sábado, 8 de novembro de 2014

O Brasil não está dividido



No calor da apertada vitória de Dilma mês passado não faltou quem visse nos resultados um sintoma da divisão do país. De um lado pobres e intelectuais, votando em Dilma. Do outro as classes médias e altas votando em Aécio. O fato de a maior vitória de Dilma ter sido no estado mais pobre da federação (Maranhão) e a maior vitória de Aécio ter ocorrido no estado mais "branco" da nação (Santa Catarina) parecia prova irrefutável do argumento. Aí aquele mapa do Brasil com os estados em que Dilma teve maioria pintados de vermelho, e os estados "aecistas" de azul rodaram o país. A teoria dos "dois brasis" parecia provada: Dilma, a candidata dos pobres, simbolizada por sua votação gigante no nordeste, e Aécio, o candidato dos brancos bem nascidos.

Infelizmente a vida não é tão simples. Pra começar, um candidato ter maioria em algum estado não significa que aquela unidade da federação seja dele, nem mesmo que ele tenha conquistado ampla maioria lá. Aécio ganhou apertado no Rio Grande do Sul, e Dilma venceu por pouco em Minas Gerais. Assim, pintar um estado qualquer de vermelho ou azul no mapa significa bem pouco. Os dois estados citados servem como exemplo. São estados que nos Estados Unidos seriam chamados de "estado-pêndulo", que às vezes vão para um lado, às vezes para outro. Não são classicamente destinados a nenhuma tendência política.

Na verdade há aí um grande erro, que é o de imaginar que o fato de que um candidato tem mais votos em um estado quer dizer grande coisa. O equívoco é que se trata de um conceito importado dos Estados Unidos, onde isso de fato faz sentido. Lá o presidente é eleito por um colégio eleitoral, em que o candidato mais votado em cada estado leva todos os eleitores daquela unidade da federação (o sistema "the winner takes it all", vulgo, o vencedor leva tudo). Num sistema assim faz sentido pintar um estado de azul ou vermelho mesmo que um partido tenha vencido lá por um mísero voto que seja. Mas no sistema brasileiro tanto faz. Meu voto aqui em Pernambuco em Dilma e o do meu vizinho em Aécio valeram exatamente igual e foram contados da mesma maneira. Pintar estados com as cores do partido vencedor não faz o menor sentido.

Mas podemos ir mais longe. Em qualquer democracia consolidada do planeta o fenômeno de estados que tendem a votar em um partido é comum. Podemos citar os Estados Unidos, que possuem a chamada "cunha republicana", que engloba os estados do centro oeste e do sul, sempre propensos a votar no partido republicano. Enquanto a costa oeste e o nordeste tradicionalmente pendem para os democratas. Aqui do nosso lado temos a Argentina, onde há 70 anos o norte e o sul votam sistematicamente no peronismo, assim como a provincia de Buenos Aires, enquanto o antiperonismo costuma se dar melhor na capital e em províncias agrárias ricas, como Santa Fé, Córdoba e Mendoza. No Uruguai desde o século XIX os blancos tem seu melhor desempenho nos departamentos rurais, enquanto os colorados fazem a festa nos mais urbanizados (e nos últimos 30 anos a Frente Amplio passou a ter Montevidéu como base). Então termos partes do Brasil mais ligadas ao governo e outras tendendo a oposição não tem nada de mal. Faz parte do jogo.

E há ainda uma parte ainda mais indefensável do argumento: o fato de a vitória de Dilma não ter sido de goleada. Na verdade não foi uma diferença pequena: 3,5 milhões de votos são mais do que a população inteira do Uruguai. Mas ainda assim isso foi usado para argumentar que o país está dividido, já que foi a menor diferença percentual na história das eleições presidenciais brasileiras. Mas aí cabe a pergunta: e daí? A lógica de uma eleição não é que o candidato mais votado governe? Não é esperado que em algumas eleições o vencedor terá uma grande margem de vantagem e em outras essa margem será menor? O argumento é completamente inócuo e falacioso.

Na verdade essa análise que identifica o país como dividido e vê isso como algo negativo é algo que se sustenta em uma série de equívocos. O primeiro é uma tradição do jornalismo político brasileiro: o imediatismo. No calor da hora são realizadas análises que se supõem definitivas. O jornalismo político brasileiro ainda não teve seu Fernand Braudel, para explicar a irrelevância das flutuações diárias da política, indicando que os movimentos de duração mais longa é que devem ser privilegiados.

