por exemplo: se voce for alinhar as forças políticas existentes no Brasil de hoje, Dilma e o PT estarão do lado esquerdo. Então são de esquerda nesse cenário.

Pode parecer simples. E é mesmo. Mas quais são as alternativas? A principal, e infelizmente muito comum, é se manter preso a definições abstratas que nunca existiram em lugar nenhum. Aí fica assim: como Margaret Tatcher nasceu na Inglaterra não existe direita nem neoliberalismo no Brasil. Como Marx e Lenin também não nasceram aqui, não temos esquerda. Não temos nada, somos um país de merda, tudo isso por não nos encaixarmos em manuais que foram feitos pensando em outros países. Aí é dose.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Aprendendo a ter amigos


Este post, diferente do padrão geral do blog, não é sobre temas públicos, principalmente política. É algo bem pessoal. Quem não tiver nenhum interesse em saber o que penso sobre esse tipo de coisa, fique a vontade para não perder tempo. Para quem quiser seguir lendo aviso que os protagonistas do post estão na foto, tirada em 1990, quando íamos dançar valsa na festa de 15 anos (ai, ai, ai) na festa de uma querida amiga. Estou no centro. Zé, de óculos, à esquerda da foto. Brexola à direita.

O tema veio por uma sequencia de fatos. Os mais recentes: 1) Ontem jantei com meu velho amigo Zé, que não via ha alguns anos; 2) Acordei e vi esse texto absolutamente maravilhoso (http://anivelde.org/sorryperiferia/2013/11/25/andre.htm) sobre a morte de um amigo do autor. No auge da vida. O que evidentemente remeteu ao jantar de ontem, pois foi aí que me dei conta de que havia um sujeito oculto em toda a conversa: nosso amigo Brexola, com quem compunhamos o trio mais infernal e inseparável da Volta Redonda oitentista.

Brexola caiu morto no meio da rua em 2008. Não tinha nada. Estava com 35 anos, assim como eu. Recebi a noticia lá pelas 10 da noite. Minha lembrança seguinte é estar sentado nua rua a dois bairros de distancia do meu. Isso já eram mais de 7 da manhã. Ou seja: tive um black-out, o único da minha vida que não tinha relação com o consumo de álcool. Compreensível: aquilo era tão inaceitável que meu cérebro simplesmente não conseguia processar.

Ainda não conseguiu, na verdade. Nunca mais consegui conviver com as pessoas do grupo que fazíamos parte, que me acompanhou dos 6 aos 19 anos em absolutamente tudo. Caras que cresceram comigo, que vivenciaram comigo toda a experiência formativa para a vida adulta, os melhores amigos do universo. Não consegui manter contato com eles. Sem o Brexola não dava. Ir a Volta Redonda visitar minha família já é duro demais. Na casa dos meus pais eu vejo a rua em que brincávamos. Vejo o portão da casa dele, onde ele estava quando trocamos o primeiro olhar, ainda na década de 70. Não dá. Simplesmente não dá.

Mas ao que parece a vida está tentando dar um jeito de me fazer entender que é possível seguir em frente. Tenho tido a oportunidade de reencontrar pessoas de outras épocas que nem eram tão próximas, mas que após uma conversa viram amigas. O tempo nesses casos foi bem legal conosco: fez pequenas implicâncias parecerem tolas (o que sempre foram) e ressalta o que há em comum, até porque são pessoas que conheço há muito tempo, o que gera mais confiança. Houve até um caso de mudança radical. Uma conversa fez a pessoa que conheço há décadas simplesmente parecer outra. Em suma, perdemos pessoas mas ganhamos também. Até novos/velhos amigos aparecem.

Aí ontem saí com o Zé. Está em Recife para resolver alguns problemas e só tinha a oportunidade de um jantar comigo. Saímos, e na verdade conversamos bem pouco. Conheci a mulher e o filho dele, e dei mais atenção a eles. Ao chegar em casa entendi o que tinha acontecido. Quando voce está com quem é seu melhor amigo há mais de trinta anos, a conversa é completamente irrelevante. Não importam os anos sem se ver, onde você está, não importa nada. Importa a incomparável sensação de estar ao lado de alguém a quem você entregaria sua vida sem nenhum medo. Aquela sensação e tranquilidade e conforto que ninguém no mundo vai conseguir proporcionar.

Amigos vão e vem. Mas tem os que sempre estiveram e sempre estarão. Só falta providenciar um jeito de os membros de todas essas categorias de amigos não morrerem nunca.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Passando a régua: a prisão dos mensaleiros

Há uma semana quatro envolvidos no chamado mensalão foram mandados para a cadeia. Era um feriado de sexta-feira. Muita gente com tempo livre para postar o que quisesse. O facebook virou uma guerra. De um lado os que achavam que uma nova era começava. De outro, os que viam o domínio das trevas. E o clima se polarizou de tal maneira que eu sequer consegui postar nada no blog. Vamos tentar recomeçar.

Podemos começar pelo seguinte: houve crimes cometidos? Obviamente que sim. Ninguém em sã consciencia vai negar a culpa de gente como Delubio e Marcos Valério. E só os mais fanáticos defensores do governo vão negar que isso foi feito de forma institucional. A coisa aconteceu, e o fato de governos anteriores terem feito o mesmo não é desculpa.

Por outro lado, qualquer um que acredite na ideia dos tres poderes sabe que houve extrapolações absurdas nesse caso. José Genoíno jamais deveria ir para regime fechado, por motivos médicos que são indiscutíveis. José Dirceu foi condenado sem provas, baseado numa teoria que normalmente visa absolver gente que normalmente seria condenada (a "teoria do domínio do fato"), mas que foi utilizada no sentido oposto, como mostrou a Folha ( a Folha!) hoje. Não digo que ele é inocente, e acho que ele não é. Mas condenar alguém sem provas conclusivas é inaceitável.

O grande problema nisso tudo é aquilo que se pode descrever como uma completa loucura coletiva. Os que comemoram as prisões fazem isso baseados numa visão que poderia justificar linchamentos na luz do dia. Não gosto dessa gente do PT, todos são ladrões, cadeia neles. Quem é governista vai pelo outro lado: o Brasil vive uma ditadura midiática, da qual Dirceu e Genoíno foram parte, e viraram presos políticos (uma ditadura em que se vai para a cadeia por apoiar o governo? alo?)

O Brasil em que eu quero viver é um país em que criminosos vão para a cadeia. Não um em que corruptos tenham mão livre para roubar. Muito menos um em que acusações sejam sinal de culpa. Quero justiça, apenas isso. Pelo jeito, é pedir demais.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O que significa a prisão dos "mensaleiros"?

Muita gente comemorou a prisão de alguns dos principais envolvidos no chamado "mensalão". Se me perguntarem o que acho disso, minha resposta é: depende do que você está comemorando.

Se estamos comemorando o fato de pessoas envolvidas em ilegalidades serem presas, ok, nada a discutir. Não entendo lhufas de direito nem conheço o caso a fundo, mas tudo indica que eles eram culpados mesmo. Discutir isso é tolice.

Mas para por aí. Fora isso, não há nada a comemorar. Vi gente feliz achando que a indignação gerada pelo episódio indica algo como uma "tomada de consciência" da sociedade brasileira. Tolice. 99% das pessoas "indignadas" não passam de oposicionistas que estão se lixando para as roubalheiras de seu próprio partido. Ficam desesperados querendo a condenação dos mensaleiros, mas rezam para que ninguém fale nada sobre privataria, propinoduto e mensalão mineiro. Oportunismo puro. E tenho certeza de que 99% dos apoiadores do governo adotaria a mesma atitude numa situação inversa. Então esqueça: somos a mesma merda de sempre.

Também ouvi gente falando que a condenação mudaria o jeito de fazer política no Brasil. Aí, meu velho, o grau de ingenuidade atinge níveis estratosféricos. Significa que a pessoa não tem a mais vaga ideia de como funcionam as relações governo-congresso neste país.

Comecemos pelo seguinte. Nós, latino-americanos, temos uma visão extremamente personalista da política. Assim, achamos que presidentes, governadores e prefeitos são tudo o que importa. Nas eleições legislativas, votamos de qualquer jeito. Desafio qualquer quarentão a lembrar todos os seus votos em eleições parlamentares. Na verdade, sequer nos damos ao trabalho de tentar entender como funciona o sistema proporcional de escolha dos legisladores. Em suma: votamos de qualquer jeito.

Votando de qualquer jeito, elegemos todo o tipo de porcaria para o congresso. E como nem prestamos atenção no que eles fazem, os caras ficam livres. Uns dois terços dos deputados não tem ideologia ou projetos. Só quer levar algo em troca de apoiar o governo, seja ele qual for. Vale dizer: TODOS os governos pós-ditadura compraram maioria no congresso. TODOS. E não é porque sejam malvados. Simplesmente não havia opção.

Então é o seguinte: super válido comemorar o fato de os caras irem em cana. Mas se a gente não entender a importância do voto para deputado, estaremos produzindo uma infinidade de mensalões. O fim desse tipo de coisa não depende nem do STF nem de quem está no governo. Depende do nosso voto.

Volta Redonda, 1988: uma história para não ser esquecida


Um sinal que você está ficando velho é a existência de referenciais essenciais na sua vida que não fazem nenhum sentido para pessoas mais jovens que você. Esse é um desafio da minha profissão. Coisas que foram determinantes para a minha geração sequer são conhecidas pelos meus alunos. Um exemplo é a greve dos metalúrgicos de Volta Redonda.

Vivíamos um clima atribulado. Passamos anos tentando por fim a uma ditadura que ninguém aguentava mais. Ela acabou, mas muito dela seguia vivo. Para começar, o presidente Sarney havia nascido, crescido e engordado apoiando o odioso regime. Aquela segunda metade dos anos 80 de fato não agradava a ninguém.

Nesse contexto veio a greve dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional em 1988. Quem viveu aqueles anos nunca vai esquecer. Quem vivia em Volta Redonda ainda menos. Liderada pelo inesquecível Juarez Antunes, àquela altura um deputado federal constituinte, a categoria entrou em greve. Com o apoio da diretoria da empresa, Sarney mandou o exército "resolver o problema".

Mas era um período de extrema politização. A cidade inteira era simpática à causa dos metalúrgicos. Ao exército só sobrou uma alternativa: mandar bala. Mataram três trabalhadores. Não podíamos acreditar. Aqueles caras eram gente como a gente. Um deles tinha a minha idade. Pegava ônibus comigo para ir à escola, já que morava num bairro vizinho. Era inaceitável. Após 21 anos de ditadura vinha o exército matar nossos conterrâneos pelo simples fato de fazerem greve.

