sábado, 6 de junho de 2015

Minha tarde com o deputado: the day after

Com muita honra aceitei o convite do Diário de Pernambuco, um jornal de 190 anos de idade, para ir à sua sede gravar um podcast debatendo o Estatuto da Família com seu autor, o deputado Anderson Ferreira. Não vou entrar em detalhes sobre como foi, o podcast está disponível tanto no site do jornal como em minha página de facebook. Se tiver paciência e estômago para tanto, fique à vontade. Não vou repetir o que ouvi. Tive de tomar umas belas caipirinhas ontem como forma de higienizar meu cérebro depois daquilo.

No dia seguinte, hoje, conversava com uma das minhas melhores amigas, colega de faculdade. Professora de história no Rio Grande do Sul, ela ouviu uma palestra de um deputado que propõe uma lei "contra a ideologia na escola". Criaram até um site "Escola sem partido", que é um hino à insanidade, e nem poderia deixar de ser. Fiquei pensando se eram pessoas sem treinamento ou experiência na área e que sofriam de tamanho retardo mental que não sabem sequer o que qualquer estudante de humanas aprende no primeiro mês de faculdade: não existe nada sem ideologia. Um livro de teor marxista é ideológico? Sim. Um livro de teor liberal é ideológico? Tanto quanto. Um livro defendendo Hitler? Mesma coisa. Os três livros são ideológicos, e nem poderiam ser diferente. Não há como ser ideologicamente neutro. Ninguém nunca foi, é ou será. Aí, numa rápida olhada no tal site, vi os livros que eles recomendam. Todos são de direita. Assumidamente. Ou seja: ou são pessoas débeis mentais, ou mentirosos que querem ensinar a visão de mundo direitista fingindo que isso não é ideologia ou as duas coisas juntas.

Ficamos conversando sobre isso tudo até chegarmos à seguinte conclusão: existe uma horda de pessoas incivilizadas que acredita sinceramente que os comunistas, feminazis e gays dominaram o país (ou o mundo, ou a via láctea, sei lá, essa gente é louca), instituíram uma ditadura e agora é a hora dos pobres oprimidos (ricos, brancos, cristãos, héteros) ao menos recuperarem alguns de seus direitos básicos destruídos por essa gente malvada.

Isso tem a ver com o fato de que essas pessoas sentem que perderam o controle do mundo. Embora continuem privilegiadas, adotam um discurso vitimizador de que tudo é contra elas. Tudo em função de vários eventos que tivemos nos últimos tempos. PT no governo, maior visibilidade de LGBT e feministas, cotas, casais gays nas novelas, ascensão social de novos grupos, nordeste votando no PT, e por aí vai. São fenômenos que muitas vezes sequer eram relacionados entre si, mas na cabeça doentia dessas pessoas era um mega combo criado pelo capeta para destruir tudo o que há de bom no mundo.

Tanto essas coisas não estão associadas, que conheço várias pessoas mais ou menos assim: Tucanos, antipetistas, a favor dos direitos para mulheres e homossexuais, anti-racistas mas contra as cotas. Não vejo nenhum problema com essa posição, que me parece válida. Mas não é a gente assim que estou me referindo. O objeto estudado aqui é uma curiosa mescla de reaças, setores evangélicos, jovens que tem orgulho de ser conservadores e acham que Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino são gênios da raça, viúvas da ditadura. Uma mistura indigesta que conseguiu eleger uma enorme bancada na atual legislatura, além de criar sites e blogs muito populares. De olho nesse novo público, e em crise, o jornalismo impresso abriu as portas para essa gente, aumentando ainda mais sua visibilidade (e como eles são antipetistas viscerais, tudo bem).

Dá pra ver contra o que essas pessoas são contra: tudo o que não existia ou era violentamente reprimido em 1264. Aborto, direitos humanos, direitos para mulheres e homossexuais, oportunidade para pobres e para o grupo étnico não dominante, comunismo (o que é curioso, já que os comunistas não ocupam um posto importante, não ganham uma eleição pra nada, normalmente nem saem do traço nas pesquisas eleitorais, mas como eles chamam o megacombo inteiro de comunismo, então parece importante), etc. Os que têm viés evangélico também odeiam religiões afro (nunca entendi por que o ódio em particular por essas religiões, talvez a mistura de coisas que eles não gostam, tipo não serem cristãs e permitirem o protagonismo de mulheres e homossexuais, deve soar muito como "coisa do capeta"). E odeiam o PT, claro. A favor de que eles são não sabemos muito bem, pois o discurso é tão confuso e revelador de problemas cognitivos que uma honesta tentativa de entender está fadada ao fracasso.

Até porque não é algo racional. É um sentimento de perda de algo muito bom. Um passado mágico em que as pessoas eram boas, honestas, respeitadoras e cristãs, ninguém questionava os grupos privilegiados, os professores ensinavam coisas edificantes, como as vidas dos nossos heróis, verdadeiros exemplos para a juventude, não havia luta de classes, os subalternos eram obedientes e muito felizes com isso, o homossexualismo ainda não havia sido inventado, assim como o comunismo, e por aí vai.

O que nos leva de volta ao ponto inicial. Qual é o problema do homossexual? Nesse mundo tão organizado, ele é algo "fora do lugar", um símbolo de que o mundo não é organizado como essas pessoas gostariam. Precisam ser extirpados. E a escola tem como problema ensinar aos filhos que existe racismo, machismo, homofobia, pobreza, etc., coisas que eles não querem que exista. Então vamos lá, um bando de gente que não entende nada de educação, legislar sobre o que professores podem ou não fazer. Não importa que existam milhões e milhões de pessoas que levarão uma vida miserável por causa disso. Eles nem pensam nesse assunto. É tanto preconceito que sequer conseguem ver que isso exista. Querem é viver o idealizado mundo de fantasia que acreditam ser o mundo real. E foda-se o resto do mundo.

2 comentários:

  1. Aquele debate me deu vontade de vomitar em minha própria boca! Também considerei tomar qualquer coisa alcoólica para me recuperar psicologicamente... Estou cansada de tanta intolerância e dessa visão de que quando o outro ganha eu perco... Nossa isso é totalmente anti-cristão, chega a doer no osso que me deu a vida...

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  2. Ainda temos o fato de que a sociedade brasileira, em geral, dá extremo valor à moral, e pouco (ou nenhum) valor à ética. Ou seja, tentam hipocritamente controlar o comportamento das pessoas a partir de pressupostos do que seja certo ou errado, mas não se importam em tirar vantagens nas relações sociais, bem como não vêem problema em se beneficiar da coisa pública como se fosse sua propriedade privada.

    Moisés Cesar

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