terça-feira, 23 de junho de 2015

O desastroso início do segundo mandato de Dilma: hora da crítica, mas também do oportunismo

Antes de começar a escrever este post fui ver minhas postagens no facebook de setembro e outubro passados. Estava tão envolvido com a campanha da Dilma que até me assusto com meu entusiasmo. A maior parte dos meus amigos e colegas também estava nessa vibe. Não vou negar que deu uma vontade de chorar pensando que lutamos tanto, nos desgastamos insanamente e perdemos noites de sono em apoio ao que no fim das contas se revelou uma grande decepção.

O ajuste fiscal em si não me decepcionou. Qualquer pessoa que entende o bê-a-bá da economia sabia que ele viria, sob preço de o país entrar em colapso. Os gastos públicos estavam altos, inflação ameaçando voltar, crescimento diminuindo e o valor internacional das commodities descendo (na década passada estavam altos, o que financiou o crescimento da nossa economia). Um corte de gastos e investimentos era esperado, seja lá quem fosse o presidente. O que não dava pra imaginar era que, em um contexto em que bancos batem recorde em cima de recorde de lucros, essa conta fosse paga por desempregados e aposentados, justamente dois dos grupos mais vulneráveis da sociedade. E que o setor que seria vítima de corte de investimentos seria logo a educação, incluindo a virtual ou total extinção de programas de sucesso inquestionável, como o PIBID. Quando votamos em Dilma, votamos exatamente por pensar que esse era o tipo de coisa que ela nunca faria.

E pra piorar há o quadro político. Tudo bem que desde 2003 nos acostumamos a tolerar os governos petistas se aliando a pessoas da pior qualidade em nome da governabilidade. Mas definitivamente a coisa passou de qualquer medida. Michel Temer é o principal articulador político do governo, Renan Calheiros várias vezes foi a grande esperança de barrar loucuras aprovadas na Câmara e Katia Abreu nega a existência de latifúndio no Brasil no papel de ministra do governo. Um sujeito tão corrupto que foi expulso do DEM é ministro dos esportes. E por aí vai. Acuado pelo medo do impeachment e do golpismo, Dilma nada mais fez que permitirem a esses cretinos vampirizarem o governo.

Há 12 anos que nós, petistas que mantemos o compromisso com uma sociedade menos desigual, toleramos isso tudo em nome de um projeto maior. Não acho que estivéssemos errados. Bem ou mal, a fórmula do lulismo reduziu a desigualdade do país como nunca antes havia ocorrido e melhorou a vida de dezenas de milhões de pessoas que nunca haviam tido qualquer oportunidade. Mas é importante saber a hora de entender quando a coisa foi longe demais. E pra mim é completamente evidente que chegamos a um ponto em que essa política pragmática de compromisso de classes chegou a um ponto de estrangulamento. Não dá mais.

Faça um teste na base do "diga com quem andas e te direi quem és". Veja quem são os aliados de Dilma. Talvez mais importante: veja quais adversários a amedrontam mais. Não é a ala esquerdista do governo nem a oposição à esquerda, muito menos a patética oposição à direita. Dilma está pautando seu governo pelo medo de desagradar gente tipo Eduardo Cunha. Um ladrão, oportunista, ligado a tudo o que há de ruim neste país. Ao invés de buscar apoio em quem se opõe a lixos como ele, Dilma busca agradar possíveis apoiadores dele, como banqueiros, industriais e evangélicos, para evitar que o presidente da Câmara fique mais poderoso ainda. Esse é o ponto em que me parece indiscutível que é hora de dar um basta. Não podemos mais tolerar esse tipo de coisa.