Foi algo tão absurdo que o Brasil inteiro deu seu recado dias depois. A 15/11/1988 a esquerda obteve vitórias retumbantes nas eleições para prefeito. Luiza Erundina conseguiu uma virada espetacular em São Paulo, e fatos semelhantes ocorriam pelo país afora. Aquela prática ditatorial em pleno processo de redemocratização parecia inaceitável a todos nós. E as urnas disseram isso. Ponto para nós.

Para o Brasil a história terminou aí. Para nós, voltarredondenses, a coisa iria mais longe. Naquele 15 de novembro elegemos Juarez Antunes para prefeito com uma votação absolutamente fora de propósito. Choramos sua morte em fevereiro do ano seguinte, num acidente de carro. E no 1o de maio seguinte fomos testemunhar a inauguração de um monumento, projetado por Oscar Niemeyer, em homenagem aos mortos da greve. E na madrugada seguinte o monumento explodiu. Ninguém sabe quem foi o responsável.

Em suma. Não bastava que nossa cidade tenha sido construída sobre a opressão dos nossos antepassados. Não é suficiente que o sindicato dos trabalhadores tenha sido calado pela ditadura. Foi pouco que o exército tenha aberto fogo sobre a população civil. A morte de três conterrâneos nossos que pecaram apenas por estar ao lado da greve não era o suficiente. Tinham de arrasar até a memória do que aconteceu.

E assim foi. Hoje Volta Redonda é apenas uma cidade do sul do estado do Rio de Janeiro. E a memória do que aconteceu há 25 anos é apenas uma vaguíssima lembrança. Afinal, a história é contada pelos vencedores. E como em TODOS os setores hegemônicos da nossa política há gente que apoiou aquela infâmia, melhor não lembrar de certas coisas.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A culpa é do Sarney


José Sarney é uma figura muito fácil de detestar. Representa praticamente tudo o que qualquer pessoa sensata abomina na política: falta de coerência ideológica, adesismo a qualquer governo, apoio à ditadura, corrupção, coronelismo político, etc. Até aí acho que estamos todos de acordo. Mas deixa eu fazer uma pergunta.

Já ocorreu a você que o Sarney nada mais é do que um senador pelo estado do Amapá? Por que diabos um parlamentar de um dos estados menos importantes da federação tem tamanho poder? Será que você já pensou nisso? Por que ter ele no governo foi importante para todos os presidentes que tivemos nos últimos 20 anos? Quantos parlamentares do Amapá foram presidentes do congresso e tiveram força para colocar ministros em governos de todas as colorações políticas? Só ele. Por que?

Pelo seguinte. Sarney tem uma imensa rede de apoios. Parlamentares de todas as instancias estão com ele. Essa é a força dele. Mas você, caro leitor, pode deixar de lado seu senso de superioridade. Esses parlamentares não são apenas do Amapá e do Maranhão. É gente de todo o Brasil. Eleita por praticamente todas as unidades da federação. Inclusive, com toda a probabilidade, aquela em que voce mora.

Funciona assim. Você xinga o Sarney, diz que político é tudo igual, que todos os partidos são a mesma coisa. Aí vota em qualquer um que aparece. Nem olha o partido do seu candidato, já que é tudo a mesma coisa. Seu candidato não se elege, mas seu voto ajuda a colocar no congresso alguém que você não sabe quem é. Esse alguém apóia o Sarney. Logo, quem faz o Sarney ser tão poderoso é... você, que odeia o Sarney.

Odiar o Sarney e tudo o que ele representa é ótimo. Qualquer um concorda com isso. Dificil é acompanhar a política, entender nosso sistema partidário e votar de maneira a minimizar a existência de gente como ele no congresso. Entender quem está de cada lado, o que cada um representa e as consequencias do nosso voto dá trabalho. Aí pra muitos é melhor mergulhar na hipocrisia. Ser indignado, xingar o Sarney e garantir a perpetuação de gente como ele no poder.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

#classemediasofrenoaviao


"Nossa, vocês não imaginam a loucura que fiz. Peguei um avião, fui parar em Pisa, de lá aluguei um carro e fui à Munique. Resolvi ir a São Francisco, peguei um avião para Nova York depois fui para a Califórnia. Nossa, olha a doideira!". "Puxa, eu também sou assim, não sei em que planeta vivo. Estava um dia em Barcelona um dia desses, aí peguei um voo para Cingapura, passei duas semanas lá, e depois resolvi conhecer a Austrália".

Escutei essa conversa quinta-feira passada em um avião. Na verdade, o grupo de cinco ou seis pessoas passou a viagem inteira falando coisas assim em altos brados. Graças a Deus era um vôo bem curto (Salvador-Aracaju, meia hora), o que me permitiu não morrer naquele ambiente tóxico. O propósito, claro, era dizer "olha, não é porque estou num vôo noturno da Gol que sou como vocês, seus pobres. Não preciso economizar. Tenho centenas de milhares de milhas de vôo pelo mundo afora e não sou um fuleiro qualquer que começou agora a andar de avião, aproveitando os vôos baratos".

Efetivamente o avião se transformou em um martírio para esse tipo de gente. Mais que um meio de transporte, o avião também é historicamente uma forma de distinção social. Como as passagens aéreas sempre foram caras por aqui, usar esse meio de transporte era para poucos. Eu viajei de avião pela primeira vez aos 28 anos, de Porto Alegre a Campinas, já rumando para o fim do meu doutorado (e só voltei de avião. a ida foi de ônibus mesmo, pois a grana não dava). Hoje, 12 anos depois, não é incomum ver meus alunos de graduação indo a congressos por via aérea. Pós-graduandos então, fazem isso com frequencia.

Hoje viajar de avião é bem mais barato. E como a economia vai bem, muita gente foi incluída no que antes era luxo para poucos. O que é uma coisa indiscutivelmente boa. Ao menos no nível da teoria. Afinal, nós brasileiros somos os especialistas supremos no campo da busca da distinção. Para nós só tem graça ter algo se a maioria não puder ter. Aí dá-lhe pagar muito mais do que os outros povos para ter os mesmos produtos. O que é uma dupla vantagem. De um lado, se garante que sua empregada ou seu porteiro não terão acesso às mesmas coisas que você. De outro pode-se botar a culpa dessa diferença de preços nos impostos #classemdiasofre blábláblá.

Não faz muito tempo um dos "intelectuais" (?) favoritos da nossa direita escreveu uma coluna na Folha reclamando do fato de estar insuportável viajar de avião. Concordo completamente. Mas por motivos opostos aos dele. Para o tal autor, os aeroportos estão insuportáveis porque estão cheios de pobres mal comportados. Eu acho exatamente o contrário. Essa gente que nunca viajou de avião fica normalmente intimidada em um ambiente desconhecido e historicamente elitizado, e via de regra rezam para não serem percebidos. O que mata de raiva são esses babaquinhas que ficam o tempo todo arrotando superioridade. Querendo mostrar que estão ali porque podem, e não por motivos conjunturais. Reclamam dos pobres nos aviões, contam vantagem de suas inúmeras viagens internacionais, tudo para mostrar que são "dinheiro velho". Essa gente é que estraga a experiência (deliciosa, por sinal) de viajar de avião. Essa tristeza de ver que há gente melhorando de vida é uma das caras mais feias do Brasil.

ATUALIZAÇÃO: Talvez eu não tenha deixado suficientemente claro, mas o post não é sobre os problemas da experiência de voar no Brasil. É sobre certos tipos de comportamento elitista tão comuns por aqui. Por isso não foram contemplados problemas como o serviço das companhias aéreas e a qualidade dos nossos aeroportos. Isso é outra história.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Meus alunos

Ser professor não é fácil.Dá trabalho. A profissão faz a gente suar. Mais que isso. Significa passar a vida lidando com gente que não entende o que você quer dizer, gente que acha que uma coisa que você disse quis dizer outra. Acontece mesmo. Faz parte. E a gente tem de entender. Pode ser que no lugar deles a gente tivesse entendido a mesma coisa.

O instinto de sobrevivência me diz que eu jamais deveria chegar perto dos meus alunos. Eu deveria dar minhas aulas e ir embora correndo. De fato há razão nisso. Nesses tantos anos de profissão eu cansei de ser odiado por ter permitido aproximação de alunos. Não vou mentir. Até porrada tomei. De um aluno que tinha problemas dele e os projetou em mim.

Mas se eu tivesse seguido esse instinto de sobrevivência não teria os amigos que tenho hoje. Meu compadre Rafael, que me deu o filho dele para eu batizar. Meu amigo Vitório, meu afilhado de casamento. A Luana, que me recebeu em sua casa na Itália. Márcia, que agora me espera para me ver em seu casamento. Tantos amigos como eles, que um dia foram meus alunos, e hoje estão muito próximos a mim, simplesmente porque nunca acreditei nessa coisa da distância aluno-professor.

Racionalmente eu devia ter seguido a lei do "professor deve se manter longe do aluno". Eu teria poupado muitos aborrecimentos. Mas também não poderia estar aqui explodindo de orgulho pelas pessoas que formei. Gente inteligente, guerreira e valente, que enfrenta todas as dificuldades da nossa área, mas consegue fazer a diferença, e sabe disso.

Em suma, ser professor universitário pode ser ruim. Mas no fim é a melhor coisa. Você conquista amigos eternos e ainda se infla de alegria por ter formado craques que vão fazer toda a diferença.

Obrigado, meus alunos. Vocês me fazem o tempo todo entender que minha profissão faz sentido.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A indigência de um debate radicalizado


Há muito tempo a política brasileira não vivia um clima tão radicalizado. Desde 1964, para ser exato. O cenário se desenhou no governo FHC, quando o PSDB conseguiu costurar uma enorme aliança de centro-direita, ficando o bloco progressista liderado pelo PT basicamente como o "dono da oposição". De lá para cá esse cenário não mudou tanto assim. Apareceram várias propostas de "terceira via", mas que na verdade nunca passaram de projetos individuais (Ciro Gomes, Garotinho, Marina Silva, Eduardo Campos) travestidos de "renovação". E fica por aí.

