sexta-feira, 30 de março de 2012

Olvido y Perdón



Em 1992 a queda de Collor fez com que pela primeira vez o Brasil tivesse um presidente que construiu sua carreira em oposição ao regime militar. Mas em seus dois anos de governo Itamar Franco nada fez para buscar justiça quanto aos ocorridos naquele período. Mais dois anos e foi a vez de FHC chegar lá. Brilhante intelectual aposentado compulsoriamente pelo regime, FHC foi catapultado para a carreira política em função de seus textos muitíssimo lúcidos em que analisava de forma crítica o que o Brasil vivia naqueles anos. Mas tampouco quis mexer com o assunto.
Mais oito anos e foi a vez de Lula. Nome essencial de um partido que construiu sua trajetória a partir da contestação ao regime e grande líder sindical do período final da ditadura. Mas também não fez nada. Agora é a vez de Dilma, torturada pelos carrascos. Mas transige com eles. Cria uma comissão da verdade que é melhor que nada mas que cada vez mais vai sendo esvaziada.
O Brasil realmente não é para principiantes. Somos governados há mais de 20 anos por grupos que se opuseram ao regime, e em vários casos pagaram caro por isso. Na esfera pública há uma unanimidade de que o regime foi uma catástrofe (ainda que no silêncio dos esgotos há quem sinta saudades daquele tempo). Mas não acontece nada.
Ou melhor: acontece. A farra das indenizações, que em muitos casos nem se justifica. O próprio Lula é um exemplo: não me parece razoável que 30 dias de prisão que em nada mudaram sua vida justifique uma pensão eterna do Estado. Uma indenização seria muito mais justa.
Mas esse é o Brasil. Um país em que tudo se acoxambra. A ausência de justiça para os monstros e a indenização como paliativo (um verdadeiro "cala-boca" que não substitui em nada a justiça real) são a cara de um país em que tudo se resolve na base do compromisso. É assim mesmo que somos. Não queremos confusão. Preferimos a injustiça silenciosa que a luta por justiça.
Nunca dou a Argentina como modelo de nada. É um país cheio de problemas, e com uma cultura política totalmente complicada, personalista e turbulenta. Mas com todos os seus problemas, os hermanos estão dando uma aula nesse assunto a todos os seus vizinhos. O kirchnerismo (tão ridicularizado pela direita e esquerda brazucas) está lutando bravamente para estabelecer a justiça histórica. Nos últimos 10 anos muitos verdugos encararam julgamentos e foram condenados a penas duríssimas.
Lá o lema é "ni olvido ni perdón" (nem esquecimento nem perdão). Aqui é o contrário. No Brasil impera um pacto implícito que diz mais ou menos o seguinte: "os prejudicados serão compensados financeiramente, os monstros ficam em paz, todo mundo critica o regime mas ninguém faz nada contra seus protagonistas". Isso é a cara do Brasil. Uma cara horrorosa.

50 anos de mais um golpe



Nesta semana completamos 50 anos do golpe que derrubou Arturo Frondizi da presidência argentina. Um evento que dá o que pensar, já que Frondizi não era esquerdista, na verdade era um liberal ao estilo JK, com o qual estabeleceu excelentes relações.
A história começa em 1955, quando os militares derrubaram Perón da presidência. A "Libertadora" manteve o poder por 3 anos, e levou a cabo a "desperonização". Em 1958 avaliaram que o país estava livre do peronismo e autorizaram eleições.
Frondizi percebeu que era impossível vencer aquelas eleições sem o apoio da massa peronista. E se candidatou prometendo legalizar o movimento proscrito. O peronismo despejou seus votos nele, que venceu de lavada. Mas em 1961 Frondizi resolveu cumprir o que havia prometido e legalizar o peronismo. Foi derrubado no ano seguinte.
Assumiu um governo provisório, que presidiu as eleições seguintes. E a história se repetiu. Novamente venceu o candidato que prometeu aceitar a volta de Perón. Seus seguidores votaram em Arturo Illia por isso, e o candidato assumiu a presidência. Quando pensou em cumprir a promessa teve o mesmo destino de seu antecessor. Em 1966 foi derrubado pelos militares, que dessa vez resolveram manter uma ditadura mais longa.
Em 1973 finalmente aceitaram eleições livres. O peronista Hector Campora venceu facilmente, autorizou o retorno de Perón e renunciou, convocando novas eleições. Aos 78 anos Perón voltou a Argentina depois de 18 anos e se elegeu presidente. Morreu no ano seguinte, deixando o poder nas mãos de sua inepta viúva, derrubada por um golpe militar em 1976.
O resultado foi que a Argentina foi provavelmente o país mais instável politicamente desse tempo. Entre 1955 e 1983 foram 18 presidentes, 4 deles derrubados (Perón, Frondizi, Illia e Isabelita Perón) e 3 ditaduras. Ao fim, o país que havia sido a sexta economia do mundo havia se transformado em mais uma nação terceiro-mundista.
Tudo isso por uma simples e única razão. A população do país era peronista. Queria votar na corrente que gostava. Mas para a elite e o exército isso não era tolerável. A desgraça argentina foi ter uma população que não votava como essa gente queria. Pois para a direita latino-americana democracia é um conceito relativo. Só vale se o povo votar "certo". Se votar em quem essa gente não gosta, lá vem as armas.
Infelizmente para a Argentina seu povo era peronista. E a elite e o exército achavam que aceitar isso era antidemocrático. Infelizmente nosso continente é assim mesmo. Temos uma elite que não acha democrático que o povo vote em quem queira, e que o remédio é aplicar o corretivo das armas. Paciência.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Dilma: direita volver?



Acho absurdo que tanta gente ache que PT e PSDB são a mesma coisa. Basta olhar os governos FHC e Lula para ver muitas diferenças por todos os lados. Uma delas, a relação entre inflação e desenvolvimento. FHC não teve qualquer dúvida em sacrificar o desenvolvimento para garantir que a inflação não voltaria. Aceitou a recessão e desemprego em troca da certeza de que não precisaria lidar com crescimento de preços. Lula fez o oposto. Botou o pé no acelerador e o Brasil cresceu, ainda que com o risco da volta da inflação.
Sob essa ótica o governo Dilma está mais tucano que petista. Logo de cara meteu com força o pé no freio do crescimento, temendo a volta da inflação. Com ela o Brasil teve um crescimento baixíssimo mas controlou a inflação. O velho "remédio amargo" que FHC tantas vezes mencionou na campanha da reeleição em 1998.
Dos 48 meses do mandato de Dilma se passaram 16. Um terço, exatamente. Não é muito, mas também não é pouco. É o período em que ainda não dá pra ter clareza do resultado final do governo, mas é mais do que o bastante para ver quais são as prioridades.
Na verdade o aspecto mencionado não me preocupa tanto. Dilma ocupa seu primeiro cargo eletivo, e certamente teme ser vista como incompetente. O risco de volta da inflação não era irrelevante, e entendo que ela quis evitar o risco. Provavelmente ela já percebeu que exagerou na dose e reverterá parcialmente suas ações, buscando voltar a induzir o crescimento.
Me preocupo mais com outras coisas. Como as tais "concessões" à iniciativa privada, que se tivessem acontecido num governo tucano o PT chamaria de "privatizações". Ou a evidente tranquilidade com que se curva à bancada evangélica, praticamente sem pedir nada em troca.
Por outro lado está sua firmeza. Dilma está evidentemente sendo testada pelos partidos que só querem boquinhas no governo e está resistindo. Não está se deixando levar pela chantagem de "se não me der os cargos que quero vou para a oposição". A presidente sabe bem que é mero blefe de grupos que simplesmente não terão razão de existência se não forem governo, e está até fazendo o jogo certo com eles.
Em suma, ainda não dá pra saber muito bem onde isso vai dar. Mas melhor ficar atento. Há sinais de guinada à direita no ar. Afinal, convenhamos: ninguém é capa da Veja em tom tão elogioso por acaso.