E sobretudo precisamos nos libertar de um medo permanente: o de sermos confundidos com o pessoal da direita que, de forma oportunista, faz essas mesmas críticas ao governo. Ora bolas, o PSDB acompanha Eduardo Cunha em todas essas pautas absurdas que ele propõe. Está de mãos dadas com Ronaldo Caiado. Governou o Brasil e governa vários estados tendo como aliados essas mesmas pessoas que Dilma quer agradar. Destruiu a universidade pública quando foi governo federal. O que se cortou agora foram coisas que nem poderíamos sonhar que existissem quando FHC era presidente. Teve greve de professores em todos os estados que governa neste ano. Sua solução foi sentar a porrada nos professores e manter eles se ferrando em uma educação sucateada.

Chega desse fantasma de que criticar os erros do governo pode nos igualar aos eleitores do PSDB. Não pode não. Eles são oportunistas, que nunca ligaram para educação, que não estão nem aí pelo fato de a educação nos estados governados pelos tucanos estar um desastre, votaram em Aécio mesmo sabendo perfeitamente que ele sequer cumpria a lei e não pagava o piso obrigatório aos professores, estão se lascando para os gigantescos cortes promovidos por Alckmin no setor, com professores comprando material com seu próprio dinheiro. Vêem sem qualquer crise de consciência seu partido votar pela redução da maioridade penal. Não ligam pra nada disso mas quando Dilma corta programas educacionais querem bancar os reis da defesa da educação. Oportunistas.

Não precisamos temer ser comparados com essa gente. Não somos como eles em nada. Eles criticam os atos recentes do governo Dilma porque não sabem fazer outra coisa. Nós não somos assim. Queremos um Brasil melhor para todos. Achamos insuportáveis as incoerências do governo federal. Não mudamos de discurso todo dia ao sabor das circunstâncias. Não queremos um governo que tenha Ipanema e Jardins como prioridade, mas um que cuide de quem mais precisa. Não temos nada a ver com eles. Não podemos continuar com o fantasma do medo de sermos confundidos com eles. Esse medo já nos silenciou demais nos últimos 12 anos. A ponto de o governo se sentir livre para chegar para a direita o quanto quiser sem medo de ser criticado por nós. Hora de virar essa página.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A direita vai à Venezuela

Acho que só há uma maneira de entender de forma contextualizada a viagem dos senadores brasileiros à Venezuela: colocá-la na série de eventos à qual pertence. Vou lembrar apenas dois, que me parecem muito sintomáticos.

Momento 1: eleições presidenciais. Eleição para cargo executivo, principalmente quando há candidato à reeleição envolvido, depende muito da leitura que o eleitorado está fazendo do governo vigente. Na última eleição o quadro era muito favorável à oposição. Fora dos círculos que amam ou odeiam o governo incondicionalmente e já tinham voto definido há muito tempo, havia um desejo de mudança. Havia inclusive muitos potenciais eleitores do PT que aprovavam as políticas sociais do governo mas que achavam que era hora de dar chance a outro grupo, que mantivesse as preocupações com os mais pobres mas que trouxesse uma renovação no campo político, algo em que Lula e Dilma não fracassaram apenas por simplesmente nem terem tentado fazer.

Então o eleitorado estava disposto a dar chance a um novo político. A grande imprensa deu a ajuda de sempre. A internet disseminou boatos, a maioria francamente absurda, mas que convenceram ingênuos e idiotas, enfim, tudo a favor de Aécio ou Marina. Mesmo assim Dilma ganhou. Por pouco, mas isso apenas mostra o preço da incompetência. Aécio perdeu em Minas Gerais, estado que governou por oito anos, nos dois turnos. E muitos eleitores que andavam descontentes com o governo acabaram votando em Dilma, por não verem nada de novo em Aécio. Bastava ter conquistado um percentual maior desse tipo de eleitor e vencido em sua casa e Aécio venceria, a despeito do caminhão de votos despejados em Dilma pelos nordestinos.

Momento 2: Eduardo Cunha. Sua eleição para a presidência da Câmara e a pauta agressiva que vem impondo são o pesadelo completo para qualquer pessoa sensata do século XXI. Não é questão de ser de direita ou de esquerda. Um corrupto homofóbico aliado da bancada da bala, que é financiado por planos de saúde para atacar o SUS, enfim, um desastre. Que faz a oposição: o elege presidente da Câmara e vota com ele. Sim, o partido de Franco Montoro, Mario Covas e Fernando Henrique Cardoso votou pela redução da maioridade penal e pela flexibilização da definição de trabalho escravo. Possivelmente vá votar a favor do estatuto da família, da redução da idade legal para trabalhar e qualquer outra coisa que Cunha propuser. Afinal, qualquer coisa que ferre o PT é bom pra eles.

Por aí já se vê novamente a incompetência da oposição à direita, em especial, do PSDB. Qual projeto eles têm para o país? Ferrar o PT. Só isso e nada mais que isso. Essas propostas absurdas são horrorosas para o país e só servem para ferrar ainda mais quem já está ferrado. Mas qual a única coisa que importa? Ser contra o PT. E a incompetência vai ainda mais longe. Pois ao se submeter a todas as vontades do presidente da Câmara, o PSDB cede voluntariamente todo o protagonismo do campo da direita a ele. Nesse ritmo, em 2018 o PSDB estará lutando para tentar indicar o vice da chapa de Eduardo Cunha. Mas não percebe isso, pois só consegue pensar no que é pior para o governo.

Agora a viagem para a Venezuela. Dilma e seu governo estão completamente perdidos. A economia vai mal, um ajuste fiscal altamente impopular está em andamento, o governo foi completamente vampirizado por uma base aliada que nem com todos os cargos do mundo vai parar de jogar contra o governo, pois quanto mais frágil estiver, mais terá de ceder. O que o PSDB faz? Propõe soluções para a economia? Articula uma frente política para tentar uma reforma eleitoral ou política decente? Não, deixa isso tudo nas mãos de Eduardo Cunha e manda seus senadores para a Venezuela para tentar criar um factóide qualquer.

Sim, pois o que houve em Caracas foi um factóide. Para começar os senadores não tinham nada o que fazer lá. Foram interferir abertamente na política interna de outro país. Imagine se o senado norte-americano mandasse uma comissão para analisar a democracia brasileira sem autorização do nosso governo. O que você acharia? Pois é, foi o que Aécio e sua turma foram fazer. Chegaram lá, foram vaiados e xingados, inventaram que foram apedrejados por uma multidão (o único vídeo apresentado mostra umas 20 pessoas xingando, algo que eles devem achar normal, já que ficaram maravilhados com os xingamentos à Dilma na abertura da Copa. Não apareceu uma mísera foto de vidros quebrados do veículo, algo óbvio caso ele fosse apedrejado), e pronto. Uma coisa absolutamente ridícula do início ao fim. Nem a Veja comprou a tese do apedrejamento.

Vamos lá então: 1) os senadores foram em uma viagem completamente sem sentido, violando a soberania venezuelana ao tentar abertamente interferir na política interna do país; 2) nem chegaram a fazer nada, pois ficaram com medo de duas dúzias de pessoas os xingando; 3)voltaram dizendo que a culpa era da Dilma (afinal, ela mandou eles irem pra lá e mandou o Maduro colocar um punhado de militantes para xingar os caras); 4) aproveitaram o ensejo para falar da ditadura venezuelana, uma ditadura muito curiosa, pois está no poder à base de eleições realizadas periodicamente aprovadas por dezenas de observadores internacionais (diga-se de passagem, a emenda de Jair Bolsonaro aprovada esses dias, muda o sistema de voto no Brasil para o sistema venezuelano).