O desenho mudou pouco, mas o clima ficou muito mais pesado. Cada dia mais é difícil encontrar, em qualquer posição política, gente preocupada com algo mais do que demonizar o inimigo. Me parece que isso tem três motivos. O primeiro, claro, é o fato de que a oposição à direita tem todo o poder econômico do universo, e pode gritar a vontade. A segunda, é que se criou uma oposição à esquerda, a maioria formada por desencantados do PT. Como concorrente do partido do governo na luta pelos votos progressistas, não perdoam o lulo-petismo, especialmente por sua inconsistência ideológica. O terceiro motivo: ao mesmo tempo que chora o fato de ter boa parte da imprensa contra si, o governo conseguiu criar uma rede, digamos, alternativa, de informação, que defende seus interesses. Claro que tem menos alcance que os veículos oposicionistas, mas é alguma coisa (ao contrario do governo FHC, em que era quase impossível achar qualquer coisa na mídia que não fosse defesa do governo).

O problema aí não foi essa diversificação, que é boa. O diabo é que a maioria dos envolvidos no debate quer ganhar no grito. A imprensa oposicionista passou a abrir cada vez mais espaço para tipos absolutamente raivosos, que não têm qualquer pretensão de análise, só querem gritar. O governo também recrutou uma respeitável linha de frente para lhe defender. A oposição à esquerda luta com as armas que têm, em particular as redes sociais e blogs.

O que argumenta a imprensa oposicionista, em especial a mais hidrófoba? Variações em torno dos temas: mensalão, Hugo Chávez, populismo, demagogia. Sempre foi assim. Todos os governos latino-americanos da história que não rezaram pela cartilha das elites foram chamados de corruptos, demagogos, populistas e assistencialistas. Ganham eleições porque o povo é retardado mental e vota com o estômago.

Entre os governistas o argumento básico é: tudo culpa da mídia governista. Mensalão não existiu, todo mundo foi condenado sem provas, o PT está revolucionando o país e isso incomoda as elites. Decisões políticas e ideológicas grotescas? Não, alianças necessárias para mudar o país. E quem discorda é reacionário. E todas eleições que o PT perdeu, e todas as que vier a perder, são por causa da mídia. O povo, retardado outra vez, não sabe o que é melhor pra ele.

A oposição de esquerda em sua maioria pouco consegue sair dos seus próprios chavões. PT e PSDB são iguais, ambos neoliberais, estão iludindo as pessoas (que mais uma vez são retardadas) com essa briga, que na verdade é disputa entre iguais. O remédio é socialismo democrático, seja lá que diabos eles querem dizer com isso (não gostam muito de explicar).

Então é o seguinte: quando me perguntam como me informo respondo que não leio nada, exceto links recomendados por pessoas confiáveis. Parece niilista (em parte é mesmo), mas não vejo escolha. Ler essas coisas histéricas, rasas, que só tem a finalidade de dar argumentos para as respectivas militâncias? Tô fora.

PS: você lê textos desse tipo sabendo que vai odiar, só para passar raiva, xingar o autor nos comentários e postar o link nas redes sociais dizendo "olha que absurdo"? Parabéns, voce está contribuindo para tudo isso. Engorda o número de acessos, compartilhamentos e comentários dessas idiotices, que é do que eles vivem. Sinto lhe informar, mas você e um idiota poluindo o facebook dos seus amigos com chorume. Abraços.

sábado, 2 de novembro de 2013

Liberdade de 'Expreção'

Toda vez que falo/escrevo sobre temas como a ley de medios argentina aparece gente falando em "censura" e que isso fere a "liberdade de expressão". Examinemos a questão, de um ponto de vista genérico.

Para começar, as liberdades individuais, que são o cerne do liberalismo, nem sempre coexistem em harmonia, é há a necessidade de estabelecer prioridades. O exemplo mais flagrante foi o da escravidão. Ao longo do século XIX vimos escravistas empedernidos no Brasil, no Caribe e nos EUA, dizendo que o Estado não deveria se meter em assuntos privados. O que acabou acontecendo, já que se chegou à compreensão de que as liberdades dos escravos vinham acima do direito à propriedade privada dos senhores.

Ainda nessa linha, a liberdade de expressão é um ideal, que nunca será atingido plenamente. E nem deve ser. A lei me proíbe de chegar para um desconhecido na rua e gritar "seu crioulo macaco fdp!". E está certíssima. Há limites para a liberdade de expressão, e vários deles são previstos em lei. Afinal, os próprios liberais não adoram dizer que "meu direito termina onde começa o do meu vizinho"? Pois é.

Agora a imprensa. Para começar, nunca é demais lembrar: estamos falando de empresas privadas com fins lucrativos, e não de entidades filantrópicas. Empresas assim visam uma coisa acima de todas as outras: o lucro. E não há nada errado com isso. Mas me parece óbvio que qualquer tipo de negócio deve ser regulamentado. Se assim não for, os consumidores viram reféns de serviços ruins. Basta você pensar na sua operadora de telefone celular para saber do que estou falando.

Até agora só falei obviedades. Mas veja: quem se opõe a qualquer regulamentação para as atividades de imprensa age como se não soubesse de nenhuma dessas coisas. Você acha normal que um segmento qualquer da economia seja dominado por uma dúzia de famílias, com o direito a oferecer ao consumidor o produto que quiserem sem existir nenhuma possibilidade de controle? Bem, é o que temos na imprensa brasileira. E era o que havia na Argentina.

A questão é que os barões da mídia e seus paus-mandados costumam lançar mão de uma falácia na hora de discutir o assunto. Argumentam que qualquer tipo de controle e intervenção vai contra a liberdade de expressão. Mais um passo e se critica os proponentes de algo assim como se fossem ditadores que querem impedir a "imprensa livre". É a famosa "falácia do espantalho". Se associa uma ideia ou alguém a algo indesejável, e essa ideia ou alguém passa a ser visto como tendo todos os atributos do "espantalho" a ele associado.

Por exemplo. Eu passo o dia com minha poodle no colo. A bichinha até dorme comigo. Aí algum inimigo meu diz assim: "sabe quem gostava muito de cachorro? Hitler, ele mesmo". Pronto> num instante eu deixo de ser um camarada apegado a sua cadelinha e me transformo num genocida. Baseado em que? Na falácia do espantalho.

Regulamentar as atividades de imprensa e impor controles externos de fato limitam a liberdade de expressão. Mas desde quando isso necessariamente é uma coisa é ruim? Todos nós temos nossa liberdade de expressão limitada. Por que diabos esses mega empresários têm o direito de falar sozinhos sem nenhuma forma de controle para milhões de pessoas sem sequer abrir espaço para o contraditório? Eles querem continuar tendo um direito que nós não temos. Só isso.

O que fazer para mudar a situação sem corrermos o risco de censura? Bem, uma lei de meios seria um ótimo começo. Desconcentrar a propriedade dos veículos de mídia, de forma a termos acesso a uma pluralidade de informações. Tornar esse segmento regulamentado como qualquer outro deveria ser. Simples.

Aí vem a questão do conteúdo em si. De fato é um tema delicado. Mas o assunto deve ser ao menos debatido. O que não dá é para achar que meia dúzia de empresários têm o direito de decidir o que 200 milhões de pessoas vão saber. E achar que qualquer coisa diferente disso é "ditadura".

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Por uma lei de meios


Imagine se o Estado não pudesse dar nenhum palpite sobre o que se ensina nas salas de aula. Tampouco alunos, pais de alunos, sociedade civil, políticos ou mesmo professores. Imagine se alguém defendesse que toda a regulamentação do ensino brasileiro fosse definida por donos de escolas particulares e os diretores dessas escolas. Você conhece alguém no mundo que acharia que essa é a melhor saída para a educação brasileira?

Pois bem, é exatamente o que as empresas de comunicação defendem para o seu setor. Elas defendem que qualquer coisa diferente da autoregulação (leia-se: o que pensam seus donos e membros dos postos mais altos) é "censura" e "atentado à liberdade de expressão". Qualquer ideia que vá além disso é taxada de ditatorial. Alegam que o cidadão já influi o suficiente, uma vez que tem o direito de escolher o que quer consumir. Tipo: posso ensinar a meus alunos que Barack Obama é um samurai japonês da Idade Média. Não gostou? Tire seu filho da escola.

Ainda nesta semana escrevi um post mostrando a escandalosa discrepância entre o que ocorreu nas eleições argentinas e a história contada por nossa imprensa a respeito. Não sou fã de teorias da conspiração, mas nesse caso é evidente que há uma orquestração sistemática para denegrir o governo argentino por parte da imprensa (e não é uma ilação: já ouvi de mais de um jornalista que bater no kirchnerismo é a "linha editorial da empresa"). O motivo é evidente: a Ley de Medios.

A Ley de Medios, tida por inúmeros especialistas como avançadíssima, busca desconcentrar o fechado mercado de mídia argentino, em grande parte nas mãos de poucas empresas. A maior delas, o grupo Clarín, tomou a lei como algo contra ela, e ataca o governo de forma absolutamente furiosa, não importa quantas mentiras tenha de contar a respeito. Pinta a presidente como uma ditadora demagoga com evidentes sinais de retardo mental que por pura implicância inventou uma lei para punir o grupo por seu discurso "independente", num evidente ataque à democracia.

A imprensa brasileira aderiu de forma praticamente unânime a essa ideia, incluindo aí muita gente progressista. Vêem em uma lei que visa mudar as estruturas do universo da comunicação do país e democratizar o acesso à propriedade dos meios de comunicação uma mera vendetta contra a imprensa independente. Repito: muita gente boa está caindo nessa.

A lei não é ditatorial. Foi proposta pelo executivo, aprovada pelo legislativo e referendada pela Suprema Corte. Passou pelos três poderes que são o pilar de qualquer democracia. Quem não aceitou as regras do jogo democrático foi o grupo Clarín, que simplesmente se negou a cumprir a lei, recorrendo à Suprema Corte. Ontem finalmente foi derrotado. Não cabe mais recurso. Terá de se adequar. Não poderá mais controlar todos os ramos da imprensa argentina. Haverá mais pluralidade na informação.

Mas por que a imprensa brasileira se preocupa tanto com isso? Um pouco por sua postura historicamente alérgica à esquerda. Há um piloto automático que faz com que muitos brasileiros, inclusive os de esquerda, vejam nos políticos latino-americanos que não seguem a cartilha liberal como nada mais do que demagogos semi-ditadores. Por exemplo: há pessoas formadas em história que ensinam que Perón foi ditador, algo que nem chega vagamente próximo da verdade (foi eleito 3 vezes presidente, e um total de quatro golpes de Estado foram perpetrados entre 1955 e 1976, em todos os casos o peronismo estava do lado derrotado).

