quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Cotas e Meritocracia

Por esses dias o tema das cotas voltou com tudo para as redes sociais. Por um estopim qualquer que não vem ao caso, explodiu novamente o gigantesco coitadismo dos que sempre são beneficiados mas insistem em ridiculamente assumir o papel de oprimidos. Pra mim isso já está virando caso de divâ, sinceramente, pois não é possível que essas pessoas sejam todas tão umbiguistas a ponto de achar que homens, brancos, heteros, etc. sejam os subalternos dessa história toda. Essa gente precisa de tratamento, não de argumentos. Não é a eles que este post se dirige.

Acho importante lembrar do que estamos falando quando debatemos a questão das cotas. Vejo muita gente favorável apresentando o argumento da reparação histórica, que não me parece ser o melhor caminho. Principalmente se a referência for à escravidão. Pois aí temos um flanco que fica exposto: a participação de negros, africanos e brasileiros, na criação e manutenção da instituição em questão. Que por sinal acabou há 127 anos. Defender as cotas com base em uma reparação pela escravidão é um argumento para o qual não vejo sustentação. A escravidão não foi criada e mantida apenas por brancos, e já acabou há muito tempo. Enormes contingentes de imigrantes chegaram depois disso com uma mão na frente e outra atrás, em condições financeiras semelhantes aos então recém libertos e seus descendentes estão muito bem hoje. Claramente a questão não é essa.

Na verdade a meu ver um bom ponto de partida é o tópico que encerrou o parágrafo anterior. Foi nele que comecei a entender o que era a discriminação racial. Há um quarto de século eu chegava a uma universidade absolutamente top de linha do mundo acadêmico brasileiro, a Unicamp. Já estávamos há mais de um século da Abolição, e na minha turma não havia um único negro. Nem mulato, nada. Todos éramos impecavelmente brancos, em uma cidade com um terço da população negra. Mas não era só isso. Me chamava a atenção a lista de chamada repleta de sobrenomes italianos, alemães, russos, enfim, nomes de família que deixavam claro que todo mundo ali era descendente de pessoas que haviam chegado ao Brasil depois da Abolição em extrema dificuldade financeira. Não tinham, em sua maioria, mais dinheiro ou contatos que aqueles negros que haviam sido libertos. Mas seus bisnetos estavam nas instituições de elite do ensino superior brasileiro, prestes a se tornar membros da elite intelectual do país, enquanto os bisnetos daqueles negros limpavam o chão que pisávamos para sobreviver. Por que?

Em suma, a questão não é a escravidão, mas o que veio após o seu fim. Se o problema fosse a escravidão, viveríamos em um mundo muito diferente. Nos últimos 127 anos progressivamente os negros teriam, uma vez livres do fardo do cativeiro, ascendido socialmente e hoje haveria apenas traços, resquícios daquilo tudo. Mas basta olhar à nossa volta e vemos que não é o caso. Os descendentes daqueles negros e imigrantes que moravam nos mesmos bairros há 100 anos atrás se encontram hoje em lugares muito diferentes. A escravidão não é culpada disso. Aqueles negros e imigrantes europeus eram muito semelhantes em recursos, contatos, habilidades e nível de formação educacional. Os negros possivelmente até tivessem mais armas em função do maior domínio da língua e dos meandros da sociedade, já que estavam aqui há mais tempo. Por que diabos a história posterior dessas famílias diverge tão absurdamente e tão a favor dos imigrantes?

Durante décadas os historiadores produziram material deixando claro que não restava explicação que não reservasse ao racismo um lugar central. E na década passada apareceu a pesquisa que simplesmente liquidou o assunto: o premiadíssimo Jogo da Dissimulação, da minha grande amiga Wlamyra Albuquerque. Ali tudo ficou claro, e hipóteses elaboradas ao longo de décadas foram demonstradas de forma incontestável. Durante séculos a escravidão havia sido o elemento estruturador da desigualdade social: senhores de um lado, escravos do outro. Mais que um mero fato econômico, a Abolição perigava ser uma hecatombe sócio-cultural para os dominantes. Sem o grande elemento diferenciador, como se estruturaria a diferença, a hierarquia? Ou, nas cristalinas palavras de um senhor de engenho baiano citado no livro em questão: "só seremos senhores se houverem escravos".

O racismo apareceu como uma solução mágica que repunha as hierarquizações sem a necessidade do aparato jurídico da escravidão. Brancos dominando negros era o novo pilar da organização social brasileira. Ainda no período de declínio da escravidão surgiram as ideologias pseudocientíficas que justificavam tal ponto de vista (geralmente conhecidas hoje como "racismo científico"), e após 1888 elas se transformaram em visão de mundo oficial da elite branca. Não era mais necessário existirem senhores e escravos. A onda agora era outra: eram necessários os negros para que os brancos fossem dominantes. E sobre essa divisão nosso país se reinventou. A desigualdade social entre brancos e negros teve alguma diminuição na primeira metade do século XX para crescer espetacularmente após 1964, em especial a partir do "milagre econômico" dos anos Médici.

Ou seja, a desigualdade social não veio em processo de redução contínua após 1888, como seria de se esperar caso aceitássemos a tese do "não existe racismo, os negros são pobres por causa da escravidão, mas com o tempo tudo vai se acertar". Essa diferença cresceu e diminuiu em contextos diferentes a partir de decisões políticas. Essa é a fria verdade que aparece nos dados recolhidos há décadas por historiadores, sociólogos, etc. A defesa das cotas é a defesa de uma política que priorize a redução dessas desigualdades. Ela não tem nada de anômala. Aumento e redução da desigualdade sempre foram fruto de decisões políticas. E estamos defendendo uma decisão política, enquanto nossos opositores defendem outra. É o jogo de sempre. Nada de anormal aí.

Encerro com um tópico que infelizmente costuma bagunçar muito esse debate. Nunca é demais lembrar: nada disso é pessoal. Ninguém está te chamando de burro ou incapaz que se deu bem só por ser branco. Ninguém está dizendo que todos os negros são maravilhosos e só não dominam a galáxia por causa do racismo. A luta a favor das cotas apenas parte do reconhecimento de que ser branco é uma vantagem, assim como ser homem, ser hétero, etc. Na luta pelo limitado número de bons postos de trabalho oferecidos pela sociedade capitalista, qualquer uma dessas vantagens pode fazer a diferença entre pessoas de capacidade semelhante. A quantidade de melanina na pele é uma dessas vantagens. E é uma das maiores, por sinal.

Em suma, cotas não tem nada a ver com socialismo, com coitadismo ou coisa do tipo. É apenas reconhecer que a luta por oportunidades não é uma luta entre iguais. Portanto, é uma corrida viciada desde o principio. As cotas no fundo são apenas um passo adiante no aperfeiçoamento do capitalismo, uma luta para que todos possam competir em igualdade de condições. Nada mais que isso.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Quando Neymar nos mostrou que os brancos seguem querendo falar em nome dos negros...

No último fim de semana Neymar foi vítima de mais um episódio de racismo no maravilhoso e organizado futebol da perfeita e irreparável Europa, aquele lugar que nem podemos ter o direito de sonhar copiar, segundo tanta gente por aqui. O genial atacante brasileiro não quis render o assunto e preferiu deixar pra lá. Foi o que bastou para que viesse uma chuva torrencial de críticas por seu imobilismo político.

Estou de férias, e quando é assim meio que me alieno do mundo. A vida já é dura demais, com trabalho demais, pra eu ainda ficar em plenas férias tentando acompanhar tudo o que acontece no mundo. Mas não pude deixar de notar que particularmente entre jornalistas esportivos (mas também no jornalismo geral) essa crítica foi mais forte. A opção de Neymar foi colada impiedosamente à ideia de que jogador de futebol é tudo alienado e Neymar só se preocupa com o instagram e seus cabelos. Daí foi fácil atacar uma frase do jogador como prova definitiva de uma postura alienada e inconsequente.

Desnecessário dizer que esses jornalistas são brancos e nasceram em condições bem mais favoráveis que Neymar. O que para quem tem o olhar minimamente treinado causa arrepios. Para um historiador então chega a dar calafrios. Durante décadas e décadas a história da escravidão brasileira foi contada a partir das fontes deixadas por viajantes europeus e fazendeiros, todos brancos e bem nascidos, como os indignados jornalistas de hoje. Afinal aqueles historiadores, de extração muito parecida com os jornalistas atuais, achavam que os negros não poderiam falar por si próprios. Então meus antepassados de profissão resolviam o problema assumindo uma luta que supostamente as vítimas da escravidão não foram capazes, por falta de consciência política. Assim, cabia a nós falar por eles.

Num episódio recente de racismo me lembro de um jornalista de um importante veículo da imprensa brasileira falando que as pessoas mais preparadas para atacar o racismo no futebol eram os jornalistas esportivos, pois os jogadores negros não tinham consciência política para isso. Comentando o mesmo episódio, um premiadíssimo jornalista esportivo se referiu ao fato de um atleta ter sido chamado de "macaco" como uma "deselegância" do outro atleta. Essas são as pessoas que, supostamente, entendem melhor que os negros o que é a luta anti racista.

Nós historiadores somos treinados para evitar frases como "nada mudou", pois inevitavelmente são viciadas pelo anacronismo. De fato estou fazendo um paralelo mostrando algumas permanências em situações que são completamente diferentes (jogadores muitas vezes milionários não são escravos, só pra começar). Mas é impossível não notar a continuidade da ideia de que os negros não tem condições nem de falar por si próprios nem defender-se do racismo. A ideia da necessidade da tutela branca vai se transformando e sobrevivendo em contextos variados.

Só isso pode explicar o fato de tais "patronos" da causa negra não terem considerado possibilidades óbvias. Por exemplo, quem é negro convive com o racismo a cada dia da sua vida. Qualquer negro tem todo o direito de achar que se for brigar em todos os episódios a vida será cansativa e desgastante em excesso. Assim, pode achar que não vale a pena se envolver em briga em certos tipos de episódio e guardar a energia para outros. Seria uma postura criticável? Não me parece. Talvez eu a adotasse se estivesse nessa situação, não sei. Foi essa a visão que informou a atitude de Neymar? Não sabemos, já que isso não lhe foi perguntado. Mais fácil jogar pedra do conforto do seu lugar de quem já nasceu no lugar privilegiado da história.

Vou repetir aqui o que já disse sobre homossexuais e sobre mulheres: negros sabem pensar, sabem ver que há racismo, sabem se defender, sabem escolher as batalhas a lutar. Não somos nós, brancos, que nunca vamos ter ideia do que é viver diariamente o racismo, que temos de ensinar a essas pessoas essas coisas. Pode ter certeza que elas sabem. E se não souberem, não cabe a nós ensinar. Já são seculos demais em que brancos pensam poder falar em nome dos negros e ensiná-los como pensar. Essa história já deveria ter acabado há muito tempo. Mas segue viva. Em outra roupagem, em outro contexto, mas muito viva em cada post sobre o tema.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A vida resumida em um dia 31 de dezembro


31 de dezembro de 1981 foi um dos dias mais especiais da minha vida. Eu tinha 9 anos e aprendi muita coisa. Foi o dia em que tudo aconteceu de uma vez.

Foi a primeira vez que vi uma pessoa morta. Minha bisavó Dindinha Belinha. Tinha morrido na véspera aos 87 anos. Naqueles tempos era muito velha, mas muito mesmo. Minha mãe e minhas tias até hoje acham absurdo quando ouvem que ela morreu com essa idade. Na cabeça delas era a pessoa mais velha do universo e devia ter mais de 100 anos. Entendo elas. Naquela época morrer com 60 anos tava na faixa, com 70 já era beeeem velho. 87 era muito mesmo.

No último dia de 1981 lá estava eu no bairro do Monte Cristo, em Barra Mansa, vizinha à Volta Redonda, vendo o velório da minha bisavó. Velório em casa, à moda camponesa. E com um lenço roxo tampando o rosto, como mandava o velho costume. Um dos fatos mais comentados do evento era o tamanho dos meus olhos arregalados olhando aquele rosto sem vida quando alguém, sempre no costume camponês, levantava o lenço para ver o rosto dela. Evidentemente era muito justo eu querer ver o rosto da Dindinha Belinha morta. Nem tive tempo de me apegar a ela, mas era a primeira pessoa morta da minha vida, poxa.

A função acabou e os mais animados foram para o enterro, em Pouso Seco, minuscula aldeia rural pertencente ao municipio de Rio Claro (RJ, não confundir com o homônimo paulista), encostado na serra do mar e na divisa do Rio com São Paulo. Minha família veio de lá. Um lugar minúsculo em que parentes se casam entgre si (meus avós eram primos, e as irmãs da minha avó se casaram com os irmãos do meu avô) em que todo mundo se parece. Na última vez em que fui lá, há uns 30 anos, me impressionei porque todo mundo parecia algum tio meu.

Mas eu, minha tia e minha avó abrimos mão desse desfecho. Fomos para a casa da minha tia, na época uma casa enorme (hoje tem um prédio lá) onde a família se reunia. O bairro era a Vila Santa Cecília, destinado aos trabalhadores da CSN. Àquela altura todo mundo da minha família tinha algum vínculo com a indústria que dominava a cidade. Hoje não temos mais, e nem eu nem meus primos nunca tivemos. Efeito da privatização.

Começaram a preparar a festa de reveillon. Os primos logo acharam uma bola de futebol e começaram a brincar no quintal. Não lembro como a coisa começou, mas um tio ou tia se juntou à brincadeira, depois outro, e quando vimos a brincadeira estava correndo solta. Começou a chegar o povo para o ano novo e caiu um dilúvio. A pelada ficou mais animada, com tios, tias e primos se divertindo com a farra. Numa certa altura minha avó largou a máquina de costura e foi nso repreender por fazer tamanha gritaria logo após enterrarmos um parente. