sábado, 29 de agosto de 2015

Ter uma filha lésbica

"E se você tivesse um filho gay?". Todo mundo já fez e ouviu essa pergunta. Geralmente em tom agressivo, quase como se te perguntassem "e se você tivesse um acidente horrível e perdesse sua perna?".

Ter uma filha lésbica não é nada assim. Claro que cada lésbica é uma individualidade, como cada pessoa é. No meu caso ter uma filha lésbica significou passar os fins de semana cozinhando comidas gordurosas e vendo futebol. Em suma, nada que eu já não fizesse, só que com a melhor companhia do mundo. No meu caso ao menos foi assim.

Todas as pessoas que me conhecem acham que minha vida mudou para muito melhor com ela. Morrem de rir do quanto ela é mandona comigo, dos ciúmes que ela tem de mim com quase todas as outras mulheres da galáxia, e pra falar a verdade eu me divirto muito com isso. Adoro ver como ela acha que para uma mulher estar perto de mim ela tem de me merecer. Implicitamente isso significa que ela me dá um valor enorme e não quer que eu gaste isso com qualquer uma. Faz bem sim.

E não é só isso. Ela morre de raiva de mim quando não cuido da minha saúde. Acha que se eu morrer ela não vai aguentar, e precisa que eu seja o avô dos filhos dela. Me cerca, me vigia, é insuportável. Mas eu amo. Esse lado "sargento nazista" dela é apenas amor. Eu amo demais ela ser assim comigo.

Melhor ainda. Ela fez com que meu pai e minha mãe tenham se engajado na causa gay. Eles são de outra época e têm todo o direito do mundo de ter dificuldades com esse tema. Mas abraçaram a causa e fazem posts nas redes sociais xingando quem não gosta de lésbica. Gênios. Na verdade meus tios, tias, primos e primas dos dois lados da família foram geniais nisso tudo, o que só me fez acreditar num mundo melhor.

Outra parte boa foi ver minhas amigas lésbicas velha guarda cerrando fileiras e vendo ela como sobrinha. Pra piorar tudo, acham que ela está sempre certa em tudo e vivem me dando bronca, dizendo que sou um velho idiota que não sabe nada. Quis sair de Carmem Miranda na parada gay do Recife, filha vetou, pediu ajuda as amigas e elas acharam coisa de velho e vetaram também.

Tem o lado ruim. Num mundo repleto de Malafaias e Felicianos eu tenho pânico diário. Medo supremo de ela ser agredida. Mas quando chego em casa e ela está lá esperando para que eu cozinhe algo bem gorduroso, ligue a TV pra vermos futebol enquanto me olha com cara de "velho, eu te amo", dá vontade de viver pela eternidade.

Enfim, ela tem no coração todo o amor que existe no mundo e mostra isso do jeito dela para seu pai a cada minuto. O que não a faz diferente de nenhuma filha que já tenha existido. Só posso ter pena de quem não entende algo tão simples.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Tá pouco imposto, pode mandar mais

Todo santo dia escuto gente reclamando da carga tributária brasileira. É generalizada a percepção de que pagamos impostos demais. Se for empresário então, sai da frente. Todos se sentem coitadinhos por causa dos "encargos" que oprimem os pobrezinhos que levam o Brasil à frente. Por algum motivo (só pode ser burrice ou insanidade) associam isso ao PT, que não criou ou aumentou um único imposto (na verdade na época da crise de 2008 Lula até cortou impostos para garantir a venda de carros). Pois bem: não concordo. Claro que o título do post é uma piada, mas acho que tem de ter muito imposto mesmo.

Esse pessoal que reclama de imposto vai aos EUA e volta maravilhado de saber que há coisas lá que custam mais barato que aqui. Acham que é só por causa da diferença na carga tributária. Claro que não é. Os preços são determinados pelo quanto o consumidor está disposto a gastar. Se a elite brasileira é otária de pagar caro por um sanduíche do Mc Donalds eles vão botar o preço lá em cima, lógico. Mas enfim, a questão nem é essa. O ponto é: quando brasileiro vai aos EUA? Quando estão de férias. Sabe aquilo que o empresário chama de "encargos", "custo Brasil", etc.? Pois é, férias está no meio, assim como 13o salário e aposentadoria.