Mas no caso da imprensa há a vontade de mostrar os dentes. É uma tática pedagógica. O que importa é mostrar o que os barões da mídia fariam caso alguma lei do tipo fosse proposta por aqui. Se conseguiram assassinar a honra de um governante estrangeiro por conta da ley de medios, imagine o que fariam com alguém que tentasse fazer algo semelhante por aqui! Sempre evitando desagradar quem quer que seja, o governo brasileiro parece nem pensar no assunto.

Só que esse cenário já deu. Vários países do mundo já aprovaram um conselho regulador de mídia, incluindo a Inglaterra (que reconheceu o total fracasso da autoregulação defendida até a morte pelos barões da mídia de lá, veja aqui:http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Inglaterra-aprova-novo-sistema-regulador-da-imprensa/12/29399). Ninguém vai dizer que o país é uma ditadura comandada por um louco demagogo, então isso nem foi noticiado aqui. Melhor usar toda a munição contra o governo argentino. Mas é uma necessidade urgente. O formato, o alcance, tudo pode e deve ser discutido e negociado. O que não dá é uma sociedade inteira ficar a mercê do monopólio da informação por parte de um punhado de empresários. Se alguém acha que democracia é isso, então isso é baseado em um conceito de democracia que eu simplesmente desconheço.

PS: No Brasil a imprensa esportiva, inclusive a mais independente, critica seguidamente o fato de o governo argentino ter comprado os direitos das transmissões de futebol no país. Insistem que é demagogia ou populismo. Para quem quer saber mais sobre o assunto, de forma mais contextualizada, segue um link a respeito (em espanhol), que mostra que as coisas são muito mais complexas do que isso: http://www.sergiol-nimasnimenos.blogspot.com.ar/2013/10/el-futbol-en-la-ley-de-medios.html

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Na prática a teoria é outra



Uma das frases que eu mais gosto é essa: "na prática a teoria é outra". Acho divertidíssima. Certamente foi elaborada por alguém que não sabia bem o que queria dizer, mas que no fim das contas falou o que queria.

Acho que se aplica lindamente ao atual governo brasileiro. Teoricamente é um desastre total. A política econômica é desenvolvimentista, a inclusão em grande medida se deu pelo viés do consumo, a forma de fazer política é a mesma que conhecemos há tanto tempo, a compra de votos no congresso que resultou no mensalão. Todas as críticas ao governo feitas nesses campos são válidas. A coisa de fato foi decepcionante.

Mas por outro lado, a quantidade de coisas que esse governo proporcionou aos que mais precisavam... quanta gente viu os filhos dormindo pela primeira vez por finalmente terem luz em casa, quanta gente tem água corrente em casa pela primeira vez, quantas foram as famílias que pela primeira vez viram um filho com um diploma universitário na mão...

É muito fácil criticar o governo. Ele dá muitos motivos para isso. Sabe ser abominável. Mas fez tanta coisa por quem nunca tinha tido nada que dá o que pensar em qualquer cérebro. Que odiemos tudo o que ele tem de ruim. Mas saibamos aplaudir o que tivemos de melhora. E não foi pouco.

A arte de inventar verdades

Ontem tivemos eleições na Argentina. Hoje todos os sites brasileiros que abri estampavam manchetes falando em "derrota estrondosa do governo", e coisas assim. É incrível, mas eu ainda consigo me surpreender com a capacidade dessa gente de inventar. Pois vejam bem o que houve.

As eleições de ontem eram legislativas. Visavam renovar parte do Senado e da Câmara Federal. O partido governista (Frente para la Victoria) foi o mais votado (32%, contra 23% do segundo colocado) e manteve a maioria nas duas casas. Ou seja: venceram a eleição, pois não apenas foram os mais votados como asseguraram a maioria no congresso, que é a finalidade de uma eleição legislativa, não é? Mas como pode alguém ver uma derrota aí?

A imprensa brasileira (comprando um argumento dos setores mais oposicionistas da imprensa argentina) argumenta o seguinte. Que o governo foi derrotado em províncias importantes (Buenos Aires, Córdoba, Mendoza, Santa Fé), e que isso configura uma grave derrota, que pode ter sérias implicações nas eleições presidenciais de 2015.

O argumento é evidentemente absurdo, e por vários motivos. Em primeiro lugar, eleições legislativas são proporcionais, e não majoritárias. O governo "perder" em uma província quer dizer apenas que não foi o partido que elegeu mais congressistas naquela região. Só isso. Achar que isso é um "golpe terrível" é muita vontade de ver o que quer na situação.

Segundo lugar: as cinco mais importantes "derrotas" do governo foram para cinco rivais diferentes: O direitista Mauricio Macri (cidade de Buenos Aires), Sergio Massa, um dissidente do kirchnerismo (província de Buenos Aires), o "socialista" Hermes Binner (Santa Fé), os peronistas não kirchneristas de Córdoba e o radical Julio Cobos (Mendoza). Salvo os radicais e socialistas, que têm uma associação intermitente (lançaram candidatos diferentes na última eleição presidencial, por exemplo) são grupos sem afinidade e com expressão meramente local. Precisam comer muito angu ainda para sonhar com algo em 2015.

Terceiro lugar: o impacto desses resultados é francamente questionável. São eleições distantes dois anos da eleição presidencial (muita coisa pode mudar) e muito influenciadas por fatores locais. Há 4 anos, nas eleições legislativas de 2009, o kirchnerismo teve praticamente o mesmo percentual de votos, as mesmas análises foram feitas e em 2011 Cristina kirchner se elegeu com a maior vitória da história do país.

Então vejamos. O kirchnerismo tem o poder, elegeu a maioria nas duas casas do Congresso, é um dos únicos partidos de expressão nacional na Argentina (ao lado da UCR) e já tem seu candidato virtualmente definido para 2015, o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli. A oposição é francamente dividida em grupos rivais, vários dos quais não tâm afinidade entre si, são minoria em ambas as casas e quase todos os seus "expoentes" só tem força em seu quintal.

Mas a imprensa brasileira olha para isso e enxerga um governo enfraquecido por uma retumbante derrota e prestes a ver sua história encerrada de forma devastadora nas próximas eleições. Bem, cada um acredita no que quer, não é?

domingo, 27 de outubro de 2013

Por que eu voto no governo


Corria o ano de 2002. Esquerdista velha guarda eu estava escandalizado com as alianças que Lula construía para aquelas eleições. Votei em Zé Maria no primeiro turno. No segundo, votei em Lula, mas com muita raiva. Para mim, o que ele construía não era uma aliança de esquerda.

Naquela noite liguei para minha casa. Soube que meu pai, comunista velha guarda, preso político nos tempos da ditadura, tinha morrido de tanto chorar na hora de votar. Para ele, votar no Lula sabendo que ele ia ganhar era a realização de todos os melhores sonhos dele. Não entendi.

Mantive a postura em 2006. Votei em Heloísa Helena no primeiro turno. No segundo fui com Lula contra o pavoroso Alckmin. Mas aborrecido. Na minha cabeça o governo petista estava traindo todos os seus ideais. Tenho muito orgulho do quanto meus pais e tios sofreram na ditadura. Na verdade, nada me orgulha mais na vida do que isso. Estar na árvore genealógica dessa gente compensa tudo. Na minha cabeça, o PT estava traindo décadas de luta e se vendendo.

Em um evento familiar toquei no assunto com meu tio Vicente. Irmão da minha mãe e companheiro de lutas do meu pai naqueles anos duros. Uma tremenda referência para mim. Perguntei a ele sobre o governo, dizendo que não entendia a geração deles se satisfazer com aquele governo. Ouvi a resposta: "lutamos e sofremos querendo democracia e vida melhor para os pobres. que é o que esse governo está fazendo".

Não votei em 2010, porque morava em Pernambuco tendo título em Minas Gerais. Mas o argumento do meu tio já teria me feito votar em Dilma. Mas ainda teria de enfrentar argumentos piores. Em 2011 estava na Argentina, conversando com uma grande amiga, que perguntava: "por que voce não vota no governo? a vida das pessoas mais pobres não está melhor?". Respondi enumerando todos os problemas do governo petista, para ouvir uma pergunta devastadora: "ok, o governo não é o ideal, mas tem alguém que vai realizar a plataforma que você gostaria? Se tiver, vote neles. Se não, você está sendo uma criança fazendo o jogo da direita".

Fiquei sem saída. E me transformei em um eleitor do governo. Que não tem nada de socialista. Mas que fez pelos mais pobres coisas que nenhum grupo fez ou poderia fazwr.

sábado, 26 de outubro de 2013

Quando os coxinhas encontram a revolução


Os protestos que surgiram no meio do ano deixaram muita gente confusa. O que é compreensível: não havia líderes, pauta definida ou qualquer projeto visível. Misturavam-se pessoas de todo o arco político, pedindo coisas diferentes e até eventualmente contraditórias. Analisar aquilo não era para qualquer um. Eu, eleitor do governo, fui em um deles, junto com um amigo, também governista. Encontrei lá todo tipo de gente. Ao menos naquele momento (estávamos no começo do processo) aquilo me parecia saudável, ainda que fosse evidente que não havia como sair nada concreto, para além de pautas pontuais.

Confusa como todos estavam, a mídia fez grandes esforços tentando explicar o que se passava. Mas na maior parte dos casos não houve uma compreensão adequada. Em geral houve uma insistência incrível em procurar líderes, organizações e projetos por trás dos protestos, algo que simplesmente não existia. Nessa busca por tentar entender pelos canais tradicionais aquilo que não tinha nada de tradicional, se chegou aos black blocs. O termo passou a ser associado a uma organização internacional, infiltrada nos protestos. O que não tem nada a ver com a realidade. Parcialmente por má fé, mas principalmente pela dificuldade de entender um fenômeno novo, os black blocs receberam um papel muito maior do que aquele que tinham de fato.

Black bloc não é uma organização. Não tem líderes ou projetos. Na verdade, teoricamente sequer tem "membros" no sentido tradicional do termo. É uma tática utilizada por um conjunto de indivíduos que podem na verdade sequer se conhecer. O grupo se junta, age e se dispersa. Tampouco tem projeto: defendem aquele anarquismo coxinha de tons fortemente moralistas que se difundiu no pós-68. No mundo de fantasia em que eles vivem, são cavaleiros lutando pela liberdade humana, querendo nos salvar dos grilhões do capitalismo. No mundo concreto, são jovens revoltados de classe média, que um dia serão direitões de 40 anos (qualquer pessoa que tem mais de 30 anos e fez curso de humanas na universidade conhece dezenas de tipos assim: "anarco-revolucionários" na juventude, reacionários na meia idade).

(Favor não confundir essa mixórdia de mauricinhos com o anarquismo, uma visão de mundo que tinha ideias e projetos, dos quais se pode gostar ou não)

Na verdade esses caras são os "revolucionários" (aham!) que a direita AMA. Vão a manifestações organizadas por outros grupos, cometem vandalismo e chamam toda a atenção para si próprios. A mídia, em especial a mais conservadora, dá enorme destaque a isso, a reivindicação real fica esquecida e seus proponentes são pintados como vândalos. Uma maravilha, não é?

O engraçado é que quando eles falam, até soam como pobres vítimas. Ninguém os entende. Quebrar carros particulares é uma forma de combater um símbolo do capitalismo. Não é vandalismo. Eles estão apoiando os movimentos sociais e fomentando a revolução que nos libertará. Não é uma maravilha?

Não, é um desastre. Eles são francamente autoritários. Eles por acaso estão preocupados se os movimentos sociais os querem lá? Nos perguntaram se gostamos daquilo? Explicam em que medida suas ações vão melhorar a vida dos mais necessitados que eles dizem querer libertar? Não. Agem assim porque acham legal e pronto. Estão se lascando para o que pensamos. Ah, e a propósito, todo mundo que não gosta deles é burro e/ou reacionário. Não há outra explicação plausível. Tente dialogar com alguém que os defende. A pessoa vai, com toda a condescendência do mundo, explicar coisas super básicas que estamos cansados de saber (afinal, só um desinformado manipulado pela mídia para não gostar deles). Quando recebem contra-argumentos, te tacham de reacionário. Bem democrático, não?

Nunca é demais lembrar: os regimes socialistas terminaram todos em ditadura por um motivo. As revoluções socialistas foram levadas à cabo por grupos que tentaram implantar o socialismo para uma população que queria reformar o capitalismo. Ou seja: tiveram de enfiar o socialismo goela abaixo de seus povos. Aí não tem jeito: terminou em ditadura. Por aí se vê o perigo desse tipo de gente.

Eles não vão implantar uma ditadura, já que não são uma organização política no sentido tradicional. Mas pensam exatamente como os revolucionários socialistas do passado: "precisamos acabar com o capitalismo, independente da vontade das pessoas. O povo só não concorda com a gente porque são mal informados. Mas nós sabemos o que é melhor para eles".

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Smells like 1998

Tenho sentido um impressionante clima de "fim dos anos 90" na política brasileira. Apenas com uma "pequena" diferença: PT e PSDB inverteram os papéis.

Naquele momento o PSDB havia abandonado toda a ideia original de ser um partido social-democrata. FHC havia surfado no sucesso do Plano Real, fazia um governo privatista e havia, com sua imensa habilidade política, unificado todo o campo do centro e da direita em torno de seu governo. A aliança era forte em todo o país, mas tinha como ponto forte a hegemonia total no campo da elite, entre os pobres urbanos não vinculados a sindicatos e movimentos sociais e o velho voto de cabresto nordestino.

Mas as coisas não estavam perfeitas para o governo. Havia, no fim dos 90, uma fadiga de material. Os escândalos de corrupção e sobretudo a exasperante recessão e desemprego criavam espaço para a oposição. Mas nós não sabíamos nos aproveitar disso. Ainda embasbacados com o avassalador triunfo do neoliberalismo mundo afora (muito mais que pelo fim do socialismo), não havíamos conseguido nos situar novamente.

Nos sobrava uma imensa agenda negativa. De um lado, éramos contra a corrupção, o neoliberalismo, a submissão aos EUA. Por outro, atacávamos todas as iniciativas do governo, incluindo os tímidos programas de renda mínima (que chamávamos de "esmola") e até o Toda Criança na Escola (dizíamos que o importante não era colocar as crianças na escola, mas sim dar a elas um ensino de qualidade). Dizíamos que essas iniciativas eram "eleitoreiras".

A predominância de uma agenda negativa e a adoção de bandeiras absurdamente genéricas ("ética", por exemplo) eram decorrência evidente da nossa ausência total de um projeto para o país. Sabíamos exatamente o que não queríamos, mas nem tínhamos ideia do que faríamos com o país. Entramos nas eleições de 1998 tendo como maior esperança a possibilidade de Ciro Gomes tirar votos de FHC e forçar um 2o turno FHC x Lula. Não deu. Ciro naufragou e nós tivemos os votos que sempre tínhamos, algo menos que um terço do eleitorado.

A virada só veio quatro anos depois. A fadiga de material havia aumentado muito, Serra fez uma campanha vacilante, nem governista nem oposicionaista, e Lula e Zé Dirceu tomaram a decisão que fez a diferença. Pararam de fingir que eram socialistas (algo que o PT nunca foi) e entraram de cabeça na realpolitik. Acalmaram parte dos grupos reacionários e atraíram o voto de gente que não aguentava mais viver num país sem crescimento econômico. O resto é história.

O que temos agora é bem parecido, só que com os papéis invertidos. O governo petista sente a fadiga de material, e ainda que mantenha a fidelidade incontestável de fatias do eleitorado, o espaço para uma vitória oposicionista se ampliou bastante em relação a 2010. A questão é: quem vai ocupar esse espaço?

O PSDB está exatamente como nós, da esquerda, estávamos há 15 anos. Perdido. Sequer sabe quem é. Se um partido de direita, se um arejado defensor do liberalismo, se um partido das elites. Detesta o governo petista, e tem uma gigantesca agenda negativa. Mas o que querem fazer no poder? Ninguém sabe. Nem eles. Supõe-se que diminuiriam o tamanho do Estado, mas nem isso é certo. Há dias Aécio disse que é preciso "reestatizar" a Petrobrás. Um gesto absolutamente desesperado do candidato do partido que mais fez privatizações na história do país. Espalharam privatizações em seus anos de governo, e fazem um escarcéu por uma concessão, que nem privatização é.

A incoerência do discurso aecista é tamanha que sequer precisa ser discutida em profundidade. Ela denota a total ausência de discurso e projeto que o PSDB vive hoje. Aliás, qualquer pessoa que tenha morado em Minas Gerais no período de hegemonia tucana no estado sabe: se alguém recorre a Aécio Neves, está em busca de qualquer coisa, menos de discurso e projetos. Aécio não tem nenhuma dessas coisas. Nunca teve nem terá.

Enquanto o PSDB não decidir o que quer da vida, terá dificuldades de chegar ao poder com uma agenda meramente negativa. Ser contra tudo o que o governo faz dificilmente os levará ao poder, da mesma forma que nos deixou muito longe dele em 1998. Resta a esperança em Eduardo Campos, escalado para ser para o PSDB tudo aquilo que Ciro Gomes não conseguiu ser para o PT há 15 anos. O candidato moço, bem apessoado, governador nordestino de sucesso, que emerge da aliança governista com um projeto pessoal próprio, disposto a roubar votos tradicionalmente destinados ao governo.

Na falta de um projeto, o PSDB conta com Eduardo Campos para forçar um segundo turno, exatamente como fizemos com Ciro Gomes em 1998. Naquela vez não deu certo. Em um ano saberemos se a história vai se repetir, ou se desta vez a coisa será diferente.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A história dos historiadores é de esquerda?

Ouvi hoje pela trilionésima vez uma referência à "doutrinação marxista" que, supostamente, nós, professores de história, oferecemos a nossos alunos. Sempre descartei isso como tolice que nem merecia ser discutida. Mas desta vez resolvi pensar a sério no assunto. Nem que seja para entender de onde os caras tiram isso.
Para começar é importante reconhecer que de fato a maioria esmagadora dos professores de história (seja na universidade ou na educação básica) é simpática a causas progressistas, ainda que não necessariamente sejam de esquerda. Comunistas então, estão em extinção total. Mas de fato há uma proeminência acentuada dos progressistas no nosso mundo. Não conheço pesquisa sobre o assunto, mas acho que o que acabo de dizer é óbvio para quem vive no mundo dos historiadores.
Mas e as obras? Bem, naturalmente seguem essa tendência. A maioria tem uma perspectiva esquerdista, ainda que isso seja bastante discutível no caso dos pós-modernos, foucaultianos, etc. que se consideram o supra-sumo da visão progressista de mundo, mas são tidos como perigosamente próximos de uma visão conservadora por outros (inclusive eu). Isso à parte, em linhas gerais a historiografia brasileira tende mesmo à esquerda nos últimos 50 anos. Mas isso é "doutrinação marxista"? Não acho. Pra começar ser progressista, esquerdista e marxista são coisas diferentes. O marxismo segue sendo uma tendência forte entre os historiadores brasileiros, mas isso não se traduz em obras que tenham intencionalidade política. Trata-se apenas de utilizar a visão marxista como ferramenta para entender processos sociais (traduzindo: ganha uma viagem para Cuba quem encontrar um livro acadêmico no último quarto de século com o tom "viva a revolução" ou "morte à burguesia"). E há muitos historiadores progressistas e esquerdistas que não são marxistas. Mas é preciso reconhecer que há um campo em que as coisas têm outra dinâmica: os livros didáticos. Não sou especialista no assunto, mas já vi muitos que são inteiramente baseados num esquerdismo absolutamente infantil e pouco informado. A história do Brasil nesse tipo de livro didático (também já vi muitos que não são assim) é simples: a elite brasileira é malvada e todo mundo que em algum momento foi contra ela é herói. Aí se glorificam tipos questionáveis, como Prestes, ou francamente suspeitos, como Antonio Conselheiro. Muitos livros didáticos fazem essa operação, nós, historiadores profissionais, não gostamos de gastar tempo com "grandes figuras", já que isso nos lembra a historiografia mais antiquada e detestável que existe, e pronto. Está aberto o cenário para algum revisionista de direita venha falar que há consenso absoluto entre os historiadores de que esses caras são heróis, afinal somos todos doutrinadores esquerdistas, diz que vai mostrar a VERDADE, sem nenhuma IDEOLOGIA, faz um livro que vende trilhões de cópias e fica famoso. Claro que os livros em questão são totalmente politizados, mas aí é uma característica secular da direita: acha que ser de direita é "normal" e ser de esquerda é "ideológico". Em suma: não existe nenhuma doutrinação ideológica. Existe uma tendência progressista no mundo dos historiadores que se traduz em nossos escritos (assim como há uma tendência liberal-conservadora entre os donos de veículos de imprensa, que faz com que essa visão seja hegemônica nesses veículos). Também há muito livro didático ruim, alguns de tendência esquerdista infantil, mas também outros seguindo a modinha da história cultural. Assim, não se deixe enganar por jornalistas ricos e famosos bancando os pobres defensores da verdade num universo dominado pela mentira. Esses caras carregam um discurso muito mais doutrinário que o nosso, e atingem muito mais gente que nós. Esse papo é discurso para vender livro e enganar otário.