terça-feira, 27 de março de 2012

Renato Russo



Hoje vi no twitter uma galera revoltada porque o Danilo Gentilli postou algo tipo "Renato Russo faria hoje 52 anos se tivesse usado camisinha". Nem me dei ao trabalho de ficar p. da vida. Tem idiota pra dizer de tudo e tem idiota pra gostar de tudo. Pra mim foi bom lembrar que era aniversário dele.
Renato Russo é um cara cuja popularidade renderia um bom estudo sobre o (sempre muito interessante) tema "como muitas pessoas podem gostar de uma mesma coisa por motivos muito diferentes". Afinal há vários Renatos Russos, concentrados em dois conjuntos de imagens.
Um deles, que a história parece ter registrado de forma predominante, é a do "poeta sensível". Essa imagem se consolidou ao longo dos anos 1990, na reta final da trajetória do Legião e nos discos solo do cantor. A morte prematura parece ter consolidado essa imagem. Que eventualmente pode se misturar à da "criança mimada", formando algo como uma versão brasileira do Jim Morrison, grande poeta, grande cantor, personalidade turbulenta, mártir do rock.
Nada contra. Mas essa não é de forma alguma a imagem que minha geração tinha dele nos anos 1980. Se alguém nos falasse essas coisas naquele tempo sequer entenderíamos. Para nós a Legião Urbana era uma banda que dizia o que queríamos ouvir. Havíamos acabado de nos dar conta de como era o mundo dos adultos, havíamos achado aquilo tudo uma porcaria sem fim. Detestávamos a ditadura, os políticos, a TV, a sociedade, a música que tocava no rádio. Enfim, éramos adolescentes revoltados. E os primeiros três discos da Legião eram tudo o que um adolescente revoltado poderia querer ouvir.
O primeiro disco era mais raivoso. Tinha coisas (que não fizeram sucesso) como "O Reggae", "Baader-Meinhof Blues" e "A Dança", hinos da minha juventude. Mas havia também aquelas em que a indignação ganhava uma veia mais poética, e foram essas canções que fizeram mais sucesso, como "Será", "Por Enquanto", "Ainda é Cedo" e "Soldados". A grande exceção era "Geração Coca-Cola", que ainda que pertencente ao primeiro grupo, fez muito sucesso.
O segundo disco era diferente. Era claramente a mesma banda, tanto que várias canções poderiam estar no primeiro álbum ("Metrópole" o exemplo mais óbvio), mas com outro espírito. Mais lírico, intimista, um pouco melancólico até. Mas a raiva e o sofrimento estavam lá. As músicas eram brilhantes, e Renato Russo havia chegado a um ponto em que esses sentimentos apareciam de forma muito menos crua e mais sofisticada. "Índios", Fábrica", "Andrea Doria", a grande "Tempo Perdido" e a maravilhosa "Daniel na Cova dos Leões" (pra mim a melhor música da banda) eram provas disso.
O terceiro disco na verdade era o primeiro, já que (exceto "Angra dos Reis" e "Mais do Mesmo") eram músicas bem antigas. Talvez por isso o disco esteja encharcado de um sentimento juvenil quase atemporal que é responsável por clássicos como "Que Pais é Este?". Era o disco que continha o mais improvável hit do pop-rock brazuca, a gigantesca "Faroeste Caboclo". Também era o disco que tinha a mais divertida música da banda, "Depois do Começo", que entra fácil na lista das minhas favoritas.
Veio o quarto disco, o quinto, e cada vez mais Renato Russo investiu em ser o tal "Jim Morrison brasileiro", um poeta egocêntrico, amado e idolatrado, com carreira errática. Por isso mesmo entendo que sua imagem tenha terminado por ser mais associada a esse tipo de coisa. Mas pra mim o Renato Russo que ficou foi o primeiro, dos primeiros discos de sua banda. Tenho uma dívida com esse Renato Russo que jamais poderei pagar. Foi ele que me mostrou que eu não era louco por achar o mundo dos adultos uma droga, e que na verdade eu estava certo. Nada pode ser mais importante para um adolescente. Obrigado, Renato Russo.











sábado, 24 de março de 2012

Revendo a TV



Confesso que a morte do Chico Anísio me abalou bastante. Foi o maior humorista que eu vi na minha vida. Pode ser que este post seja fruto apenas dessa comoção. Ou não.
Nós da esquerda sempre desconfiamos muito da TV. E nunca faltaram razões para isso. Ainda mais a minha geração, que viu a Globo tentando roubar a eleição de 1982 do Brizola, escondendo as Diretas e fazendo o que fez nas eleições de 1989. Que é um conjunto de empresas disposto a fazer valer aquilo que lhe interessa sem se importar com seu público é algo que só os mais ingênuos poderiam duvidar.
Mas o que me vem é: será que a TV é só isso? Será que ela não é algo mais?
Lembro de quando cheguei à universidade. E encontrei lá dezenas de colegas de turma, cada um de um lugar diferente. O que tínhamos em comum? A TV. Todos tínhamos crescido vendo Sítio do Pica-Pau Amarelo, Pantera Cor de Rosa, lembrávamos do dia em que o Plantão da Globo anunciou a morte de Elis Regina, e coisas do gênero. Essa era a grande referencia comum que tínhamos. Nossa sociabilidade nasceu daí.
E a morte do Chico Anísio me fez pensar muito nisso. Nas quintas a noite em que a família se juntava para ver o "Chico City" (depois "Chico Anísio Show"). Dos fins de tarde em que eu ia à casa da minha primeira namorada e assistia com ela e sua família a Escolinha do Professor Raimundo...
Aí vieram trilhões de lembranças. O Chacrinha nos sábados à tarde avacalhando tudo, o desenho do Vira-Lata na TVS (atual SBT) na hora do almoço, os maravilhosos personagens da Hannah-Barbera na Band nas tardes dos dias de semana, Luciano do Valle narrando a copa de 1982 na Globo como ninguém jamais narrou na TV brasileira, os magníficos especiais da Globo para crianças dirigidos por Augusto Cesar Vanucci ("Pirlimpimpim", "Arca de Noé", etc.), os adultos discutindo quem tinha matado Salomão Ayala em O Astro, o faroeste ao lado do meu inesquecível avô na TV Record (que só existia em São Paulo), a ótima TV Tupi, e assim por diante.
Que estamos certos em desconfiar da TV eu não tenho dúvidas. Continuemos assim. Mas será que não devemos pensar nela também em outros aspectos? Por exemplo, como criadora de lembranças coletivas (muitas delas maravilhosas) que são essenciais para nossa identidade? A criticidade quanto ao conteúdo não deveria conviver com o afeto das lembranças maravilhosas que ela nos proporciona?

24 de março


Na madrugada do dia 24 de março de 1976 Isabelita Perón foi derrubada por um golpe militar. A viúva de Perón era completamente despreparada e fez um governo desastroso. Mas as eleições estavam marcadas para aquele ano. Os militares não quiseram dar a oportunidade de mais um governo peronista e acharam melhor iniciar um verdadeiro reinado do terror.
Não gosto muito dessa coisa de discutir qual ditadura foi mais violenta. Isso abre margem para dizerem que a ditadura brasileira "não foi tão ruim" ou até que foi uma "ditabranda", como disse a Folha de São Paulo. Mas o regime que os argentinos conheceram a partir daquela maldita madrugada realmente se empenhou em bater recordes.
Não contente com as violações de direitos humanos regulamentares das ditaduras latino-americanas, o regime argentino se empenhou no quesito crueldade. Matou religiosas, mães que apenas queriam encontrar os corpos de seus filhos, roubou bebês de prisioneiras políticas e entregou a amigos do regime, e por ai vai. No campo econômico, abriu as portas do país para o neoliberalismo, com resultados desastrosos, incluindo a desindustrialização e o aumento da desigualdade. O regime terminou com a absurda Guerra das Malvinas.
E num outro 24 de março, só que em 1980, ocorreu talvez o fato mais absurdo causado pela direita latino-americana. Um atirador de elite do exército de El Salvador, treinado pelos EUA, assassinou o arcebispo da capital, Dom Oscar Romero, enquanto rezava uma missa. Romero havia sido Prêmio Nobel da Paz no ano anterior, por pregar a luta não violenta.
Talvez você não conheça essa história, tão absurda. Não se culpe por isso. A direita prefere falar o tempo todo sobre a ditadura cubana, mas detesta lembrar dessas coisas. Querem reescrever a história, fazendo com que todos acreditem que ditadura é coisa de socialismo, enquanto a direita sempre foi a guardiã da liberdade universal.
Então vamos lembrar uma coisa. Direita democrática é uma invenção muito recente na América Latina. Tão recente que ainda é integrada por pessoas que participaram de ditaduras não muito antigas. Normalmente são pessoas que apoiaram esses regimes e hoje posam de paladinos da liberdade (os Democratas no Brasil, por exemplo). Antes disso, não havia espaço para discordância. O sangue de Dom Oscar é a prova de que a direita do continente nunca aceitou quem discordasse dela, fosse quem fosse. Não havia limites para a violência que caía sobre as vozes dissonantes.
Que a direita tente reescrever a história eu entendo. É parte do jogo. Cabe a nós bancarmos os chatos que não se esquecem e sempre lembram o que essa gente fez até pouquíssimo tempo atrás.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Privatizando a universidade pública

Um dos pilares do neoliberalismo é a ideia de que o Estado é absolutamente incapaz de gerenciar qualquer coisa de forma racional. Sendo assim, melhor entregar tudo á administração privada, muito mais eficaz. É uma ideia que não me agrada, mas que reconheço como parte do debate. Não concordo, mas acho que vale a pena discutir.
Por outro lado não cabe discussão quanto ao fato de que na média as universidades públicas brasileiras são muito superiores ás privadas. Os neoliberais AMAM mostrar os problemas das universidades públicas, mas evidentemente nem tentam apontar as particulares como modelo, o que seria completamente ridículo. Há uma violenta campanha permanente contra a universidade pública, apontada como um enorme desperdício de dinheiro, com professores picaretas que pesquisam coisas inúteis dando aulas para maconheiros filhinhos de papai. Mas nem pensar em mostrar em que as particulares são melhores, já que é um argumento insustentável.
(antes que eu siga, cabe um parêntesis. evidentemente não quero dizer que todas as públicas são maravilhosas e todas as particulares são uma porcaria. note que eu disse que NA MÉDIA as públicas são melhores. ou seja, uma pública média é bem superior a uma privada média. é um comentário muito geral. evidentemente que há particulares bem decentes que formam ótimos profissionais. eu mesmo trabalhei por anos em uma delas)
Sendo assim, há algo acontecendo que desperta minha total perplexidade: mais e mais as universidades públicas vão sendo geridas pelos princípios da iniciativa privada. Algo que começou a se desenhar nos anos FHC (cuja preocupação essencial foi matá-las por asfixia) e se aprofundou nos anos lulo-dilmistas. Sim, amigos, o PT não apenas não reverteu a tendência como a aprofundou (o horrendo Paulo Renato, ministro da Educação de FHC, apontou exatamente isso, em tom elogioso).
Uma consequencia disso é a generalização do quantitativismo. Nosso trabalho agora é avaliado o tempo todo com base em números. Pode ser que isso seja ótimo em alguma área, mas não em educação. Qualquer pessoa que tenha trabalhado um pouquinho nessa área sabe exatamente os limites da avaliação quantitativa da educação. Ela deve existir e tem seu lugar, mas não pode ser a única forma de avaliação. Mas o governo não entende assim: quer estatísticas para falar no horário eleitoral. E lá vamos nós cumprir metas malucas decididas por algum burocrata de Brasília.
Um exemplo é a ideia de que não devem haver vagas ociosas. Em termos gerais é uma ideia correta. Cada vaga ociosa é dinheiro público desperdiçado. Mais que isso, um sonho que não se realizou, já que certamente em algum lugar há alguém que daria tudo para se sentar naquela cadeira vazia e realizar seu desejo.
Mas como isso é feito? Em primeiro lugar, se joga dentro dos cursos pessoas que não conseguiram aprovação nos cursos que desejavam. O ENEM, que é uma ótima ideia, está ficando cada vez mais impopular na comunidade acadêmica exatamente por isso. Seu mecanismo de funcionamento acaba levando pessoas a cursos menos procurados (como o meu) sem que elas queiram estar lá. Não conseguem vaga no curso desejado e acabam aceitando a oportunidade para ter a chance de estudar em uma universidade pública.
Claro que esse tipo de aluno tem enorme chance de desistir, já que nem queria ter entrado ali. O que gera outro problema, já que a taxa de evasão também entra na avaliação da universidade. Aí lá vamos nós tentar segurar na universidade alguém que não queria estar lá e está infeliz por fazer algo que não gosta. O governo começa a se preocupar em "fixar" os alunos na universidade. Dá bolsas, e coisas assim, tudo para seduzir a pessoa a ficar na universidade fazendo algo que não gosta, e na qual provavelmente jamais trabalhará, mas engrossando as estatísticas de alunos diplomados.
E há algo irônico nisso tudo. Uma das providencias frequentemente tomadas para diminuir a evasão é manter na universidade alunos que infringem as normas. Por exemplo, na universidade onde trabalho é vedado ao aluno ser reprovado mais de 3 vezes na mesma disciplina. Toda hora aparece algum que excede esse limite, nós formalizamos o desligamento do aluno, mas o aluno vai à reitoria, dá uma desculpa qualquer e somos obrigados a aceitar o aluno de volta. Tudo em nome de diminuir a evasão.
O resultado é que se possibilita que vagabundos passem a vida na universidade. Mantém o vínculo e com ele o que interessa a essas pessoas: carteira de estudante, status de aluno de federal, e acesso a bons estágios. Ou seja: a gestão ao estilo privado vai fortalecendo um tipo de pessoa que é frequentemente visto como um estereótipo da improdutividade do setor público. E sem contribuir minimamente para uma melhoria da qualidade da educação universitária.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Jorge Ben 70



Há 70 anos nascia Jorge Ben. Um músico que gosto muito, e não só pelo seu talento. Aprecio muito também o fato de nunca ter sido previsível. Só pra começar: negro, carioca e suburbano, jamais foi um sambista. Talvez tenha sido tudo menos isso. O samba aparece como um ingrediente importante em sua produção, mas sempre em conjunto com outras coisas.
Eu gosto muito da primeira fase dele. Uma coisa muito difícil de definir, talvez uma versão muito gingada da bossa-nova. "Por causa de você" foi o melhor produto dessa fase, uma música absolutamente sensacional. "Mas que nada", "Chove Chuva", "País Tropical", "Charles Anjo 45" e outros clássicos são desse período, em que para mim ele foi um dos melhores músicos do mundo.
Mas ele não sossegou. Enquanto ao longo dos anos 70 seus colegas de geração rumaram para a tranquila respeitabilidade e se refugiavam no cômodo guarda-chuva da "MPB" ele seguiu experimentando. Talvez a música que mais seja lembrada atualmente dessa fase seja "Os Alquimistas Estão Chegando". Mas eu não hesito nem por um segundo antes de fechar com "Àfrica Brasil (Zumbi)" como minha composição preferida dessa fase (aliás o disco homônimo tinha pérolas como "Taj Mahal" e "Xica da Silva"). Uma canção agressiva e violentamente anti-racista, reivindicando a herança africana e quilombola. Algo tremendamente avançado para seu tempo.
(uma recomendação: não deixe de ouvir o disco Gil & Jorge, de 1975. Soltaram Gilberto Gil e Jorge Ben, cada um com seu violão no estúdio. Os dois fizeram o diabo, e o resultado é esse disco que deveria ser ouvido apenas de joelhos)
Mas longe de ser um "maldito", Jorge Bem conseguiu aparecer bem nessa fase também, e a partir de fins dos 70 entrou em seu momento mais pop. Mas pra ser muito sincero eu acho que essa fase tem coisas muito boas também. Coisas como "Ive Brussel", "Roberto Corta Essa" e sobretudo a grande "A Banda do Zé Pretinho" merecem ser ouvidas com gosto.
Jorge Ben não é samba, não é rock, não é funk e é tudo isso ao mesmo tempo. Junto com Tim Maia, Elza Soares, Wilson Simonal e alguns outros, é uma mostra do que perdemos ao pretender separar de forma tão marcada nossa tradição musical das de outros países. Todas as outras regiões das américas com população afro-descendente usam e abusam da mistura dos gêneros domésticos com outros estilos afro-americanos. Com excelentes resultados.
Nós não. Ficamos preso nessa besteira de "autenticidade", e condenamos nossa maravilhosa música a perder ótimas oportunidades de ser ainda mais sensacional. Jorge Ben é um dos poucos que ignorou esse tipo de barreira, e mostrou como a mistura pode fortalecer nossa cultura, e não o contrário.






terça-feira, 20 de março de 2012

Clube da Esquina - 40 anos



Por estes dias comemoramos os 40 anos do lançamento de um álbum histórico: Clube da Esquina. Um daqueles discos que faz história, e nessas datas costumam ser alvo de homenagens bastante laudatórias e acríticas.
Não há espaço para discussão: trata-se de um grande disco. Mas Milton Nascimento fez muitos discos bons, tanto ou mais que esse. Certamente não é "apenas" por ser um tremendo disco que se converteu em um clássico da história da MPB.
Na verdade o disco foi um catalisador de ideias que estavam no ar. Desde o estrondoso surgimento de Milton Nascimento, anos antes, havia a sensação de que era um artista diferente, que trazia algo novo. E o disco em questão tornou tudo claro. Milton pilotou uma criação coletiva, principalmente com sua turma mineira. Assinou o álbum junto com Lô Borges. E seu título nomeou um conjunto de pessoas. Pronto: o que era alguns músicos tocando algo diferente agora era uma marca poderosíssima - o clube da esquina.
A partir dali se consolidava a ideia de que havia uma coisa muito palpável denominada "clube de esquina", um grupo de mineiros dispostos a escrever um capítulo imprescindível da música brasileira, com sua impressionante mistura de MPB, rock e mineiridade. Como sabemos hoje, essa marca é absolutamente irresistível e recebeu sua versão definitiva com o livro de Marcio Borges sobre a turma.
Essa versão dourada da história desses músicos triunfou de forma espetacular por muitas razões. Foi abraçada entusiasticamente como marcador identitário dos mineiros mais intelectualizados, que os têm na conta de verdadeiros deuses da música; serviu para criar uma "gaveta" exclusiva para eles, dando um tom único ao grupo, já que mesmo artistas com muita afinidade musical com eles não poderia de fato ser um membro do grupo, por não ter dividido sonhos adolescentes com os demais em alguma esquina de Belo Horizonte; e, convenhamos, uma narrativa de jovens inocentes e sonhadores, amigos desde a tenra adolescência, conseguindo mudar os rumos da música brasileira e realizando todos os seus sonhos é absolutamente irresistível.
Nada disso visa diminuir minimamente o gigantesco mérito do monstro Milton Nascimento, nem a qualidade do álbum. Mas a questão é que esse álbum se transformou em algo tão indispensável não "apenas" por sua qualidade. É o tipo do disco que talvez valha ainda mais pelo que representa do que efetivamente pelo que é. Daquele tipo de produto depois do qual nada mais foi como antes.
E que fique claro: o disco é absolutamente sensacional e não há elogios que dêem conta de descrevê-lo. Só acho que escrever um post apenas para dizer isso é tolice. Qualquer um que ouça o álbum vai entender isso. Mas é importante tentar pensar um pouco mais em como um álbum pode criar um sistema de representações tão poderoso.