Por que, num cenário tão favorável à oposição, Aécio se junta a gente tão completamente desprezível como Ronaldo Caiado e vai criar factóides em país vizinho? Primeiro por não ter mesmo nada a dizer. Pense: o que você sabe sobre a atuação de Aécio no senado? Nada, claro ele nunca fez nada. Não apresenta projetos, não lidera bancada, não faz posicionamentos públicos, falta até não poder mais. Não tem o que falar mesmo. Por outro lado, quer manter o clima eleitoral, que é o único no qual ele consegue manter protagonismo. Não vamos nos esquecer: a viagem vem logo após o congresso do PSDB ter indicado claramente a pretensão do partido de lançar Alckmin em 2018. Ressucitar o clima eleitoral é um jeito de tentar recuperar espaço perdido dentro do próprio partido.

Sabendo que tem toda a imprensa a seu favor, foi lá, criou o factóide e voltou feliz. Só tem um problema: isso só tem relevância para gente que já odeia o governo a ponto de ficar repetindo "PT, comunista bolivariano" sem obviamente saber do que está falando (são três coisas muito diferentes, mas pra quem é ignorante vale tudo) e votar em qualquer um que se lance contra o PT. Em suma, um discurso para consumo interno. Muito bom para quem já tem maioria. Irrelevante para quem precisa crescer muito para chegar lá. Mas como o passado nos mostra, competência passou longe desse pessoal.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Estupro e humilhação. Em nome de Cristo.

Ontem a Assembléia Legislativa de Pernambuco retirou do Plano Estadual de Educação todas as referências ao tema "gênero". Na véspera a mesma coisa havia acontecido no Distrito Federal. Uma grande vitória das bancadas religiosas. Que em nome daquele que propôs o amor ao semelhante, estão profundamente engajados na manutenção e aprimoramento da destruição daqueles que sofrem todo santo dia, e se alinham com os poderosos, com os que têm dinheiro e poder.

O principal argumento das bancadas religiosas era o de que gênero era uma ideologia. Uma imbecilidade suprema. Gênero é um conceito amplamente usado nas ciências humanas e que, até onde eu saiba, não tem sua validade negada por nenhum estudioso do tema. Mas aí é uma velha estratégia dos poderosos: chamar de "ideologia" o que eles não gostam. Nessa visão, quem contesta a ordem estabelecida é "ideológico", e os que defendem os interesses de plantão são "normais". Jesus com certeza seria um "ideológico radical" para essa gente. Até aí nenhuma grande surpresa.

Mas minha questão nem é essa. Que essas pessoas são lunáticas idiotas ou oportunistas falando borrachada é certo. Mas eu me pergunto como elas se sentem tão autorizadas a falar sobre algo que não sabem. Pois vamos lá. Ninguém é obrigado a saber o uso acadêmico que se faz do termo "gênero" nem o que significa lidar com isso em sala de aula. Tudo bem. Mas se não sabem nada, como se sentem em condições de legislar sobre isso?

Pois vamos combinar: falar de gênero é algo que é inerente ao trabalho do professor. Qualquer pessoa que colocou os pés numa sala de aula em algum dia da sua vida viu bullying, discriminação e coisas do tipo em relação aos grupos dominados. O aluno de orientação homossexual sendo ridicularizado, a guria de minissaia sendo chamada de puta. Isso acontece todo santo dia. Você tem muitas opções quando se defronta com isso. Pode ficar quieto, fingindo que não viu, pode problematizar o assunto, pode culpar a vítima, enfim, são opções. Mas não é possível não tomar partido. O silêncio já é uma opção.

Já contei aqui. Um colega de 4a série era vítima de bullying por sua óbvia orientação homossexual. Nenhum professor nunca fez nada. Dia após dia o rapaz era vaiado, xingado, agredido, e nenhum professor jamais abriu a boca para se pronunciar sobre o assunto. O guri nunca mais apareceu na escola depois do fim do ano. Alguém pode, em sã consciência, defender que o silêncio daqueles professores era "neutro"? Claro que era um sinal verde para que aquilo tudo continuasse. Eu, com 9 anos, via aquilo claramente, meus colegas também, e a vítima em questão também.

Ao tratar a discussão sobre gênero como "ideologia" e o silêncio como norma, é essa realidade que essas pessoas almejam. Que homossexuais sejam xingados, apedrejados, socados na cara, que mulheres sejam alisadas, bolinadas, estupradas. Que o professor não tenha o direito de intervir. Em suma, como sempre o que essa gente quer é manter privilégios. Que o homem hetero e branco possa fazer o que quiser sem ser incomodado. Não há nenhum outro ponto em jogo. Se trata apenas disso.

A referência a questões de gênero no Plano Estadual de Educação simplesmente indicava que os professores deveriam pregar o direito à diversidade e o respeito à diferença. O que soa horrivelmente ofensivo para pessoas que só querem oprimir ainda mais quem já é oprimido. Um pai que tenha uma filha sendo chamada de puta pela escola inteira por alguma foto qualquer postada em alguma rede social iria querer que a escola interviesse. Com toda a razão. Mas na cabeça doentia dessa gente isso é uma intervenção do Estado a favor dos gays. Afinal, eles só pensam nisso. É uma fixação: ninguém no mundo se importa tanto com os gays quanto esse pessoal. Se importam muito mais que os próprios gays.

Resultado: deputados pernambucanos liberaram a agressão, o xingamento, o bullying e tudo o mais que se possa imaginar nas escolas. Sem que os professores possam agir. Para eles, isso é defender a família, a moral, os bons costumes. Tudo em nome de quem sempre se colocou ao lado dos fracos e oprimidos. Obrigado Assembléia Legislativa, obrigado, eleitorado.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Brasil encaretou? Eu não acho.

Tenho visto gente de todas as idades dizendo que o Brasil vem vivendo um grande retrocesso em temas como machismo, racismo, homofobia, drogas, aborto, etc. Eu não concordo minimamente. E vou explicar por que. Mas primeiro, quero expor dois pressupostos deste texto, que pretende ser mais reflexivo que aqueles escritos de cabeça quente, aqueles pautados pelo imediatismo e também os que jogam pra galera em busca das curtidas e cliques de quem mal lê a manchete e já concorda ou discorda.

1) Ao contrário do que diz uma visão idealizada, os anos 60 e 70 não eram um mega Woodstock. Eram um período de violentíssimo racismo, machismo e homofobia. Aquele mundinho hippie era mínimo; 2) há coisas que sempre existiram, mas a gente não sabia. Pessoas sendo mortas pela sua orientação, episódios de discriminação, mulheres espancadas por maridos escrotos, tudo isso é mais velho que andar pra frente. Mas a grande mídia não noticiava, como não noticia até hoje. Sem as redes sociais, não saberíamos que PMs baianos executaram adolescentes desarmados em Salvador, o que aconteceu com Amarildo, e coisas do tipo. Mas essas coisas sempre existiram. Mas não sabíamos.

Nasci em 1972. No caso das mulheres, o que me lembro é de algo que foi marcante quando era criança. Um playboy carioca matou a mulher porque a flagrou com uma amante. Não apenas foi absolvido como saiu carregado do tribunal. Sim, podia matar a mulher, dizer que foi "por amor" (mesmo que fosse apenas ciúme) e a lei achava tudo bem. Divórcio só passou a existir naquela época. Inclusive depois a Globo fez uma minissérie chamada "Quem ama não mata", justamente contra a ideia dominante de que se podia matar a mulher "por amor". Hoje isso existe, sabemos disso. Mas não é social e juridicamente aprovado. Na mesma época a Globo fez um programa matutino, TV Mulher, que tinha coisas como a Marta Suplicy dando aulas de sexo para mulheres casadas. Mulheres sexualmente ativas há 10, 20, 30 anos, muitas das quais instruídas, e não sabiam o que era clitóris. Pense que mundo era esse.