sábado, 12 de outubro de 2013

Nós e nossos ídolos

Cheguei de volta ao Brasil, e ao tentar me inteirar do que se passou na minha ausência, fiquei perplexo ao ser informado da existência do tal Procure Saber. O grupo, que tem Caetano Veloso, Chico Buarque, Roberto Carlos e Gilberto Gil entre seus membros quer simplesmente que uma biografia só possa ser publicada com a anuência do biografado ou de sua família. O absurdo da proposição salta aos olhos, tanto mais quando vemos os pífios argumentos que lhe dão base. Para começar, reclamam que os biógrafos ganham fortunas à custa dos biografados. O que, para começar, é mentira na maioria absoluta dos casos. Mas mesmo que ganhassem: não é justo que sejam bem pagos ao produzir um sucesso de vendas? Ou os membros do grupo não ganham dinheiro com sua produção musical? Outro argumento é que os biografados podem ser injustamente detratados numa biografia. Ora, mas em que isso difere de qualquer outra produção intelectual? Qualquer cidadão tem o direito de ir à justiça se isso acontecer num livro, disco, site, jornal, revista, etc. Pode ser lento o processo, mas infelizmente só há uma alternativa a isso: a censura, que é exatamente o que propõe o grupo. Pelo que notei, a postura dos músicos tem sido muito atacada. Vejo que há muita decepção com artistas que foram censurados pela ditadura, e hoje propõem a mesma censura em relação a biografias. Concordo, é isso mesmo. Mas acho que falta notar algo aí. Isso tudo (inclusive o que eu mesmo argumentei) faria sentido se pensarmos nesses artistas como pessoas comuns que vivem da música. Mas eles não se vêem assim. Se vêem como instituições. Na verdade o tal grupo é apenas o ponto de chegada de um longo processo que fez dessa brilhante geração de músicos algo verdadeiramente inquestionável. Você simplesmente não fala mal desses artistas. Dizer que um disco deles é ruim é tão inconcebível que isso sequer passa pela nossa cabeça. Até os fatos mais óbvios nessa direção passam batido. Por exemplo: faça uma lista das 20 melhores músicas desses artistas. Quantas delas foram escritas nos últimos 25 anos? Nenhuma? Uma? Talvez duas? Pois é, há um quarto de século eles estão produzindo discos que não deixarão nenhuma marca na história da música brasileira. Todos sabemos disso. Mas não podemos nem pensar nisso. É um verdadeiro pecado. Em boa medida isso não tem a ver com os artistas em si. Eles fizeram parte dessa mitificação, mas não tanto quanto críticos, jornalistas, intelectuais, consumidores, etc. Digamos a verdade: nós transformamos esses caras em instituições inatacáveis. E eles acreditaram. Será que são tão culpados assim por isso? A grande verdade é que somos todos culpados em mais de um sentido. Não é segredo que Chico Buarque é um cachaceiro mulherengo muito parecido com milhões de outros que qualquer mulher odeia. Mas é preciso manter o mito. As mesmas mulheres que odeiam caras como ele querem manter a imagem do cara sensível, bonito e que “entende o que a gente pensa”. Todos os outros membros do grupo tem esqueletos do tipo no armário, todos bem guardados com a nossa conivência. O mito tinha de ser preservado a todo custo, em um empreendimento coletivo. A gigantesca arrogância que os artistas demonstram agora não saiu da cabeça deles. Foi criada por toda uma sociedade. Agora não adianta ficar com raiva por eles terem assumido o papel que oferecemos a eles. Dissemos a eles por quase 50 anos que eles eram mitos inatacáveis perfeitos, verdadeiras instituições, muito mais que pessoas, salvaguardas da música brasileira. Então não vale achar que a culpa desse monstrengo que eles querem nos empurrar é só deles. O mais triste, no fundo, é o que isso tudo mostra sobre nós. Pensamos que somos pessoas progressistas, intelectualizadas, de mente aberta, mas não podemos aceitar que um músico que amamos tenha uma vida pessoal que nos desagrade, ou até uma perna mecânica. Isso sim é que é triste. Eles não querem que essas coisas sejam reveladas porque nós mesmos mandamos todos os sinais de que preferíamos não ter de lidar com elas. No fim, somos bem piores do que pensamos.

sábado, 5 de outubro de 2013

A Aposta de Marina

(caros, não tenho a pretensão de imitar Saramago. Meus textos estão saindo sem parágrafos por motivos alheios à minha vontade. Desde que saí do Brasil está assim e não consigo resolver. Agradeço a paciência dos amigos) A notícia de que Marina Silva vai se filiar ao PSB e deve ser a vice de Eduardo Campos é disparada a grande novidade do cenário eleitoral. E é uma novidade muito surpreendente. Marina Silva passou os últimos 5 anos construindo cuidadosamente a ideia de que nada tinha a ver com os demais políticos. E agora se filia a um partido sem nenhuma ideologia. Naturalmente a primeira tendência é achar que ela joga seu capital político fora, ao apoiar um candidato comum, correndo o risco de ser a grande patrocinadora de uma campanha que não vai decolar. Isso reduziria a pó suas esperanças de ser presidente do Brasil. Pode ser exatamente o que vai acontecer. Mas pode ser que não. Os cálculos dela fazem algum sentido. Certamente Marina avaliou que ficar de fora das eleições reforçaria a ideia de que ela é coerentemente alheia aos partidos tradicionais. Mas poderia ter um custo político muito alto: o esquecimento. Seriam oito anos sem disputar eleições nem ocupar cargos. Novas lideranças poderiam surgir e ocupar seu espaço de "musa dos cansados". O risco era alto, e ela não quis correr. Ou seja, ela ficou em uma verdadeira sinuca. Manter a postura que lhe deu notoriedade poderia ser danoso a longo prazo. Trair essa coerência poderia ser ainda pior. Convenhamos: ela estava numa sinuca. E se era para ela aderir a alguma candidatura, Eduardo Campos era a única opção. Dilma e Aécio são identificados demais com o cenário político atual, representando os partidos que hegemonizam a política brasileira nos últimos 20 anos. O cálculo certamente é: sendo seu eleitorado majoritariamente muito despolitizado, não conhece o governador de Pernambuco, e portanto não o associa à política tradicional. É jovem, tem olhos claros, virá certamente com um discurso de quem quer renovar a política, etc. A aposta de Marina é que seu apoio cacife Eduardo Campos a disputar pra valer a presidência, o que lhe colocaria em ótima posição. Em especial se Eduardo brigar no topo, mas não conseguir vencer, deixando o caminho livre para ela em 2018. Esse é o cenário dos sonhos de Marina. Há também a chance de dar tudo errado. O Brasil perceber que Eduardo Campos, a despeito das aparências, é membro legítimo da linhagem de coronéis nordestinos, ainda que com imagem de bom moço e discurso de tons liberais (pensando bem, se parecendo cada dia mais com o Collor de 1989). Isso poderia levar a candidatura dele a não decolar, e arranharia muito a imagem de Marina. Seu discurso de "não faço parte da política" seria trucidado, e seu prestigio sofreria um forte abalo, ao patrocinar uma candidatura fracassada. Em suma, o risco é alto. Marina partiu para o tudo ou nada. Em um ano saberemos se a aposta deu certo ou não.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Sem Marina...

O TSE negou o recurso da Rede Sustentabilidade, deixando Marina Silva sem sua legenda para concorrer nas próximas eleições. O fato é muito sério e merece exame. Para começar: não tenho formação jurídica e não tenho como comentar a decisão. E não acho que o Judiciário seja obrigado a decidir a favor do que eu penso. Acho que eles têm de cumprir seu dever, e pronto. Ficar desmerecendo decisões judiciais me parece anti-democrático, ainda mais em se tratando de quem não sabe do que está falando. Então nessa discussão, como na do mensalão, eu não vou entrar. O que eu posso ver é o seguinte: sem Marina Silva, as eleições de 2014 ficam muito mais previsíveis. Afinal, ela se apresentava como o "novo na política", aquele "novo" que não se definia, que não dizia nada, e exatamente por isso tinha toda a chance de atrair o voto dos "indignados", dos que estão "contra isso tudo o que está aí". Essa raiva difusa dos políticos poderia fazer Marina causar problemas para Dilma, ainda mais se ela seguisse sendo a grande canalizadora dos votos evangélicos que foi no primeiro turno de 2010. Marina ficou num beco sem saída. Ela só tinha chance de disputar a presidência por vender a imagem de outsider, alguém que estava fora do sistema político, por mais absurdo que isso pudesse soar. Sem sua "rede", não há muito o que fazer em relação ao ano que vem. Se filiar a um dos partidos existentes seria negar toda a imagem cuidadosamente construída. Então a opção ficou para 2018. O novo cenário beneficia Dilma tremendamente. Marina era a única com chance de surfar na onda moralista dos indignados. A única que poderia capitalizar os protestos do meio do ano. A única que tinha chance de atingir os que querem "algo novo". Sem ela, a situação ficou bastante previsível. O que sempre beneficia um governo com altos graus de aprovação. Analisemos as opções concretas à Dilma. Aécio Neves não tem ideias, projetos ou projeção nacional. Repete um argumento vagamente liberal, sem delinear o que faria para transformar o Brasil em um país melhor do que é hoje. Pelo simples fato de que não tem ideia de como fazer isso. Situação que fica ainda pior quando pensamos que é filiado a um partido, o PSDB, que não consegue decidir quem é. A outra opção é Eduardo Campos. Seu projeto é claro: ser o "nem PT nem PSDB". Aposta no cansaço do eleitor em relação à polarização que define o cenário político nacional há 20 anos. Em tese não é uma ideia ruim. Ainda mais porque é alguém que foi da base governista mas adota um discurso liberal, exatamente pensando em roubar votos dos dois lados. Mas sem Marina, a tendencia para a polarização PT-PSDB se manter ficou enorme. Dificilmente um político desconhecido e com tão pouco tempo de TV poderá romper com essa tendência. A história nos ensina que a política é um campo em que as coisas mudam muito rápido. Assim, qualquer previsão pode ser desmentida em 15 minutos. Mas no cenário atual, tudo aponta para a reeleição de Dilma. A impossibilidade da candidatura Marina Silva parece sacramentar o fato. Independente do que pensemos a respeito.

domingo, 29 de setembro de 2013

O Brasil visto de fora

Uma coisa extraordinária de sair do Brasil é o deslocamento que isso nos proporciona. Coisas que temos como naturais e imutáveis, encaradas a partir de outra realidade, passam a ser vistas como o que são: construções sociais que existem por nossa opção, e por nossa opção podem ser mudadas quando quisermos. É, a meu ver, a grande vantagem de conhecer culturas diferentes. Não o que se aprende de novidade, mas sim o novo olhar que a experiência proporciona em relação a nós mesmos. Vou escrever um pouco sobre isso nos próximos dias. Começo falando de futebol, mas não estritamente sobre isso. Quem não se interessa pelo assunto pode seguir a leitura sem stress. Vi dois jogos no estádio. Torino X Verona e Torino x Juventus, ambos no Estádio Olímpico de Turim. Jogos fracos. O primeiro, um encontro entre duas equipes da metade da tabela do campeonato italiano. A maioria dos jogadores não teria a menor chance em clubes grandes brasileiros. Teriam que se contentar com times fracos da primeira divisão ou até atuar na série B. Vi jogos na nossa segunda divisão melhores que esse de quarta feira. Hoje vi o clássico Torino x Juventus, um encontro entre um time fraco e outro forte, mas desfalcado de um par de jogadores importantes. Foi melhor que o de quarta, mas fraco. Todo domingo vemos no Brasil jogos melhores do que esse. Há mais. Há torcedores organizados violentos, tal como aqui. A imprensa, então, é um capítulo à parte. Na quarta usei minha credencial de jornalista para ver o jogo da tribuna da imprensa. Os caras literalmente se comportam como torcedores. Na minha frente um radialista várias vezes passou a palavra ao repórter de campo, fechou o microfone e danou a xingar o juiz, algo que nunca tinha visto. Ou seja, nada muito empolgante. Mas a experiência de ver o jogo é completamente diferente. Voce compra ingresso antes, com lugar marcado, não enfrenta fila para entrar, não é incomodado, não paga preços exorbitantes por comida e bebida, pode chegar faltando 1 minuto para começar o jogo e estar sentado quando a bola rola. O estádio não tem nada de espetacular mas é confortável e bem cuidado, o gramado é excelente e o placar eletrônico dá todas as informações necessárias. Em suma, o espetáculo em si é o que temos aqui, ao menos os jogos que vi. Mas a vida do torcedor é mil vezes melhor. E eu me pergunto: é impossível fazer isso aqui? Até onde me dou conta, das coisas que vi no estádio e que são melhores do que temos no Brasil, nenhuma depende de grandes investimentos. Por que não fazemos? Por que nós, torcedores, aceitamos passivamente sermos tão maltratados, apesar de sermos consumidores que financiam o espetáculo? Somos um país mais pobre que a Itália. Não dá para querer que nossos times tenham jogadores como Buffon, Pirlo, Balotelli e outros do tipo. Mas convenhamos: não precisa ser um país de primeiro mundo para organizar decentemente uma partida de futebol e dar conforto ao torcedor, certo?

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Homossexualismo, religião, política e liberdade


Vários amigos, companheiros esquerdistas, compartilharam imagens de duas mulheres apanhando e sendo presas por se beijar num evento promovido por Marcos Feliciano. Qualquer pessoa que me conhece sabe que detesto esse cidadão e acho um absurdo o que houve com as moças. Mas vou dizer uma coisa: elas estavam completamente erradas. Por dois motivos.
O primeiro é teórico. Se queremos viver numa sociedade livre temos de aceitar o pensamento de qualquer pessoa, por pior que ele nos pareça, ao menos que ameace o direito dos outros de ter seu próprio pensamento. E a liberdade religiosa é um dos valores mais caros da democracia. Permitiu que gerações inteiras vivessem suas próprias experiências fora da religião dominante. Permite que seja possível ser ateu, ou professar candomblé, espiritismo ou qualquer outra crença em um país católico como o nosso.
Só que liberdade não pode ser a liberdade de fazer aquilo que a gente acha legal. Tem de ser toda a liberdade para todos. E certamente aquelas duas achariam intolerável que alguém protestasse contra os homossexuais na parada gay. Por que acharam que podiam afrontar a crença alheia em um evento religioso que nada tinha a ver com homossexualismo?
Porque estão cansadas de serem definidas em termos de sua orientação sexual. Ok, tá certo. Compartilho desse sentimento. Também me parece inaceitável que a orientação sexual seja motivo para discriminação. Mas a liberdade inclui o direito de ter ideias que nos parecem imbecis. E aquelas pessoas que estavam naquele evento não estavam lá para fazer nada contra homossexuais. Nada justifica aquela atitude, como nada justifica a ação de pessoas que foram encher o saco do Feliciano num vôo. Ali ele era um cidadão viajando, nada mais. Aquelas pessoas aceitariam que o Jean Wyllys recebesse o mesmo tratamento por expressar o que ele pensa?
Mas há um segundo conjunto de razões, que é político. Quanto mais atacamos Feliciano, mais o engordamos. Temos de fazer essa autocrítica: ele era um parlamentar evangélico como tantos outros. Quem o transformou em ícone não foram os evangélicos. Fomos nós. Demos uma importância que ele não tinha, e o transformamos numa celebridade nacional. Proporcionamos a ele um discurso defensivo que ele não tinha. Quando o trollamos num vôo, quando vamos lá beijar pessoas do mesmo sexo num evento religioso que nada tinha a ver com isso, damos a ele, e a muitos outros, argumentos para se considerarem perseguidos numa ditadura gay. O argumento é absurdo, mas embasado em atitudes nossas. Temos muito a ver com esse monstro, muito mais do que queremos admitir.
Que lutemos contra a discriminação contra orientação sexual. Mas que saibamos como fazer isso. Eventos religiosos não são o espaço para isso, pois ferir o princípio da liberdade religiosa não ajuda em nada. Dar argumentos para eles se mostrarem como vítimas tampouco vai ajudar. Há formas muito mais efetivas de agir. Por exemplo: se indignar com o fato de as paradas gays terem se transformado em eventos comerciais que nem fingem tentar ajudar a causa da igualdade civil. Que tal começarmos por aí?

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A "vitória" petista no Supremo

Na minha modesta opinião, a aceitação, pelo STF, dos embargos infringentes, foi uma enorme derrota para o governo. E vou explicar por que.
Primeiro: a opinião pública já decidiu que os réus são culpados. Gostemos disso ou não, é um fato. Uma eventual absolvição dos envolvidos ajudaria apenas a eles. Se ocorrer, apenas reforçará em muita gente a desconfiança perante as instituições e a certeza de que a impunidade dos poderosos reina no Brasil. Quem acha que o governo petista tem a corrupção como marca principal não mudará um milímetro de opinião caso um novo julgamento tenha resultado diferente.
Segundo: um novo julgamento é tudo o que a oposição quer. Uma vez que a opinião pública já deu seu veredito, o ideal para o lulo-petismo seria a resolução rápida para a questão, para que o tema saia da pauta o quanto antes. Para a oposição, um novo julgamento é a chance de manter o mensalão no centro do debate. Um novo julgamento é uma oportunidade extra para a oposição não precisar expressar seus projetos para o país, não ter de responder pergunta embaraçosas sobre privatizações e navegar alegremente na indignação dos "cansados". Para a oposição isso é ir para o céu sem precisar morrer.
Terceiro: para a galera da indignação seletiva (aqueles que só odeiam a corrupção do PT) é absolutamente perfeito. Hoje farão trilhões de posts nas redes sociais histéricos com a decisão, como se ela fosse sinônimo de absolvição. Passarão meses mostrando como são politizados e engajados protestando contra a impunidade. E quando houver o novo julgamento (que dificilmente absolverá alguém, já que é o mesmo caso com os mesmos juízes), exultarão de alegria e mostrarão seu interesse pela política festejando a nova condenação. Vai ser difícil explicar como é possível que tenham achado o Supremo o máximo quando condenou os réus, ridículo quando aceitou os embargos infringentes e maravilhoso de novo ao condenar em caráter definitivo. Mas quem liga para detalhes?
O governo não ganhou nada com essa decisão, nem o PT. Quem ganhou foram os réus, a oposição e os indignados apolíticos. Para eles, um futuro brilhante se desenha

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Por que não teremos um golpe


A crescente radicalização da política brasileira (e latinoamericana), com dois lados se odiando cada dia mais, tem levado muita gente a temer a possibilidade de mais um golpe de estado. Entendo a preocupação, já que somos um continente com um longo histórico de instabilidade política. Mas não vejo nenhum motivo para que algo assim aconteça.
Nesse ponto, a história brasileira se assemelha à dos vizinhos. Após a enorme instabilidade do século XIX, marcado pela consolidação dos estados nacionais, no século XX a grande maioria das quebras da normalidade democrática se deram em dois momentos muito específicos: a ascensão do autoritarismo anti-liberal no entre guerras (um fenômeno mundial) e o contexto da guerra fria, em que os EUA patrocinavam ditaduras mundo afora para barrar o comunismo.
Nesses contextos havia elementos que não existem hoje. Nos anos 30/40 havia o descrédito generalizado no liberalismo, e a democracia passou a ser vista como algo pouco relevante, em um momento em que se salvar da catastrófica crise econômica era o mais importante. Não há nada parecido hoje.
A geração seguinte de golpes em massa tinha outra característica. Os EUA estavam dispostos a tolerar de tudo para impedir a repetição da Revolução Cubana em seu quintal. Os militares, fortemente ideologizados, tinham um projeto de nação, que não se resumia a bloquear o comunismo. No caso brasileiro, a manutenção do nacional-desenvolvimentismo, mas com "segurança" (leia-se: sem sindicatos, críticas, oposição, etc.)
Não é o caso atual. A América Latina não é o foco das preocupações norte-americanas, e na verdade os governantes de lá estão felizes de entregar ao Brasil o gerenciamento da geopolítica regional, para não ter de lidar com isso. Os militares não se vêem nem são vistos pela sociedade como atores políticos, e não têm nada parecido com um projeto para o país.
E há mais. Por mais que seja agressiva com o governo, a oposição brasileira não tem nada de golpista. Por mais que os defensores mais histéricos do lulo-petismo vejam golpismo na oposição brasileira, ninguém em sã consciência pode imaginar Marina Silva ou Aécio Neves apoiando uma quebra da normalidade democrática. Isso simplesmente não vai acontecer.
Existe sim, uma oposição raivosa. Mas mesmo sendo eleitor do governo petista, tenho de reconhecer: não é esse o papel dela? Não era isso o que fazíamos nos anos 90? Tenhamos autocrítica: criticávamos inclusive as coisas boas do governo FHC, pois estávamos na oposição. Não podemos reclamar de eles fazerem isso hoje em dia.
Sobram os protestos, dos indignados, cansados, moralistas, e sei lá o que mais. Mas ali não há nada para embasar um golpe. Não há armas, projeto político (a agenda é puramente negativa), ideologia ou políticos que verbalizem a causa (que também não existe). Os democratas podem dormir em paz. Um golpe simplesmente não é uma possibilidade atualmente.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Por que todo latino americano deveria amar Victor Jara


Victor Jara foi assassinado há 40 anos. Não era um guerrilheiro nem um representante de uma ditadura comunista. Era um músico que apoiava um governo eleito nas urnas. Morto cruelmente por uma ditadura.
A morte cruel de Victor Jara (dezenas de tiros, dedos quebrados, etc.) nos coloca diante de um dilema. Uma encruzilhada que a América Latina vive, e não é de hoje.
De um lado estão os que há 200 anos estão do lado vencedor. A narrativa deles é simples e direta. Os chilenos foram imbecis por terem votado em Allende, o continente é formado por retardados que insistem em votar em gente que não sabe o que faz, mas graças a deus existem os EUA e os militarem para reestabelecer a racionalidade do universo.
Do outro lado estão os que acham que os latinoamericanos têm o direito de escolher seus governantes. Gente que acha que o resultado das urnas deve ser respeitado. Esse era o dilema naquele tempo, e é o mesmo de hoje.
Hoje vemos por aí gente que está muito gorda, graças ao dinheiro da elite. Para eles, que apoiaram todas as ditaduras do continente, governar para os mais necessitados é ditadura. É ser insuportável. É ser populista e demagógico. Do alto de seus escritórios com ar condicionado insistem que ajudar os que mais precisam é uma forma de demagogia.
Do outro lado, está a América Latina profunda. Aquela que nunca viu médico, professor ou dinheiro antes dos governos que estão aí. É essa América Latina que elege os governantes do continente. Cientes de que se defrontaram com o primeiro governo que reconheceu sua existência e fez algo por eles.
Dizem que eles são burros, ignorantes e apolíticos. Como se, caso isso fosse verdade, os que governaram o continente nos últimos 200 anos nada tivessem com isso. Como se essa gente toda não tivesse nenhuma responsabilidade nesse cenário. Como se eles não tivessem tido todo o tempo e todos os meios para mudar isso, sem terem feito nada, por escolha deles.
Nas cidades, os favorecidos esperneiam de raiva nas redes sociais. Mas na América Latina profunda, esses tidos como ladrões demagogos são heróis. Isso é a melhor parte: esses abandonados pelo Estado só existem porque essa gente nunca ligou para eles. E agora os mantém bem longe do poder. Victor Jara acharia o máximo

domingo, 15 de setembro de 2013

Sobre o julgamento do mensalão: um "post-pergunta"


Acho que a maioria dos que me lêem está cansada de saber disso, mas não custa lembrar: sou bacharel, mestre e doutor em história. Não tenho nenhuma formação ou experiência jurídica. Tudo que segue abaixo está condicionado a isso.
Por outro lado, tenho mais de 20 anos de vida acadêmica, e isso me ensinou algo muito importante: é essencial ter toda a cautela do mundo em relação a conclusões definitivas, sobretudo se se trata de leigos na matéria (no caso, eu estou entre eles) guiados por sentimentos, muito mais do que pelo conhecimento.
Este post é motivado pelo seguinte. Nos últimos dias meu facebook foi inundado por posts de pessoas (várias das quais merecem toda a consideração do universo, pois são pessoas maravilhosas e tenho certeza de que são bem intencionadas) que estão à beira de um ataque nervoso com o julgamento que se desenrola no STF.
A avaliação dessas pessoas é que o STF está prestes a anular a condenação dos réus do mensalão, em mais uma prova irrefutável de que a corrupção neste país é livre, e que os malditos políticos têm salvo-conduto para nos roubar à vontade.
Leigo que sou, procurei me informar sobre o assunto. E pelo que li, não é nada disso que está acontecendo. A questão é que há legislação garantindo o direito a um novo julgamento para aqueles que tiveram ao menos quatro votos a favor no STF. E que se trata justamente de decidir se essa legislação ainda é vigente. Se for, eles têm direito a um novo julgamento, garantido por lei. Se não, o julgamento está mantido.
Não sou criança. Claro que sei que interpretação da lei é algo subjetivo, que envolve muitas coisas, que incluem a convicção política. Mas isso não vale apenas para esse caso particular, vale para qualquer julgamento, inclusive o do mensalão, que essas mesmas pessoas agora indignadas tanto festejaram.
Posso estar enganado, mas até onde sei, um dos pressupostos da existência dos três poderes é justamente a existência de um deles (o judiciário), formado por pessoas cujos empregos não dependem de votos nem das flutuações do humor da opinião pública. Nesse sentido, estritamente institucional, a condenação de réus que integraram o governo mais popular da história do país foi uma vitória. Uma eventual decisão de que alguns dos réus têm direito legal a um novo julgamento, no ápice da histeria moralista desencadeada pelos protestos teria o mesmo valor. Reafirmando: falo em termos teóricos, institucionais, não falo do mérito, do qual sequer tenho elementos para opinar.
Melhor ficarmos calmos. A verdade é que ninguém será declarado culpado ou inocente pelo voto de Celso de Mello. O que será decidido é se a lei dá ou não o direito a um novo julgamento a alguns desses réus. A complexidade da questão, do ponto de vista jurídico, é suficientemente evidenciada pela votação apertada. Se nem os especialistas em direito da mais alta corte jurídica do país conseguem chegar vagamente perto de uma unanimidade, por que nós, leigos ignorantes, poderíamos ter tanta certeza sobre qual seria a decisão correta?
Já carregamos um fardo pesado demais. Somos uma sociedade corrupta, que elege políticos corruptos e tolera a impunidade, a despeito da gritaria hipócrita (frequentemente quem condena o político ladrão é a mesma pessoa que sonega imposto ou dá a graninha pra ser liberado pelo guarda). Já é insuportável demais.
Se decidirem que não vai haver um novo julgamento, nada muda. Se decidirem que vai haver, nada impede que a decisão seja a mesma, até porque os juízes serão os mesmos. Essa decisão não tem essa importância toda. Não há razão para tanto nervosismo.
Mas é o que disse: sou leigo na matéria. Se eu estiver errado, me avisem.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Chile, 40 anos depois


Há 40 anos o governo democrático, eleito e constitucional, comandado por Salvador Allende, era derrubado por um golpe militar liderado por Augusto Pinochet. Um fato tão repleto de significados que não há post que dê conta do assunto.
Para começar, não há dúvidas de que dentre todos os golpes militares que a América Latina conheceu naqueles anos, nenhum doeu mais do que o de 11 de setembro de 1973. Até onde sei, Allende foi o único humano da história universal a chegar ao poder de forma democrática propondo levar seu país ao socialismo. Assim, o Chile foi o único país a ir as urnas e eleger um chefe de Estado com uma proposta clara e inequivocamente marxista. O que dá muito o que pensar.
Ignorantes e mal intencionados adoram repetir a seguinte frase: "no capitalismo é possível ser socialista. mas no socialismo é impossível ser capitalista". MENTIRA. O capitalismo historicamente investiu tremendamente em impedir a auto-determinação dos povos quando ela ameaçava o sistema econômico dominante. Allende foi eleito democraticamente. O governo venceu de forma inquestionável as eleições parlamentares de 1973. O presidente chileno foi derrubado unicamente por comandar um governo ideologicamente socialista num hemisfério capitalista. Uma lembrança de que o capitalismo jamais tolerou oposição. Só passou a aceitar os socialistas quando o regime que defendiam deixou de ser uma possibilidade real. Quando ameaçado, reagia com a mesma brutalidade e intolerância ditatoriais que, em seu discurso, são exclusividade de Stalin, Mao e Fidel.
Há mais. A derrubada de Allende levou a um extremo imensurável a fórmula que sempre garantiu a manutenção do poder nas mãos da elite tradicional latino-americana. A princípio, não houve muita novidade: militares, burgueses, fazendeiros, imprensa e religiosos, fartamente financiados pelos EUA, garantindo que a massa despossuída seguisse na miséria. De fato foi isso mesmo. Mas em um nível que não se vê em outros episódios do tipo. É possível argumentar que parte significativa das sociedades brasileira e argentina quisessem o fim dos governos Goulart e Isabelita. Mas é indefensável a ideia de que a queda de Allende tivesse respaldo popular. Foi, mais claramente do que qualquer um, um golpe dos privilegiados contra a vontade popular. E foi apenas o ponto final de uma trajetória de sabotagem e jogo sujo. E nesse caso os EUA simplesmente dispensaram qualquer formalidade pseudo-democrática: sua marinha estava estacionada no limite das águas territoriais chilenas. Se algo desse errado, eles invadiriam o país e resolveriam o problema rapidamente.
Mas talvez o mais doloroso de tudo tenha sido o caráter simbólico do golpe. O Brasil era uma ditadura há 9 anos. A Argentina tentava retomar a democracia, mas se mantinha instável há décadas. Até o Uruguai, talvez o maior bastião da democracia sul-americana, havia caído nas mãos de uma ditadura. Até 11 de setembro de 1973 o Chile era a ultima barreira. Ainda melhor: uma barreira construída pelo seu povo, principalmente os mais pobres e necessitados. Quando essa barreira caiu, nada restou. Há 40 anos, a América do Sul entrava de forma indiscutível no mundo das trevas. Há 40 anos atrás acabava toda a esperança de mudar a triste realidade do nosso continente. A esperança saiu de campo, para só retornar muitos anos depois.