Agora, você que acha uma maravilha os EUA porque lá tem menos impostos e encargos, me responda a uma pergunta. Você acha que norte americanos tem férias como as suas? Tem não. Minha nora, que é norte americana, tem 15 dias de férias por ano, e o patrão desconta os dias não trabalhados. Saúde pública eles não tem. Ou é plano de saúde ou paga por consulta ou procedimento (situação melhorou com o Obamacare). Assim, amiguinho, aqueles 30 dias por ano em que você não trabalha e ainda leva uma bolada que paga tua viagem para os EUA não existem lá. Nossa saúde pública é maravilhosa? Não, mas ela existe e atende a todos, ao contrário dos seus amados EUA. Aposentadoria esqueça. Só existe aposentadoria privada por lá. Você tem plano de aposentadoria privada? Não? Está contando com a aposentadoria que o Estado vai te pagar? Ué, mas como queria que o Estado te pagasse pra ficar em casa se não fosse com seus impostos?

Fechada a parte da burrice, vamos à parte do egoísmo. Uma das coisas mais curiosas que existe é esse pessoal que reclama que a educação pública é ruim, que a saúde pública é um lixo, etc. e quer pagar menos impostos. Sério: ninguém pode ser tão burro. De onde eles acham que sai o dinheiro para pagar essas coisas que não dos impostos? Mas lógico que não é burrice, é egoísmo mesmo. A pessoa quer que todos sejam felizes desde que não seja ela a pagar por isso. Faça o seguinte exercício. Pense naquele seu amigo que reclama de impostos o dia todo. Aí suponha que amanhã sai no Diário Oficial uma lei dizendo que todos os impostos seguem iguais só que ele não precisa mais pagar. Você acha que algum dia ele reclama de novo? Claro que não. Esse pessoal não é contra impostos, eles só não querem dividir seu rico dinheirinho com ninguém.

Da minha parte não reclamo de pagar impostos. Somos nós, classe média e alta que temos de pagar impostos para financiar os programas governamentais que melhoram a vida das pessoas. Na verdade, ainda que alta, a carga tributária brasileira é muito injusta com os pobres, que gastam uma porcentagem bem maior da sua renda com isso que os ricos, esses bebês chorões mimados que só sabem reclamar de tudo. Isso tinha de ser redesenhado, e elite e classe média pagarem mais. Somos um país pobre, com muita gente que precisa do Estado, e não vejo quem vá pagar por isso que não nós, que temos condição melhor. Na Europa é assim. Brasileiro vai lá, acha o máximo, diz que aqui devia ser assim mas não quer pagar por isso. Ou é burro de achar que essas coisas são de graça ou são egoístas querendo vida melhor pra todos desde que ele não tenha de pagar. Não vejo outra opção.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Ainda há motivos para apoiar o governo?

O ano de 2015 vem sendo horroroso para quem apóia o governo. Todos os pesadelos estão se concretizando ao mesmo tempo. Nem me refiro aos protestos, aos pedidos de impeachment, isso é o de menos. O pior é o que vem do próprio governo. Acuada pelo contexto que ela própria ajudou a criar e sem qualquer habilidade política, Dilma entregou o governo a tudo o que há de pior neste país. Tipo: estamos comemorando a Globo e o Itaú ajudarem a segurar o governo vivo e torcemos para Renan Calheiros e Michel Temer trabalharem bem no mesmo sentido.

Como sabemos, o grupo oposicionista que tem alguma viabilidade eleitoral não é uma alternativa melhor. Faz tudo isso aí e ainda pior. Senta a porrada em professor, deixa a população sem água e por aí vai. Que ter Dilma é melhor que essa gente é algo que eu nunca sequer me questionei. Na minha cabeça é tão óbvio quanto o nascer do sol. Mas para quem fez muita campanha por ela e se acabou de tanto chorar no dia que ela venceu Aécio, é pouco estar ao lado do menos pior. Acho patético ouvir gente inteligente dizendo "vale tudo contra o PT" e não quero ser igual a eles no sentido inverso. Quero motivos para acreditar que Dilma é o melhor, não que ela é o mal menor.

Penso nisso em casa. O problema é que na universidade é simplesmente impossível colocar esse assunto em pauta. Encontro aquele monte de alunos nascidos e crescidos na periferia do Recife e das cidades vizinhas. Gente que nunca viu formatura de ninguém da família estudando em universidade, muito menos universidade federal. Pessoas que vivem num mundo em que ninguém nunca teve chance. E são infinitamente gratas a esse governo por estarem ali. Eles têm plena consciência de quem os colocou lá. Para eles não há nada no mundo que justifique questionar um governo que os colocou dentro da universidade pública, algo que seus pais jamais puderam sonhar.

Um par de anos atrás conheci o interior de Pernambuco. Conversei com um agricultor, com poucos dentes, explicando que até o governo Lula começar eles não tinham água e luz em casa. Entendeu? Água e luz. Direitos básicos que você e eu sempre tivemos. O gás também era do governo federal, assim como a cisterna que permitia que eles nunca ficassem sem água. O tipo de gente que todo mundo que mora no sul e sudeste nunca vai entender, e muitos deles dizem que essa gente vende o voto. Gente honesta e trabalhadora, sofrida, que para esses críticos comete o pecado de votar em quem melhorou suas vidas como ninguém.

Da perspectiva confortável dos bairros confortáveis das grandes cidades brasileiras (aqui especificamente me dirijo à esquerda, tanto quanto à direita) pode parecer que esse governo não fez nada e só sabe compactuar com os interesses estabelecidos. Mas quem conhece de perto pessoas pobres, humildes, doídas, sofridas, cujas vidas foram barbaramente melhoradas nesses anos, não consegue ver as coisas por esse prisma. A direita escrota, babaca, individualista, que só pensa em ir pra Miami nunca vai querer saber disso, assim como a esquerda danoninho em seus escritórios confortáveis onde o que importa são coisas que fazem a alegria dos jornais, tipo alianças horrorosas (que existem mesmo). Mas sem negar a realidade que essas pessoas vêem, aqui vai um contraponto: que tal olhar um pouquinho, uma vez na vida, para as pessoas que mais precisam e ver o que Lula e Dilma fizeram para mudar a vida delas?

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Sobre os protestos

Ao menos pela minha forma de ver o mundo há muitos motivos para criticar o governo atual. Já deixei claro em outros posts: acho que houve erros na condução da economia e a formação da equipe deste segundo governo Dilma é um pesadelo total. Vão me desculpar os amigos governistas como eu, mas tá foda defender esse governo.

E acho absurdo que muitos companheiros pensem que o único motivo para sair de casa para protestar seja ser um coxinha babaca, ou algo pior, tipo gente que defende ditadura. O governo está ruim mesmo. Há motivos para queixas. Não tenho o mais vago problema contra quem não gosta dele. Eu também não estou gostando. E olhe que amo a Dilma. Mas amo de doer.

Também acho absurdo certos argumentos de quem defende o governo, tipo colocar o Zé Dirceu como mártir. Ele é um político corrupto e está pagando por isso. Sim, está errado que mídia e judiciário aliviem a barra de coisas parecidas quando feitas pela direita. Isso eu não discuto. Mas não anulam o que gente como ele fez. O governo do PT é um governo corrupto e negar isso é flertar com a insanidade.

Meu problema com as pessoas que foram as manifestações são outros. O primeiro é a lógica seletiva. Aí é aquela coisa: ou sua regra vale pra todo mundo ou só vale quando te interessa, aí você é um puta de um hipócrita. O PSDB enfrentou greves de professor em todos os estados que governa este ano. Se você votou neles e está na rua pedindo mais educação, você é hipócrita. Se você quer que o Estado ofereça melhores serviços de educação, saúde, etc. e quer pagar menos impostos, desculpe, mas você precisa pensar melhor na vida. Se você reclama da conta de luz, bota a culpa no governo federal, mas acha tudo bem não ter água em casa enquanto a conta de água sobe e os lucros da Sabesp batem recordes, vamos combinar, sua indignação é muito seletiva. Se você fica com raivinha do Haddad porque não concorda com as ciclofaixas, acha de boas o Alckmin atrasar barbaramente a entrega das obras do metrô, lamento, mas mobilidade urbana é a última de suas prioridades.

Mas o problema maior nem é esse. Por mais que digam que é "apenas uma minoria" (não sei se é, não tenho dados a respeito), tinha gente lá defendendo nazismo, ditadura, gente falando que rico tinha de governar o Brasil, etc. Pode ser que a maioria não concorde com isso. Mas ela viu e ficou quieta. Mais que ficar quieta, tirou fotos super orgulhosa de estar lá com essas pessoas. Chamou isso de "cidadania". O silêncio é uma omissão. É uma permissibilidade. Se eu vejo alguém fazendo algo errado e deixo pra lá eu sou cúmplice, não sou? Pois é. Foi o que aconteceu. Essas pessoas foram para a rua, viram gente pedindo ditadura, fazendo saudação nazista e não fizeram NADA. Absolutamente nada. Eu sou de uma família que sofreu muito por causa da ditadura, e nunca vou perdoar esse silêncio.

Nosso governo não está bem. E tem sim que lidar com episódios de corrupção. Mas ouvir gente que votou em Aécio Neves querendo impeachment e pagando de moralista é pra arrombar qualquer um. Sinceramente é algo que ninguém merece nesta vida. Hipocrisia tem limite. Ou deveria ter.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Se eu não fosse professor...