Na época tinha gente bradando contra as "feminazis"? Não tinha. Mas não porque o país era melhor. Justamente porque era pior. Feministas eram poucas, "invisíveis", não tinham onde se expressar e eram motivo de piada. A supremacia masculina era total. Não havia a menor necessidade de combater os que defendiam direitos para mulheres. Isso nem era uma questão. Ou seja: o ódio é um sintoma evidente de que os privilegiados se sentem ameaçados. É uma coisa boa.

Quanto ao racismo a coisa não é muito diferente. Fazíamos piadas super racistas, colocávamos apelidos tipo "nublado", "sombra" em nossos amigos negros enquanto os chamavamos de macacos, mas era piada, com carinho, o Brasil não era racista, isso era coisa de americano. O tom predominante das comemorações do centenário da abolição da escravatura, em 1988, foi "congraçamento de um povo em que não há racismo e em que a escravidão se encerrou pacificamente, com uma dádiva da elite ao amado povo negro". Movimento negro nem existia na mídia. No meu próprio tempo de faculdade (primeira metade dos anos 90) o debate entre os alunos era pífio. Se lamentava o racismo explícito e parava por aí. Esse era o tom. Ser progressista era ser contra coisas como um pai proibir a filha de namorar um negro (eu vi isso em 1990). Mas esse era o limite.

Ao longo dos anos 1990 a coisa teve um grande avanço. O movimento negro cresceu, se empoderou, botou sua agenda na rua, conscientizou muitos brancos de que racismo era muito mais que bater ou xingar negros, que fazer piada racista NUNCA era brincadeira. De FHC em diante tivemos presidentes simpáticos à causa, as cotas vieram pra ficar. Não tive um único colega negro em toda a minha graduação, mas tenho muitos alunos negros hoje. Pessoas que antes se diziam "moreno", "pardo", hoje tem orgulho de ser negros. Falta muito, mas muito para chegarmos lá. Mas o que há de ruim sempre existiu. Não piorou. Nos anos 80 já não tinhamos médicos negros e a PM já os via como suspeitos. Precisamos lutar pra acabar com isso, mas não são sinais de piora.

E vamos agora ao ponto que é o tema do momento, os homossexuais. É fácil olhar para 30 anos atrás, ver que não havia Malafaias e Felicianos e pensar que pioramos. Eu acho exatamente o contrário. Há uma coisa que a história nos ensina. Os privilegiados ficarem mais e mais raivosos e necessitando exibir mais e mais poder, é sintoma de que estão se sentindo mais ameaçados do que nunca. Exemplo: ninguém em 1770 defendia a escravidão. Ela era um dado óbvio da realidade, não precisava ser defendida. Mas abra um jornal de 1870 e você verá gente defendendo a mesma de forma absolutamente exaltada. Afinal, sentiam que o cenário era desfavorável.

Em 1980 não havia necessidade de Malafaias. O ambiente social à volta de um gay era tão avassalador que só lhe restavam tres opções: 1) sumir em busca de um reduto em que sua orientação não fosse um defeito (ou seja, deixar de existir para aquele grupo); 2) Se conformar a uma vida miseravelmente infeliz de prática sexual hétero; 3) Inventar histórias absolutamente mirabolantes para nunca ser visto com ninguem do sexo oposto (namoros à distancia, coisas assim). Na TV gays eram apenas uma piada, a bicha ridícula e cheia de trejeitos. Não era necessário ninguém na mídia e nas redes sociais despejando discurso homofóbico. A opressão que a sociedade impingia a essas pessoas era suficiente (e é disso que essa gente tem tanta saudade).

A existência dessas pessoas, o ódio que destilam a pessoas que não fazem nada que interfira nas vidas deles, a repetição doentia do discurso deles por parte de tantos fiéis, os sofismas absurdos repetidos 24 horas por dia... tudo isso só me mostra uma coisa: desespero. Isso inclui a repetição desesperada de uma frase escrita há mais de 3 mil anos atrás no Levítico, o mesmo livro que diz que você pode ter escravos desde que não sejam israelitas, proíbe o consumo de carne de porco, diz que mulheres que deram à luz são impuras, proíbe o cultivo de cereais diferentes no mesmo campo, e por aí vai. Sério, gente, isso é desespero, nada mais. Não são ameaças, são provas de que a humanidade evolui, e que quem tem saudades daquele mundo descrito anteriormente não sabe mais o que fazer.

Em 1982 eu estava na 4a série. Na minha turma havia um rapaz de evidente orientação gay. José Frederico era o nome dele. Todo dia na hora da chamada todo mundo vaiava seu nome quando chamado. Nenhum professor nunca fez nada. Como a turma inteira, eu vaiava também. Acabou o ano e nunca mais vi José Frederico, que mudou de escola, fácil imaginar por que. 33 anos depois, estou aqui me programando pra ir na parada gay com minha filha lésbica vestido de Frida Kahlo, maquiado e vestido pelos amigos gays dela. A humanidade avançou muito nesse quesito.

Claro que todo dia ficamos sabendo de algo que nos racha por dentro. Pessoas mortas, agredidas ou discriminadas por gênero, cor da pele e orientação sexual, por exemplo, que foram os temas mencionados com mais ênfase aqui (mas longe de ser os únicos). Mas isso não quer dizer que pioramos. Quer dizer que: 1) Hoje, ao contrário de 30 anos atrás, há milhões de pessoas sendo informadas sobre essas coisas e se indignando com isso; 2) essas pessoas mostram o desespero desses grupos privilegiados. Sim, falta muito, sim, sofreremos muito ainda, sim, sofreremos muitas derrotas (com esse congresso aí então...), mas no longo prazo não há o que fazer. A história joga a nosso favor. Vivemos num mundo muito melhor que aquele em que nasci. E quando tiverem minha idade, meus netos viverão em um muito melhor que o de hoje. Não tenho nenhuma dúvida.


sábado, 6 de junho de 2015

Minha tarde com o deputado: the day after

Com muita honra aceitei o convite do Diário de Pernambuco, um jornal de 190 anos de idade, para ir à sua sede gravar um podcast debatendo o Estatuto da Família com seu autor, o deputado Anderson Ferreira. Não vou entrar em detalhes sobre como foi, o podcast está disponível tanto no site do jornal como em minha página de facebook. Se tiver paciência e estômago para tanto, fique à vontade. Não vou repetir o que ouvi. Tive de tomar umas belas caipirinhas ontem como forma de higienizar meu cérebro depois daquilo.

No dia seguinte, hoje, conversava com uma das minhas melhores amigas, colega de faculdade. Professora de história no Rio Grande do Sul, ela ouviu uma palestra de um deputado que propõe uma lei "contra a ideologia na escola". Criaram até um site "Escola sem partido", que é um hino à insanidade, e nem poderia deixar de ser. Fiquei pensando se eram pessoas sem treinamento ou experiência na área e que sofriam de tamanho retardo mental que não sabem sequer o que qualquer estudante de humanas aprende no primeiro mês de faculdade: não existe nada sem ideologia. Um livro de teor marxista é ideológico? Sim. Um livro de teor liberal é ideológico? Tanto quanto. Um livro defendendo Hitler? Mesma coisa. Os três livros são ideológicos, e nem poderiam ser diferente. Não há como ser ideologicamente neutro. Ninguém nunca foi, é ou será. Aí, numa rápida olhada no tal site, vi os livros que eles recomendam. Todos são de direita. Assumidamente. Ou seja: ou são pessoas débeis mentais, ou mentirosos que querem ensinar a visão de mundo direitista fingindo que isso não é ideologia ou as duas coisas juntas.

Ficamos conversando sobre isso tudo até chegarmos à seguinte conclusão: existe uma horda de pessoas incivilizadas que acredita sinceramente que os comunistas, feminazis e gays dominaram o país (ou o mundo, ou a via láctea, sei lá, essa gente é louca), instituíram uma ditadura e agora é a hora dos pobres oprimidos (ricos, brancos, cristãos, héteros) ao menos recuperarem alguns de seus direitos básicos destruídos por essa gente malvada.

Isso tem a ver com o fato de que essas pessoas sentem que perderam o controle do mundo. Embora continuem privilegiadas, adotam um discurso vitimizador de que tudo é contra elas. Tudo em função de vários eventos que tivemos nos últimos tempos. PT no governo, maior visibilidade de LGBT e feministas, cotas, casais gays nas novelas, ascensão social de novos grupos, nordeste votando no PT, e por aí vai. São fenômenos que muitas vezes sequer eram relacionados entre si, mas na cabeça doentia dessas pessoas era um mega combo criado pelo capeta para destruir tudo o que há de bom no mundo.

Tanto essas coisas não estão associadas, que conheço várias pessoas mais ou menos assim: Tucanos, antipetistas, a favor dos direitos para mulheres e homossexuais, anti-racistas mas contra as cotas. Não vejo nenhum problema com essa posição, que me parece válida. Mas não é a gente assim que estou me referindo. O objeto estudado aqui é uma curiosa mescla de reaças, setores evangélicos, jovens que tem orgulho de ser conservadores e acham que Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino são gênios da raça, viúvas da ditadura. Uma mistura indigesta que conseguiu eleger uma enorme bancada na atual legislatura, além de criar sites e blogs muito populares. De olho nesse novo público, e em crise, o jornalismo impresso abriu as portas para essa gente, aumentando ainda mais sua visibilidade (e como eles são antipetistas viscerais, tudo bem).

Dá pra ver contra o que essas pessoas são contra: tudo o que não existia ou era violentamente reprimido em 1264. Aborto, direitos humanos, direitos para mulheres e homossexuais, oportunidade para pobres e para o grupo étnico não dominante, comunismo (o que é curioso, já que os comunistas não ocupam um posto importante, não ganham uma eleição pra nada, normalmente nem saem do traço nas pesquisas eleitorais, mas como eles chamam o megacombo inteiro de comunismo, então parece importante), etc. Os que têm viés evangélico também odeiam religiões afro (nunca entendi por que o ódio em particular por essas religiões, talvez a mistura de coisas que eles não gostam, tipo não serem cristãs e permitirem o protagonismo de mulheres e homossexuais, deve soar muito como "coisa do capeta"). E odeiam o PT, claro. A favor de que eles são não sabemos muito bem, pois o discurso é tão confuso e revelador de problemas cognitivos que uma honesta tentativa de entender está fadada ao fracasso.

Até porque não é algo racional. É um sentimento de perda de algo muito bom. Um passado mágico em que as pessoas eram boas, honestas, respeitadoras e cristãs, ninguém questionava os grupos privilegiados, os professores ensinavam coisas edificantes, como as vidas dos nossos heróis, verdadeiros exemplos para a juventude, não havia luta de classes, os subalternos eram obedientes e muito felizes com isso, o homossexualismo ainda não havia sido inventado, assim como o comunismo, e por aí vai.

O que nos leva de volta ao ponto inicial. Qual é o problema do homossexual? Nesse mundo tão organizado, ele é algo "fora do lugar", um símbolo de que o mundo não é organizado como essas pessoas gostariam. Precisam ser extirpados. E a escola tem como problema ensinar aos filhos que existe racismo, machismo, homofobia, pobreza, etc., coisas que eles não querem que exista. Então vamos lá, um bando de gente que não entende nada de educação, legislar sobre o que professores podem ou não fazer. Não importa que existam milhões e milhões de pessoas que levarão uma vida miserável por causa disso. Eles nem pensam nesse assunto. É tanto preconceito que sequer conseguem ver que isso exista. Querem é viver o idealizado mundo de fantasia que acreditam ser o mundo real. E foda-se o resto do mundo.