Mas também não precisamos ser ingênuos. Claro que há um grande viés político nessa análise. Aos direitistas mais raivosos interessa difundir a ideia de que o PT dividiu o país artificialmente, inventando um ódio entre as regiões e entre as classes (mesmo que os discursos mais raivosos nesse sentido tenham sido de políticos e eleitores de Aécio bradando contra um suposto voto nordestino a favor do governo). Aos governistas mais nervosos também interessa o argumento. Afinal, dá a eles base para desenvolver uma versão paupérrima da ideia de luta de classes, em que os pobres votam em Dilma e os ricos em Aécio. Abundam dados desmentindo os dois lados: o maior crescimento de Dilma no segundo turno foi em regiões em que o bolsa família não é importante, e Aécio ganhou em todas as regiões da cidade de São Paulo, incluindo as periferias mais pobres, redutos históricos do PT desde os anos 1980. Mas o argumento pobre era validado por essa lógica ridícula do país dividido.

Num resumo extremo, eu diria que a lógica do país dividido não faz nenhum sentido e só interessa aos mais nervosos dos dois lados. O Brasil que vejo está como sempre. E acabou de passar pela eleição mais legal de sua história. Um referendo sobre os 12 anos do PT no poder, em que todos foram obrigados a tomar partido. Meu lado venceu, o que me deixa particularmente feliz. Mas a divisão do país é apenas um delírio. O que valeu mesmo foi ver como nosso país deu um gigantesco soco na cara dos que dizem que aqui só se liga para futebol e carnaval. Pra mim essa foi a grande lição. Sabemos discutir política e nos importamos com ela. Se fizemos isso bem ou mal, aí é outra história.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A hora da auto crítica

Sou eleitor do governo. Mais que isso: militei insanamente por Dilma. Chorei como nunca quando ela ganhou a eleição. Não tenho a mais vaga dúvida que fiz o certo. Não podemos mesmo sair de um governo que proporcionou tantos avanços sociais para cair em um discurso que apenas prega o elitismo e o ódio ao que nosso governo está fazendo. Mas vamos combinar: precisamos fazer uma auto crítica muito séria. Muitas coisas não estão bem. Enumero algumas:

1) Corrupção. Evidentemente o PSDB não tem nenhuma moral para criticar o PT por isso. Nem nenhum grupo oposicionista. Todos tem lá seus episódios de corrupção, e não são poucos nem pequenos. Mais que isso: a oposição usou os episódios de corrupção do governo atual para despejar seu ódio pelo fato de a vida dos pobres ter melhorado nesses 12 anos. Não podiam confessar sua visão de elitista de mundo, então vociferavam contra o mensalão, como se só houvesse corrupção no PT. Hipocrisia pura. Mas isso não pode esconder para sempre o fato de que nosso governo deixou a roubalheira continuar como sempre. Semana passada, no dia seguinte à eleição, conversava com um sujeito que considero um dos melhores historiadores brasileiros, e ele me dizia "puta merda, cara, os camaradas precisam parar de roubar, pelo amor de deus". É isso. A hipocrisia e a histeria moralista e demófoba da oposição não podem ser usadas pra sempre como desculpa para as besteiras que acontecem no governo.

2) Por uma agenda do século XXI. Fantástico que o governo combata a pobreza. Isso é uma agenda do século XX que chegou viva ao século XXI graças à absoluta falta de sensibilidade social dos governos que vieram antes do PT. Como sabemos, isso garantiu a quarta vitória seguida ao PT. O nordeste mais uma vez despejou em massa seus votos pela manutenção de quem olhou por eles pela primeira vez em 500 anos. Maravilha. Mas e a agenda que domina o século XXI? Em relação a ela não tivemos nenhum avanço em 12 anos. Morrendo de medo dos conservadores e evangélicos, o PT nada fez em relação a coisas como política para drogas, direitos para homossexuais, aborto, e coisas assim. Profundamente lamentável. É claro que qualquer governo precisa estabelecer uma maioria parlamentar para governar, mas não é possível que fiquemos o resto da vida nos ajoelhando perante pessoas que vivem na Idade Média. Cristina Kirchner, por exemplo, entrou pra valer na briga pelo "matrimônio igualitário", e conseguiu aprová-lo, mesmo que com isso ganhasse a oposição virulenta do arcebispo de Buenos Aires, aquele mesmo que hoje se chama Papa Francisco e é o queridinho da esquerda. Em algum momento essas brigas terão de ser compradas.

3) Desastre político ideológico. Nos aspectos sociais e econômicos Lula e Dilma foram muito bem. A pobreza foi reduzida drasticamente, o país cresceu, o desemprego é baixíssimo. Mas a grande e incômoda verdade é: após 12 anos de governo petista o Brasil é tão conservador como sempre foi. Pior que isso: o governo petista estimulou uma verdadeira letargia ideológica no campo da esquerda. Algo como: se ganharmos a presidência o resto que se dane. Por isso elegemos esse congresso tão reacionário: simplesmente não demos importância a isso. Só pensamos na eleição para presidente. Por isso votamos em massa em péssimos candidatos a governador, simplesmente por que o PT decidiu que isso era melhor para garantir as alianças nas eleições presidenciais. Aqui em Pernambuco, por exemplo, o PT apoiou um tipo lamentável como Armando Monteiro. Votei no candidato do PSOL, mas meus amigos da minha geração em sua maioria votaram em Armando, envergonhados, mas achando que era o melhor para o partido. Já meus alunos de vinte anos não tiveram pruridos: votaram nesse lixo sem nenhuma dor de consciência. É a geração que o PT está criando. De esquerda, mas sem nenhuma preocupação com a coerência. Não é que meus alunos estejam errados. Simplesmente são filhos desse governo. Se preocupam com a vitória nas eleições presidenciais. (meus alunos, eu amo vocês, mas lamento muito que vocês tenham se formado politicamente sob essa lógica descrita acima. vocês podem e merecem mais que isso)

4) Alianças. Mais uma vez: existe uma coisa da qual não podemos fugir chamada governabilidade. Ok, qualquer governante precisa se aliar a pessoas com quem não sente qualquer identidade política. Mas precisamos mesmo ver Lula e Haddad tirando foto ao lado de um decadende Paulo Maluf que ainda por cima se mostra incapaz de transferir seus hipotéticos votos para o PT? Realmente nos ajuda em algum sentido ver Fernando Collor de Melo, contra quem minha geração foi à rua e que causou uma derrota que nos traumatizou pela eternidade, a nosso lado pedindo votos para Dilma? Talvez nada ilustre melhor o que digo neste item do que a patética imagem de um Sarney cambaleante com adesivo da Dilma e votando em Aécio. Realmente precisamos disso para a governabilidade?

5)O abandono das ruas. Uma das mais gloriosas tradições da esquerda mundial é seu amor pelas ruas, assim como sua inserção nos movimentos sociais. E essas eleições testemunharam uma absurda indiferença do PT nesse campo. Não é que a campanha governista tenha fracassado em colocar a militância nas ruas. Ela simplesmente não tentou fazer isso. Parece claro que o partido se convenceu que para vencer basta fazer alianças que garantam um bom tempo na propaganda eleitoral gratuita e botar um marqueteiro competente para mostrar as realizações do governo para que a vitória seja certa. E o susto monumental que tomamos neste ano mostrou que não é assim. Quando as pesquisas mostraram Aécio à frente a duas semanas do segundo turno a militância quis tomar as ruas para ajudar Dilma, e isso pegou o PT de surpresa. Não estavam preparados para isso. Aqui no Recife a militância foi para a rua em eventos organizados fora do partido e sem nenhuma ajuda partidária. Os figurões nem se davam ao trabalho de comparecer. Pelo que me contam os amigos, a história foi a mesma em outras partes do país. Não pode. Simplesmente não pode.

Infelizmente não acho que o partido e o governo vão aprender qualquer coisa com o susto deste ano. Estão convencidos demais que o fato de ser o melhor governo da história do país garante sozinho a vitória nas eleições presidenciais, que é a única coisa que importa a eles. E se perder, ouviremos aquela lista de desculpas prontas: mídia golpista, blá blá bla. Uma pena.