Tenho tantos anos vivendo a profissão de professor que acho melhor nem falar. Nesses muitos anos perdi a conta de quantas vezes me perguntei qual o sentido de fazer o que faço. Nem sei qual a pior parte desse ofício. Provavelmente seja viver num mundo em que todo mundo diz que educação é importante, mas você sabe que a maioria é absolutamente hipócrita. O fato real que todo professor sabe é: vivemos num país em que todo mundo diz que se importa com a educação mas na verdade se fodem pra isso. O absoluto silêncio sobre a escandalosa agressão da polícia paranaense contra professores, a forma autoritária que o governo paulista tratou os professores em greve e a ausência de diálogo do governo federal na greve dos professores universitários em 2012 mostra isso.

Mas todas as dúvidas somem quando entro em sala de aula. A meu ver o melhor lugar do universo. Lembro de um momento, lá pelos idos de 2005, 2006, em que eu estava deprimido. Pensava em morrer o dia inteiro. Tomava antidepressivos, ansiolíticos, e nada melhorava. Mas ninguém percebia. Em boa parte porque quando eu entrava em sala de aula esquecia tudo e virava outra pessoa. Era algo impressionante: acabei virando padrinho de casamento de dois alunos dessa turma, sou padrinho do filho de um deles, fui paraninfo na formatura, é uma turma com quem tenho laços fortes até hoje. Cada dia que eu entrava na sala de aula com eles eu era alguém que tinha passado uma hora na cama sem conseguir levantar e saía forte e rejuvenescido, sem que eles percebessem.

Na verdade eu nem peço muito reconhecimento pelos méritos que eu tenha em sala de aula, pois tive ótimos exemplos. Muitos professores de história absolutamente excelentes, que eu não faço ideia de onde estão, mas foram fundamentais para que eu decidisse seguir essa carreira. Um professor de Física pelo qual sentirei gratidão pela eternidade por ter financiado minha ida para a Unicamp, e sem isso provavelmente eu nunca teria feito curso superior. Meus professores da faculdade, principalmente meu orientador, que é meu modelo supremo para absolutamente tudo. Impossível imaginar quem eu seria sem a generosidade dessas pessoas.

Uma das piores coisas do modelo atual de ensino superior no Brasil (criado pelo PSDB e mantido pelo PT) é a total falta de importância atribuída ao ensino. Todas as regras se aplicam apenas à área de pesquisa. Um professor que estupre 200 alunas mas publique em revistas importantes é um Deus. Esse é um dos motivos pelos quais estou deixando a pós graduação. Na minha cabeça inocente seria um lugar onde eu daria aulas e orientaria alunos. Mas para a Capes isso é tipo 0,1% do nosso trabalho. Sò se importam com números. Não quero fazer parte disso.

Pois pra mim a universidade tem de existir em função dos alunos. Sem isso ela não tem sentido. Mas tem quem não goste. Muito professor universitário que pediu para o povo estar na universidade pública agora reclama que "o nível dos alunos baixou". Querem o povo na universidade, mas querem escolher que povo vai estar lá. Viram o povo e não gostaram. Queriam pobre ateu, de esquerda, com alto nível de leitura, e trombaram com evangélicos de famílias conservadoras que nunca tinham lido nada. Por incrível que pareça não sabiam que o povo era assim. Essa gente não gosta de povo. Gosta de uma coisa idealizada que só existe na cabeça deles e odeia o mundo por ser diferente disso.

Enfim, eu amo meus alunos. Eles não são como eu gostaria. Afinal, eles nasceram e foram criados neste mundo, que tampouco é como eu gostaria. Eles lêem muito menos que eu gostaria, eventualmente me tiram do sério com seu comportamento inadequado, mas me fazem sentir vivo. Estou envelhecendo, e lidar com gente nova e cheia de energia e vibração me faz sentir vivo. E quando vejo que eles gostam de ouvir o que tenho a dizer eu acho que a vida faz sentido.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Sou machista, racista e homofóbico. Você também.

Quem me conhece minimamente sabe que o título do post não significa que vem por aí uma cachoeira de mimimi privilegiado tipo "estou sendo transgressor ao combater a tirania politicamente correta". Não é nada disso. È que me senti muito tocado pela entrevista do técnico do Flamengo, Cristóvão Borges, falando sobre o racismo no futebol. E ele não apenas foi corajoso ao tocar em algo que é um pouco tabu: fez isso de forma tão digna, clara, coerente, crítica, sem nenhuma auto vitimização que eu fiquei pensando no assunto.