Cerveja na copa - uma cortina liquida de fumaça

Um dos temas do momento é a tal briga em torno da liberação ou não da cerveja nos estádios da Copa-2014. Uma briga que na verdade tem a ver com outras coisas muito diferentes.
Qualquer pessoa que foi ao estádio uma vez na vida sabe que a venda de cerveja em estádio não tem nada a ver com violencia. O cara que briga no estádio não é o cidadão comum que tomou uns copos de breja, surtou e saiu brigando. Quem briga é cara de organizada, cuja vida é estruturada na violencia, o cara saiu de casa pensando em brigar, se juntou com seus amigos igualmente criminosos, e foi para enfrentar os outros. Repito: qualquer pessoa que vai ao estádio sabe perfeitamente disso.
Essa briga na verdade envolve outras coisas, que nada tem a ver com copa do mundo.
Primeiro, tem aí toda uma nova concepção sobre como resolver nossos imensos problemas urbanos. Muita gente está começando a adotar uma concepção proibicionista: tudo o que não agrada, proíbe. Tem projeto proibindo motoqueiro de dar carona (pelos assaltos realizados por duplas andando de moto), outro proibindo de beber na rua, e assim por diante. Claro, ao invés de o Estado nos dar segurança para andar na rua tranquilo, porque não proibimos logo todo mundo de sair de casa? Aposto que a violência acabaria. Essa discussão está relacionada a isso. Há esse simplismo tolo, essa verdadeira estratégia do avestruz, essa ilusão de que basta uma canetada para resolver nossos prolemas.
Segundo, claro, a onipresente bancada evangélica aproveita o medo que todos os partidos sentem deles para tentar marcar mais um ponto na sua cruzada contra tudo o que a humanidade evoluiu nos últimos 300 anos. A lógica é clara: se nossa religião é contra consumo de álcool, ninguém pode beber. Claro que isso vem disfarçado de "preocupação com a saúde pública", mas claro que ninguém precisa ser tão burro para acreditar nisso. Os caras não estão nem aí, por exemplo, com uma sociedade que produza alimentos mais saudáveis. Só se importam com aquilo que a religião deles prega, mais nada. Mais um passo rumo à barbárie.
E finalmente tem mais uma daquelas cachorradas disfarçadas de nacionalismo, o eterno "último refúgio dos canalhas". Existe toda uma disputa política sobre controle de verbas para a copa, que faz com que todos queiram vender muito caro seus apoios à lei geral da copa. Esse papo de "estamos lutando pela soberania nacional" é só uma desculpa. Se fosse isso, se importariam com o absurdo gasto desnecessário e inútil com essa copa, ou com as pessoas que estão perdendo suas moradias com as obras do mundial. Mas não estão nem aí para isso. O que eles querem é só aumentar sua cotação de mercado. Significa na verdade "veja como posso complicar sua vida. não vou sair barato pra voces não, viu?".
Numa frase: pobre de quem acha que essa discussão é sobre venda de álcool nos estádios. Tem muito mais coisa envolvida.

segunda-feira, 19 de março de 2012

As Trevas da Libertadores



Onde o conhecimento não existe ele é substituído pelo estereótipo. Taí algo que eu considero indiscutível. A existencia do conhecimento não impede o estereótipo, mas aonde o conhecimento não existe o estereótipo toma conta. A maior prova disso é ver a abordagem que brasileiros têm da Libertadores.
O incrível é que essa ignorância sobre os vizinhos faz com que eles sejam ao mesmo tempo subestimados e superestimados. Subestimados porque, mesmo sem sequer saber o nome dos jogadores desses times, as pessoas supõem que só tem porcaria, que são todos horrorosos e que qualquer clube brasileiro de quinta pode atropelar qualquer um com facilidade.
Por outro lado se superestima as artimanhas que esses clubes podem utilizar para ganhar uma partida. Como se fossem mágicos capazes de tirar coelhos da cartola a qualquer momento. Aí qualquer empate fora de casa contra um time pequeno fica uma coisa épica. E nem falo do Boca Juniors. Se os outros clubes são subestimados, o Boca passou a ser visto pelos brasileiros com pavor. A ponto do Fluminense se mobilizar para mandar milhares de torcedores para uma partida de primeira fase, e ter passado a considerar que se venceu esse time mais ou menos do Boca de hoje, é porque pode vencer qualquer um (como se alguns dias depois o mesmo Boca não tivesse perdido em casa para um Independiente horroroso, inclusive levando 5 gols).
Semana passada dois treinadores brasileiros fizeram declarações que mostram bem isso:
1) O Fluminense jogou em casa contra um time horrendo, o Zamora, que na rodada anterior havia levado de 3 a 0 do medíocre Arsenal, que luta contra o rebaixamento no campeonato argentino. Mas segundo o treinador Abel Braga: "1 a 0 em Libertadores é goleada".
2) O Flamengo jogou melhor contra o Olimpia por 75 minutos, abriu 3 a 0, mas no fim cochilou e deixou empatar. O Olímpia não tem nada demais mas é um time decente, e com muita tradição em Libertadores (muito mais que o próprio Flamengo). Diagnóstico do técnico: "faltou maladragem".
Se o Fluminense ganhasse de 1 a 0 em casa de um medíocre time brasileiro, o consenso seria: jogou mal, tem de abrir os olhos, mas ao menos valeu pelos 3 pontos. Contra um medíocre time venezuelano a coisa ganha tons dramáticos. Se um time está ganhando em casa de 3 a 0 de um time tradicional e leva o empate, o diagnóstico seria óbvio: faltou concentração, levar o jogo a sério até o fim. Se é na Libertadores, faltou malandragem.
O que falta para os brasileiros entenderem a Libertadores não é nada mirabolante. É um torneio de futebol como qualquer outro. E como qualquer torneio tem lá suas peculiaridades. Entre elas estão times com poder econômico inferior ao dos brasileiros, países com suas próprias tradições futebolísticas, jogos em campos que nem sempre são bons, viagens longas, e por aí vai.
Mas são peculiaridades que não mudam o fato de que é um campeonato de futebol. Qualquer torneio de futebol tem suas peculiaridades, e a Libertadores também. O que não muda o fato de que a receita para vencê-la é a mesma que vale para qualquer campeonato: montar o melhor time possível, analisar os adversários e entender o torneio. Em suma, tentar ser melhor que os outros, e não mais experiente, malandro, velhaco ou catimbeiro.
Acompanho fanaticamente a Libertadores há 32 anos. E cansei de ver times brasileiros entrando em campo querendo ser machos, catimbeiros e valentes, enquanto o adversário jogava bola e ganhava os jogos. Me lembro de um Corinthians x River em que os argentinos simplesmente atropelaram o timão. Enquanto o belo time do River jogava bola, Geninho mandava seus jogadores baterem, um deles acertou um argentino sem nenhuma necessidade, foi expulso e o narrador desconsolado dizia "que pena, o Corinthians caiu na catimba argentina".
O mesmo vale para o grande time do Boca da década passada. Me lembro de ver jornalistas e treinadores discutindo inúmeras vezes as razões do sucesso daquele time. O tópico menos discutido de todos era o fato de que era um timaço, um dos maiores da história de seu país, cheio de grandes craques, capaz de enfrentar um Milan e Real Madrid sem precisar ter medo de uma goleada.
Os brasileiros melhoraram muito seu desempenho na Libertadores. Nossos clubes disputaram todas as finais desde 2005. Imagine o dia em que saírem da idade das trevas, se despirem dessa mescla louca de complexo de superioridade e de inferioridade e passarem a ver a Libertadores como um torneio de futebol.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Ex-gênios



Paul McCartney virá em breve ao Brasil e se apresentará aqui no Recife. Prevejo inúmeras pessoas tentando me convencer a ir e não entendendo como um cara como eu, que endeusa os Beatles, vai perder essa oportunidade.
A resposta é simples. O Paul que eu amo é o dos Beatles, ou até o dos primeiros discos solo. Esse que virá se apresentar aqui é um setentão que não faz nada de realmente bom há décadas, e grava discos sem sal apenas para ter pretexto para tocar as velhas músicas de novo. Cobrará caríssimo e ganhará fortunas para fazer versões meia-boca de músicas de meio século atrás.
Isso não vale só para ele. Se aplica igualmente aos outros gênios de sua geração, gente que eu idolatro, como Roger Waters. Eu amo esses caras porque eles eram ultra criativos, inventivos, imprevisíveis, subvertiam todas as regras estabelecidas. Ou seja, tudo o que não são hoje, quando fazem esses shows engana-trouxa tocando coisas velhas, já que perderam toda a capacidade de fazer coisas boas.
O mesmo raciocínio me faz achar um absurdo completo pagar 350 paus pra ver um show do Chico Buarque. Há uns 30 anos ele não faz nada realmente bom. Não acho que alguém assim mereça tamanho desembolso de dinheiro. E se você acha que ele fez coisas boas recentemente faça o seguinte exercício. Pegue um disco dele das últimas décadas ao acaso e escute fingindo que é o primeiro disco de um novo cantor. Não há como voce achar que é uma coisa brilhante. Você até pode achar isso, mas só se tiver em mente que é o Chico Buarque. Aí até eu.
A mesma coisa vale para as bandas que fizeram a loucura da minha geração. Vi todas elas ao vivo naquela época. Eram jovens insatisfeitos com o mundo, e queriam fazer algo diferente. Hoje são quarentões sem nada de novo a dizer, gravando aqueles "acústicos", como desculpa para regravar coisa velha e vender para os jovens daquela época, hoje adultos com dinheiro para comprar CD's e ir a shows. Sinto muito, assim como os outros citados, pra mim esses aí não são mais os caras que me encantavam. Muito longe disso.
A última vez que fui a um show desses foi em 1999. O Deep Purple tocou na Unicamp, eu estava começando meu doutorado e me preparei para esse dia como um crente fanático. Aí de repente me dei conta que eu via um bando de cinquentões obesos que não tinham mais nada a dizer tocando apenas coisas antigas. Ian Gillan, o vocalista mais poderoso da história do rock pesado, nada mais era do que uma aberração. Cantava pior que muita gente que escuto em botequins de quinta.
Eu amo músicos imprevisíveis, que não se conformam com o comum. Todos os citados acima já foram isso, e merecem minha idolatria, por terem contribuído para um mundo mais legal. Hoje estão longe disso. Não são mais as pessoas que eu amava, são apenas pessoas que esgotaram sua capacidade criativa e vivem do passado. Me recuso a sustentar esse tipo de coisa.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A esquerda me dá nos nervos



Dia desses estava circulando no facebook um link tirando sarro da esquerda universitária, algo como "os tipos de esquerdista". Um velho amigo (com o qual tenho muitas diferenças políticas, mas que por sua inteligencia e bom senso é um interlocutor muito mais interessante do que quase todos os que tem uma posição mais perto da minha) aproveitou pra me cutucar: "e aí, onde voce se encaixa?" Minha resposta foi: não me encaixo com nenhuma esquerda que eu conheça. Sou um esquerdista esperando aparecer uma esquerda com a qual eu me identifique.
É assim: acho que a primeira coisa que deveríamos fazer seria admitir todas as nossas cagadas. Auto-crítica de verdade. Nada dessa palhaçada de "se não fosse Stalin estragar tudo...", "ah se o Lenin vivesse 381 anos", "Trotsky teria feito diferente", "Fidel é a verdadeira democracia", "pra que direito ao livre pensamento se há comida na mesa e educação e saúde para todos?". Isso não existe. O modelo revolucionário russo desde o primeiro dia já previa uma ditadura. E todas as tentativas socialistas terminaram em ditadura. Não pode ser um problema pequeno. Tem coisa séria aí. Esqueçamos a perfumaria e façamos uma autocrítica séria.
Temos de começar por Marx. Mas sabendo que ele morreu há quase 130 anos, e analisou um capitalismo completamente diferente do que vivemos e pensou em alternativas que simplesmente não são possíveis hoje. Foi genial a seu tempo, mas tudo mudou, e não poderia ser diferente. Marx é um começo. Mas não pode ser um guia.
Para começar, continuamos privilegiando sindicatos e coisas do gênero como local privilegiado de luta. Não que devamos abandoná-los, mas precisamos de parar de ter como modelo uma estratégia revolucionária criada há 150 anos, num contexto totalmente distinto. Hoje o proletariado industrial é pequeno, se vê como privilegiado entre as classes populares e está mais preocupado em manter sua posição do que em mudar o mundo. Precisamos atentar para novas realidades, grupos desprivilegiados e mantidos à margem inclusive pelos sindicatos, tais como terceirizados, temporários, etc.
Temos de parar de fingir que temos orgulho das realizações do socialismo real, stalinismo á parte. Houve acertos, que devem ser incorporados, mas fora isso estava tudo errado. O poder foi tomado por um pequeno grupo que impôs o socialismo a um povo que mal sabia o que era isso. O que obrigou o governo socialista a impor o socialismo à força, o que já é uma tremenda contradição. Deveríamos ter aprendido com isso de que a luta para tomar o controle do Estado é apenas uma pequena parte da luta maior. Mas não aprendemos.
Deveríamos ter aprendido também que um Estado gigantesco que é dono de absolutamente tudo é algo que sempre vai ser um convite à ditadura (nisso os liberais estão absolutamente corretos; leia-os a sério e você verá). Mas continuamos tendo como bandeira a ideia do Estado redentor, que vai resolver todos os nossos problemas.
E precisamos deixar de ser crianças. Pararmos com essas bandeiras irreais, tipo "não ajudem os bancos, isso é favorecer os patrões", como se a catástrofe de 1929 não tivesse começado justamente a partir do caos do sistema bancário norte-americano. Esse é o tipo de coisa que faz com que uma pessoa sensata passe a achar que todo esquerdista é infantil.
Enfim, deveríamos repensar tudo, incluindo começar do zero em muitas coisas. Mas só vejo pessoas repletas de certezas, seguríssimas de que têm o remédio para o mundo. E geralmente é um remédio vencido há décadas.

terça-feira, 13 de março de 2012

A estranha genialidade do criacionismo

Escutando o patético Marcelo Crivella tão nervoso repudiando a teoria da evolução por se negar a crer que descende de uma ameba (será que ele fez ensino médio?) eu me pus a pensar na estranha genialidade da defensa do criacionismo por parte da direita religiosa. Vejam bem.
Os cientistas acadêmicos se mostram escandalizados com a ideia de ensinar o criacionismo ou suas variantes mais sofisticadas nas escolas. A direita religiosa responde que a evolução e o que eles querem ensinar são teorias rivais, e que é absurdamente injusto querer calar a boca de um dos lados à força.
Percebeu a manobra? Eles, que são contra tudo o que a religião deles diz, posam como valentes defensores da pluralidade, enquanto nós, progressistas, somos pintados como uma espécie de nazistas querendo enfiar nossas crenças na goela alheia. É ou não é brilhante?
Claro, o grande problema do argumento é que evolução e criacionismo não são teorias rivais. Todos os que não são guiados pela agenda desses lunáticos religiosos aceitam a evolução como fato consumado. Converse com qualquer pessoa da área e ela dirá exatamente isso: a evolução como ideia geral é consensual entre os profissionais do assunto. O criacionismo só existe na cabeça de quem quer impor a visão ultra-religiosa do mundo.
Mas reconheço o brilhantismo da argumentação. Realmente existe aí uma aparente lógica que engana perfeitamente as pessoas menos dotadas de conhecimento ou senso crítico. E como essas pessoas são em grande número, não duvido que meus netos estudem o criacionismo quando estiverem na escola, como sendo a única visão possível do assunto.
PS: Não achei o vídeo do Crivella, mas o sempre iluminado Silas Malafaia nos brinda com seus profundos conhecimentos sobre temas científicos no vídeo abaixo.


domingo, 11 de março de 2012

Do Oscar ao Chacrinha: a hitlerização do entretenimento



Sou o tipo de pessoa que nunca assiste a cerimônia de premiação do Oscar. Mas este ano me assustou o fato de eu sequer ter ouvido falar de nenhum filme que concorria. Boiei completamente em todos os papos. O que mostra como estou desatualizado sobre cinema. E eu gosto muito de cinema. Ou pelo menos gostava. O que aconteceu?
Por incrível que pareça, esse pensamento me levou ao Chacrinha. Um monumental comunicador, que em nosso país possivelmente só tenha tido um rival à altura em Silvio Santos. Não era nenhum revolucionário, muito pelo contrário, se atribui a ele a frase "em TV nada se cria tudo se copia". Seu programa tinha muito de tradicional: artistas "alternativos" jamais dariam as caras por lá, calouros com cara sofrida eram impiedosamente buzinados, ao melhor estilo do rádio de décadas atrás e mulheres seminuas faziam a alegria da homarada, bem dentro do classico machismo.
Mas o programa do Velho Guerreiro tinha um tom anárquico que não se vê mais na TV. Suas roupas eram esdrúxulas, seus bordões absolutamente non-sense, o palco era recheado de personagens exóticos que davam suporte ao protagonista. A platéia era estimulada a interagir de forma muito ativa: tinha um jurado mal humorado (creio que se chamava Édson Santana) que era vaiado loucamente quando descascava os calouros, enquanto os que estavam na primeira filha esfregavam o cabelo dele com as mãos. Pedaços de bacalhau eram atirados à platéia em meio a comentários de gosto duvidoso ("quem quer o bacalhau da Claudia Raia?"). O playback rolava enquanto cantores davam beijos em mulheres da platéia e os "jurados" conversavam com o microfone ligado. Tudo muito divertido, aparentemente anárquico e com um tom quase kitsch. E isso nas tardes de sábado.
Essas coisas não existem mais porque o entretenimento cada dia mais segue a lógica hitlerista. O Fuhrer dizia que seu grande sucesso como orador era sempre falar da forma mais simples possível. Pensava na pessoa mais estúpida que estivesse escutando, e falava ao nível da compreensão dessa pessoa. Assim, garantia que seria entendido por todos. Isso é parte essencial para entender os discursos de Hitler, altamente emotivos mas sem nenhuma complexidade. Qualquer imbecil entenderia.
Cada vez mais o mundo do entretenimento segue esse procedimento. Elimina-se tudo aquilo que alguém possa não gostar. Se reduz o conteúdo ao mínimo, se evitam as polêmicas e se carrega ao máximo na emoção. É a mesma lógica de outros ramos da indústria: veja-se a Skol, a cerveja mais vendida exatamente por ser a que tem mais água, menor amargor e praticamente nenhum sabor. Não tem graça, mas não tem nada que desagrade. Sua força é o conteúdo zero.
Aí entendi meu desencanto com o cinema. Que sempre foi um negócio, evidentemente, e sempre dependeu de agradar as pessoas. Mas quem quer que conheça o cinema de outros tempos sabe que a produção era mais segmentada, mais multifacetada. Hoje não. Provavelmente o enorme custo de produção incentive a produção dessas obras pretensamente para todos, dentro da lógica hitlerista.
Aí você que quer algo mais acaba cansando. Tem os filmes "para homem", com carros explodindo e rajadas de metralhadora; filmes "para mulher", estrelados por loiras magrelas que sonham com príncipe encantado; e por aí vai.
Por favor, não entenda que estou sendo saudosista, idealizado um passado perfeito contraposto a um presente horrível. Acho mesmo que a lógica higienista sempre existiu no entretenimento. E que ela apenas se profissionalizou e se sofisticou cada vez mais com o passar do tempo. O quadro atual pode ser visto de certa forma como o aperfeiçoamento de algo que sempre esteve lá.
E eu me pergunto apenas o seguinte: será que chegará o dia em que nada escapará dessa lógica e toda a produção cultural será insossa? Eu até acho que não: sempre haverão os nichos que impedirão isso. Não sou dos apocalípticos que acham que a massificação derreterá os cérebros de todos nós. Isso nunca acontecerá, como já previa Hobsbawm em 1957.
Mas que os filmes chatos e previsíveis estão em um número muito acima do aceitável, isso estão.



quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia internacional da mulher: podemos comemorar?



Não sou muito chegado em "comemorar" dia das mulheres, da consciência negra, do índio, e assim por diante. Minha (rabugenta) visão de mundo inclui a ideia de que se há um dia específico para um grupo, é porque se pressupõe que no resto do ano esse grupo é subalterno. Por exemplo, há o dia do "índio", mas não há o dia do "colonizador genocida". Há o dia do homem, mas ninguém liga. Todo dia é dia do homem.
Não que não haja o que comemorar. Há uns trinta e poucos anos, quando acordei para a vida, uma pauta central da agenda feminista era algo hoje visto como inimaginável. Vivíamos em uma sociedade que considerava aceitável que homens matassem suas companheiras por ciúme. Diziam que matavam "por amor" e saíam livres do julgamento. O simples fato de isso parecer um troço de outro planeta hoje já mostra como as coisas mudaram (homens continuam matando suas companheiras, mas ninguém imagina que o cara possa dizer que matou por amor e isso vá o salvar da cadeia).
Mas infelizmente muita coisa continua como antes. E devo dizer que o que me deprime frequentemente é a postura das próprias mulheres. Pois se uma mulher não se importa com seu status subalterno, como esperar que os homens pensem diferente?
Isso inclui aquelas que acham que ser feminista é dizer "homem não presta", uma auto-vitimização que mantém a mulher no papel de pobre e passiva vítima. Inclui também as que pretendem saber "como viver uma vida feminista", ignorando o fato de que a verdadeira libertação da mulher ocorrerá no dia em que cada uma tiver o direito de ser o que quiser, sem ser tutelada por ninguém, sejam homens reacionários ou mulheres que se acham no direito de decidir como suas companheiras de sexo devem viver.
Mas talvez o grande problema seja que esse tipo de demanda (assim como o ambientalismo, o movimento negro, o movimento gay, etc.) ainda não achou seu espaço nas correntes políticas tradicionais. Filhos do iluminismo, tanto liberalismo, como social-democracia como socialismo não sabem muito bem como lidar com isso. Todas presumem ter uma fórmula para fazer a "sociedade" feliz. Pressupõem que resolverão os problemas de todos ao mesmo tempo. Não sabem o que fazer com um grupo subalterno por razões não econômicas.
Na verdade talvez aí esteja uma questão importante para esses movimentos. Convencer as correntes políticas tradicionais de que suas demandas merecem ser levadas a sério, e que uma melhoria da sociedade como um todo não resolverá seus problemas. Que essa eventual melhoria pode se distribuir de forma desigual, dependendo de questões como genero, raça, preferencia sexual, local de nascimento, etc.
Pois vamos combinar uma coisa. Os partidos mais progressistas têm recebido votos dos militantes desses movimentos, e isso não é de hoje. Mas não têm dado nada em troca. Isso inclui o lulo-petismo. Quando alguma tendência política der conta de incorporar essas demandas, o mundo terá dado um grande passo rumo à diversidade.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A fé dos ateus

Acho muito engraçado ver o ar de superioridade de muitos ateus. Do ponto de vista deles, o resto do mundo é formado por uma horda irracional de lunáticos que por pura ignorância acreditam em coisas pré-históricas por necessidade de explicar aquilo que não entendem. Essas pobres pessoas, nesse ponto de vista, se rendem a necessidades muito básicas e deixam esses instintos triunfarem sobre a razão. O resultado disso é a inexplicável permanência da religião, o grande mal do universo, mantendo a obscuridade em um mundo que não deveria precisar disso.
Assim como nem todas as pessoas religiosas são lunáticos obscurantistas, nem todos os ateus são assim, obviamente. Mas pra mim esse tipo de pessoa nada mais é do que a versão atéia do obscurantismo religioso. São exatamente iguais aos outros que julgam terem descoberto a verdade em uma religião e acham que quem não concorda é idiota.
Afinal, ser ateu também é acreditar em algo. Ser ateu não é ser cético e racional. É acreditar que Deus não existe. Ora, por definição é impossível provar que Deus existe ou que não existe. Sobra a fé. Muitos têm a fé de que Deus existe, outros, os ateus, têm a fé de que Deus não existe. Isso não tem nada de racional.
Claro, essas pessoas pseudo-racionais sacam rapidamente o seguinte argumento: "Não digo que Deus não existe. Apenas não posso acreditar naquilo que não se pode provar". Ora, essa é uma tentativa muitíssimo desajeitada de driblar o problema anteriormente apontado. E por muitos motivos.
1) Religião é uma questão de fé, não de ciência. Pedir provas da existência de Deus é utilizar critérios científicos de validação para uma questão religiosa. Algo que nenhuma pessoa de bom senso pode aceitar que ocorra no sentido oposto. Ou seja, é absurdo utilizar critérios religiosos de validação para falar de ciência: "a evolução das espécies é uma farsa, pois a Bíblia não a referenda". Mas se não podemos usar a religião para chegar a conclusões científicas, porque o contrário deveria ser aceitável?
2) Beleza então, vamos analisar a religião pelo prisma científico. Não há provas de que Deus existe. Essa premissa permite chegar à conclusão de que Deus não existe? Nenhum calouro de graduação seria aprovado se fizesse tal raciocínio. Imagine você se todas as teorias não comprovadas fossem dadas de antemão como falsas? Ainda viveríamos na pré-história! Imagino um antepassado há 100 mil anos fazendo a primeira lança para matar animais. Um antepassado dos ateus diria: "há provas de que esse instrumento é eficaz na caça? então ele não presta!".
Uma teoria científica não pode ser dada como falsa simplesmente por não haver provas de sua veracidade, já que elas ainda podem aparecer. Ela teria de ser desacreditada de outra maneira. Por exemplo, provando seu absurdo lógico (o que não aconteceu com a existência de Deus). Ou encontrando provas que apontem no sentido oposto (mas não se provou que Deus não existe).
Enfim, a questão é complicada. Dizer "Não há provas que Deus exista, então todas as religiões são irracionais" é uma tremenda tolice que escapa à lógica. Não há nada de racional nisso. O ateísmo é uma crença que deve ser respeitada como qualquer outra. E os ateus que acham que sua postura religiosa os faz melhor que os demais devem ser colocado junto com os seus semelhantes de outras religiões: o altar da babaquice.
PS: aqui uso o termo "ateu" em um sentido estrito, ou seja, aqueles que não acreditam em Deus. já vi o termo ser aplicado a pessoas que não acreditam nem desacreditam, mas não me parece que essa utilização seja correta.

terça-feira, 6 de março de 2012

Impostos e serviços



Após o post de ontem, o tema dos impostos não parou de martelar minha cabeça. Fiquei cozinhando ainda mais uma antiga ideia: a de que a maioria dos brasileiros não se dá conta das implicações da correlação impostos/serviços públicos.
Afinal, no limite, há duas linhas de pensamento quando se trata da questão. A primeira, a liberal, prega o seguinte: não vamos cobrar impostos, mas não vamos te dar serviço público. Você tem em mãos todo o dinheiro que conseguir, o governo não vai tirar muita coisa. Mas é bom voce conseguir se garantir com ele. Pois não vamos te ajudar em nada. Não é à tõa que esse discurso é tão popular entre empresários. Eles não precisam da maioria dos serviços públicos, e são os que mais pagam impostos. Na visão deles, imposto só pode ser horrível: uma coisa que se paga sem receber nada em troca.
A visão oposta é a social democracia à européia. Vamos taxar tudo violentamente, mas em troca ofereceremos muitos serviços públicos, da melhor qualidade possível. Ficaremos com sua grana, mas retribuiremos com serviços. Os mais ricos pagarão mais e serão os que menos usarão. Aí descendo a pirâmide social, as pessoas vão pagando menos e usando mais dos serviços. Até chegar ao pobre, que nem tem imposto a pagar, mas precisa muito dos serviços públicos.
Não sou tributarista (assim como tampouco a maioria dos que opinam sobre o assunto). Mas me parece claro que temos aí um problema. O Brasil cobra muito em impostos e oferece relativamente pouco em serviços. Pouco não. Até que oferece bastante. Mas a qualidade é o problema. A educação é o grande exemplo: quem quiser colocar seu filho numa escola pública terá vaga. Mas o que ele vai aprender lá é que é o problema.
O resultado é que as pessoas querem pagar menos impostos. Mas veja, me parece um remédio que não tem nada a ver com o problema original, ou que ao menos se origina de uma reflexão muito rasteira sobre ele. É compreensível, já que pagamos tantos impostos, muitos deles injustificáveis, e ainda vemos corrupção, funcionários públicos que ganham somas absurdas, enquanto a qualidade dos serviços é esse lixo..
Mas a solução seria reduzir impostos? Vamos lá: não há como negar que o Brasil precisa muito do Estado. Há gigantescas áreas pobres e atrasadas, onde nenhuma iniciativa particular terá interesse em investir. Sem o investimento do Estado, essas pessoas estão condenadas à pobreza eterna. E a desigualdade de renda é tão monstruosa que gera o mesmo efeito mesmo nas áreas mais ricas. A iniciativa privada nunca vai reduzir desigualdade. Não é essa a função dela. Em um país com nossas características, o Estado é indispensável.
Assim, pedir menos impostos é dizer "foda-se, nosso Estado não presta, então paremos de pagar imposto e os pobres que morram, desistamos deles logo". Aí eu pergunto: ao invés de reclamar TANTO dos impostos, não seria melhor dedicar parte dessa energia a exigir a melhoria dos serviços públicos e a racionalização dos gastos estatais?
Pois veja, nossos serviços públicos não são ruins porque pagamos impostos. São ruins apesar disso. São ruins porque não reclamamos, e seguimos votando nos responsáveis por isso. Pagar menos imposto não vai melhorar saúde, educação ou coisa alguma, só vai piorar de vez. Pra melhorar, só se exigirmos que esse nosso dinheiro suado seja empregado da maneira correta.
Parar de ficar colocando no nosso facebook coisas como "precisamos valorizar o professor" e ao invés disso não votar em quem teve todas as oportunidades para melhorar nossa educação mas não o fez. Se não fizermos coisas assim, a questão se reduz a: 1) pagamos muito imposto para os caras jogarem muita grana fora e termos serviços ruins; 2) pagamos pouco imposto para os caras jogarem um pouco menos de grana fora e termos serviços ainda piores. Mas se você está feliz em ter apenas essas opções, tudo bem.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Deu a louca nos preços



Esta semana, a revista Veja soltou uma matéria tentando entender porque existe um certo tipo de produtos que custa muito mais caro no Brasil que nos EUA. Claro que ela encontrou a resposta que quis: os impostos no Brasil são muito altos. Aí você tem duas opções. A primeira, aceitar a visão de mundo deles e acreditar que o grande problema do Brasil são os impostos. Ou tentar adotar uma postura minimamente crítica e pensar: será que é só isso mesmo?
Bem, claro que não se trata de discutir o fato de que o Brasil tem mesmo uma carga tributária alta. Mas poderíamos inserir outros dados na discussão. Por exemplo, um operário norte-americano ganha mais que seu equivalente brasileiro, e ganha em dólar. Os custos de produção são mais altos, o que compensaria ao menos em parte os gastos com impostos. Ou seja, produtos fabricados aqui e lá não poderiam ter um preço tão diferente nos dois países. Mas tem. E aí?
Acho que há algo mais que deveria ser considerado por quem quer entender melhor o assunto, e não apenas atacar o governo em cada linha que escreve. Afinal, a grande questão é que muitos produtos que nos EUA são de consumo massivo aqui são para muito poucos. Acho que é um bom lugar de onde começar.
O Brasil ficou uns 30 anos estagnado, sem crescer. Assim, as portas da ascensão social se fecharam a uma gigantesca massa de pobres. A desigualdade só piorou. Assim, é natural que o comércio desse tipo de produto tenha se concentrado em uma pequena quantidade de pessoas de maior poder aquisitivo. Menos volume de vendas traz necessidade de maior margem de lucro. E aí se criou toda uma cultura.
Os produtores e comerciantes acreditam que precisam vender esses produtos por altos preços. E, aí vem a parte interessante, os compradores se acostumam a pensar nesse produtos como marcas distintivas de riqueza. Ao contrário dos EUA e outros países, onde todos os compram, aqui eles se transformam em sinais ostentatórios de riqueza e poder. Então esses consumidores acabam gostando da situação. Preferem pagar mais caro para que apenas eles possam ter esses bens.
Bem, se houve algo que mudou no Brasil do lulopetista foi a expansão do consumo. As classes mais baixas continuaram vivendo uma vida de merda, com serviços públicos da pior qualidade, mas agora podem comprar. Era a hora disso tudo mudar. Mas não mudou. Produtores e comerciantes (provavelmente cegos pela ganância) não atinaram para o quanto poderiam ganhar em volume de vendas caso mirassem em um público mais amplo que surgiu. E o velho público continua maravilhado em pagar fortunas por tablets e iphones que a massa inculta não tem. Se um cara desses um dia ver sua diarista com uma buginganga dessas é capaz de infartar.
Em suma, temos impostos mais altos. Mas culpar apenas (ou majoritariamente) isso é muito simplista. Em muitos casos isso não explica tudo. Em outros, não explica nada. Há que fazer um pequeno esforço para entender nossa história recente, e como se criou uma cultura na qual produtos que deveriam ser massificados passaram a ser sinal de distinção social para poucos. Mas aí é preciso querer ver as coisas de forma um pouquinho complexa.

domingo, 4 de março de 2012

Camarada Stalin



Há 59 anos morria Josef Stalin. Uma das figuras essenciais do século XX. Mesmo tanto tempo depois é difícil falar dele de forma desapaixonada. Para a maioria esmagadora das pessoas, dizer qualquer coisa dele além de "assassino" singifica ser favorável aos crimes que ele cometeu. Até de Hitler se pode ressaltar eventuais qualidades, mas Stalin não. E na verdade tampouco me interessa elogiar ou xingar. Qualquer historiador sabe que nossa função não é a de juiz. Deixemos isso para Hollywood e para a Veja, já que eles gostam tanto dessa função.
O grande papel histórico de Stalin foi ter formatado o chamado "socialismo real". Lenin ficou incapacitado 5 anos após a Revolução Russa, e seu governo foi essencialmente voltado para tentar salvar o regime numa fase de catástrofes. Quem montou de fato o regime soviético foi Stalin. Para o bem e para o mal.
No fundo quando falamos de Stalin, a grande questão com que nos deparamos é: em que medida o stalinismo foi uma decorrência natural da revolução russa e em que medida é filha do indivíduo Stalin? A visão liberal naturalmente acredita na primeira hipótese, pois ela desacredita não apenas o stalinismo como o socialismo em si. Os defensores do socialismo apostam na segunda, tentando livrar totalmente Lênin (eventualmente também Trostky) da culpa, como se toda a degeneração dos regimes socialistas pudesse ser causada por um único homem.
Acho que nós, socialistas, temos de fazer sim uma seríssima e severa análise disso tudo. E temos encarar a verdade: uma revolução feita por uma minoria que quer implantar socialismo num país onde a população sonha em ser proprietária é algo que pode terminar de qualquer maneira, menos numa democracia. Assim, a direita acaba acertando o alvo de certa forma, apesar de chegar lá pelos motivos errados. Socialismo pode ser democrático, mas não num país com uma população que não o queira.
Em outros termos: os camponeses que apoiaram Lenin não queriam socialismo. Queriam paz (ou seja, sair da 1a guerra) e pão. E se possível, se transformarem em proprietários de terras a médio prazo. Seria necessário enfiar o socialismo pela goela abaixo deles, o que Lenin não quis fazer, mas certamente teria de lidar com isso mais cedo ou mais tarde. Nesse ângulo, Stalin acabou sendo sim um desdobramento de 1917. O dilema que Lenin adiou foi enfrentado por ele: aceitar a república de pequenos proprietários que a população queria ou impor o socialismo de cima para baixo? Stalin tão titubeou e adotou a primeira opção.
Mas há uma segunda questão, mais ampla, sobre isso tudo. Todas as versões do socialismo que eu conheço prevêem um super-hiper-mega Estado. Que seria controlado por entidades abstratas, como "trabalhadores", ou coisas assim. O que evidentemente é um convite para que um esperto assuma o controle e implante seu governo ditatorial (já que o Estado reina sobre tudo), enquanto presumivelmente aja em nome dos "trabalhadores" ou outra coisa do tipo.
Não que necessariamente isso teria de terminar em algo tão brutal como o stalinismo. Mas o grande fato é: o modelo socialista ultra-estatizante abre espaço para um Stalin. Não é à tõa que EUA e Inglaterra nunca tiveram um Stalin: seus sistemas políticos restringem essa possibilidade, enquanto o modelo socialista "real" não a estimula, mas abre a possibilidade.
Em suma, não podemos ver Stalin nem como uma decorrência natural de 1917, nem como uma aberração. Mas sim como um fenômeno extremo, proporcionado tanto pelo modelo revolucionário de 1917 como pelo modelo do "socialismo real". E temos de pensar muito bem nisso antes de ficarmos pregando socialismo por aí. É preciso repensar profundamente isso tudo, e não acho que estejamos fazendo isso.

sexta-feira, 2 de março de 2012

O individualismo e seus inimigos



Vivemos em uma sociedade em que "individualismo" é uma coisa negativa. Como ficará claro em seguida, entendo porque, mas sempre é bom lembrar que originalmente não era assim. Individualismo é a idéia de que cada indivíduo é um mundo à parte, insubstituível. Filho do iluminismo, esse conceito trazia uma implicação muito importante. A de que cada um tinha o direito de ser como bem entendesse, desde que não prejudicasse ninguém com isso. Afinal, se cada um é cada um, as regras que regem a minha vida podem não servir para a sua, e vice-versa, e é preciso entender isso.
Essa idéia, tão generosa, vem sofrendo ataques de todos os lados nos últimos tempos. Uma das grandes trincheiras inimigas infelizmente é a religião. Muitos grupos, espalhados por todas as religiões, acreditam deter a grande verdade, capaz de resolver os problemas de todos os humanos. E quem não vive de acordo com "a" verdade não apenas deve ir para o inferno, mas também deve ser proibido de viver como deseja, mesmo que isso não prejudique ninguém.
Tome-se o homossexualismo como exemplo. É uma prática privada, que acontece longe dos olhos de todos. Não tem o poder de prejudicar ninguém. No entanto os homossexuais tem sido mais e mais vistos como monstros por essas pessoas. Ao invés de ser visto do ponto de vista iluminista (ou seja, um desejo, algo essencialmente individual, que portanto não deve ser julgado), cada vez mais é visto sob um prisma pré historico. Homossexuais são aberrações, doentes. Algo que a ciência não respalda, mas quem são essas pessoas para levar a sério a ciência?
Isso não ocorre por acaso. É a reação a um processo muito real. O mundo está cada dia mais complicado. Todo dia aparece uma novidade que desafia nossas idéias. Mais fácil que tentar se situar nesse mundo é se refugiar em idéias simples, que explicam todo o funcionamento do universo e não permitem que nada, nem mesmo a lógica mais elementar, interfira nessas certezas.
Mas não é só isso. De fato vivemos num mundo hiperindividualista, o mundo do "o que importa é ser feliz". O mundo em que somos incentivados a trabalhar feito loucos para comprar coisas que supostamente nos farão felizes. O mundo em que o canalha que fica milionário explorando o trabalho de crianças é visto como um vitorioso, já que atingiu suas metas individuais, mesmo que destruindo a vida dos outros. O mundo das novelas e comédias românticas, em que a vida nada mais é do que a busca incessante pela auto-realização.
Aí é o típico caso em que um fenômeno gera a sua própria negação. Cansado do hiperindividualismo do mundo em que vivemos, a pessoa radicaliza. Joga fora o bebê junto com a água do banho e rejeita o individualismo em bloco. Passa a achar que tem o direito de decidir como os outros vão viver. Está convencido de que detém a verdade, e que ela é universal.
E há ainda a lógica de mercado que rege muitas das denominações protestantes mais novas. São empresas, e como tal tem uma estratégia muito semelhante a qualquer corporação. Precisam convencer as pessoas de que só existe vida dentro da verdade que prega, assim como a coca-cola nos convence de que quem beber pepsi não pode ser feliz. Aí o resultado é esse: a radicalização do processo de desqualificar todos os que pensam diferente. A lavagem cerebral que impede a aceitação das outras perspectivas.
Tudo isso cria essa visão das coisas. Que traz com ela a incapacidade de aceitar a diferença. Nem falo de respeito, pois esse já nem entra na conversa. Falo simplesmente da capacidade de aceitar a existência de pessoas com suas próprias idéias. Isso está cada dia mais difícil.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Rio 447



Hoje é aniversário do Rio de Janeiro, mundialmente conhecida como uma espécie de capital simbólica do Brasil. O que é muito justo: o Rio radicaliza todas as características do Brasil. Conhecer a cidade é fazer uma espécie de curso intensivo sobre o país. Para o bem e para o mal.
Uma das características mais nocivas da nossa cultura é a auto-complacência. Todo brasileiro sabe que o estado da educação e da saúde do país é uma vergonha, que a corrupção e a impunidade campeiam livres e que nossas cidades estão virtualmente intoleráveis. Mas também gostamos muito de fingir que de alguma forma isso é compensado por perfumarias: música maravilhosa, o melhor carnaval do mundo, belezas naturais estonteantes, "povo feliz e simpático", etc. Isso nos permite fingir que temos problemas mas ao fim está tudo bem. A Suécia tem um padrão de vida maravilhoso mas nós temos praia. Empatou.
Tudo isso é extremado no Rio. A natureza é incrível, tem praias cheias de gente linda, o clima é ótimo, o carnaval é mundialmente invejado e as opções culturais são estonteantes. E a população local ama pensar que isso de alguma forma é uma compensação pelo fato de o crime simplesmente não ter rivais (já que a polícia também é criminosa). Ou pelo fato de que a cidade é completamente esculhambada: a população já aceitou que o Rio é um lugar em que nada funciona e ninguém leva nada a sério. Ou seja, os mesmos problemas que o Brasil inteiro conhece, mas frequentemente lá são piores. Mas tem carnaval. Ou, numa versão ainda mais nociva, essa esculhambação total é incorporada ao "charme" da cidade.
No fim é aquilo, tudo o que o Brasil tem de bom e de ruim, o Rio tem mais. Para dar outro exemplo, é um lugar que leva ao extremo aquela coisa que existe em todas as partes do país: vivemos num país que nos odeia, só nós somos legais e respeitamos os outros, embora curiosamente falemos mal deles 24 horas por dia. Mas é diferente: na boca dos outros isso é bairrismo, na nossa é apenas o reconhecimento de uma verdade óbvia.
Exatamente como o Brasil, o Rio é um poço de problemas que a população local vê de forma muito complacente. Só que mais. Exatamente como o Brasil, o Rio é muitíssimo sedutor e tem milhões de coisas maravilhosas para fruir, caso voce não esteja sendo assaltado ou preso no trânsito. Só que ainda mais.