Dito isso: sou machista, racista e homofóbico. Todo mundo é. Fomos criados em um mundo com esses valores. Por exemplo, para uma pessoa que nasceu em 1972, ver negros na TV sem ser no papel de serviçal foi algo que só aconteceu na vida adulta. Homoessuais na TV? Só como piada, a "bicha louca". Me lembro perfeitamente de ter sido criado em um mundo em que ser filho de mãe separada era uma catástrofe que justificava qualquer desastre na vida da pessoa. E olha, vou mais longe: fiz História na Unicamp na primeira metade dos anos 90, e a realidade que vi lá não era muito diferente.

Não preciso ir mais longe, o leitor já entendeu onde quero chegar. Nasci, cresci e vivo em um mundo machista, racista e homofóbico. Por mais que eu tenha nascido e crescido numa família esquerdista que combate essas coisas, por mais que eu seja um ardoroso apoiador dos que lutam contra isso tudo, não importa. Um ranço sempre vai ficar. Odeio que seja assim, lamento que seja assim, mas é assim. Sei muito bem que se eu estiver andando a noite numa rua escura e tiver um branco numa calçada e um negro na outra, tenderei a escolher a calçada onde está o branco.

Esse fato em si não me faz sentir pior que ninguém. Todos nós somos submetidos aos mesmos estímulos que eu fui. Quantas vezes ouvimos o argumento imbecil de que "o próprio negro é racista. assim que ganha dinheiro quer casar com uma loira". É uma imbecilidade por tantos motivos que fico até com preguiça de listar: a ideia de que negro tem de casar com negro (atribuindo a ele um lugar, bem longe de você), o julgamento do sentimento de alguém que você nem conhece, etc. Mas o que importa no tópico que discuto aqui: CLARO que negros são racistas. Assim como já cansei de ouvir comentários machistas de mulheres e homofóbicos de homossexuais. Mulheres, negros e homossexuais nasceram e cresceram no mesmo mundo que eu e ouviram as mesmas lições que eu.

Mas este post não pretende ser um exercício de auto complacência. Vale lembrar Marx: os homens fazem sua história, em condições que eles não escolheram. É isso. Nenhum de nós escolheu nascer num mundo machista, racista e homofóbico. Mas não problematizar isso, não fazer auto crítica, não tentar ver as coisas pela lente do outro, aí já é questão de escolha. O que existe dentro de nós nesse sentido é um dado. Mas ter orgulho disso ou negar sua existência é decisão individual de cada um.

Posso dizer que nisso a vida foi generosíssima comigo. Me fez nascer numa família de mulheres muito guerreiras. Me fez viver em um ambiente com muitos negros, incluindo um cunhado espetacular, uma sobrinha tão linda que eu tenho medo de matar de tanto morder e uma das melhores amigas que fiz em toda a minha carreira acadêmica (e uma das melhores historiadoras que conheço). Botou um gay dentro da minha casa quando fui estudar fora, muitos outros em todo o tipo de situação e me deu como filha (=pessoa mais perfeita do mundo, evidentemente) uma lésbica. Tive todas as chances de ver as dores, as lutas, as dificuldades, de olhar as coisas pelo ângulo delas.

Sei que não cumpri integralmente a missão de eliminar todos os resquícios do fato de ter nascido e crescido nesse mundo escroto. E tenho consciência que jamais chegarei lá. Nem eu nem ninguém, infelizmente. Odeio profundamente identificar esses resquícios dentro de mim. Quando acontece eu me sinto a pessoa mais horrível e desprezível deste planeta.

Mas não tenho dúvidas que isso é o que posso fazer. Aproveitar a oportunidade que a vida me deu para tentar crescer com a ajuda das pessoas à minha volta. Não tenho dúvidas que isso é muito melhor do que ser um desses filhos da puta que ofendem diariamente essas pessoas se dizendo "transgressoras" ou "politicamente incorretas" e encaram qualquer crítica ao que dizem como "censura à liberdade de expressão". Ou aquelas que simplesmente negam a existência dessas coisas, e ainda tentam fazer parecer que mulheres, negros e homossexuais são "sensíveis demais" quando reclamam. Acho que odeio ainda mais esses do que os primeiros.

Enfim, acho que ter impulsos horrorosos nesse campo que menciono não é algo que deva nos fazer sentir mal. Somos filhos do mundo em que vivemos. Escolher continuar assim, ou até achar isso bonito, aí já é outra história. Não vejo outra saída além de tentarmos a cada a dia lutar contra nós mesmos, contra esses impulsos horríveis que o mundo nos deu. A vitória completa não será alcançada por nós, mas sempre dá para entregar a nossos filhos um mundo melhor que aquele que recebemos.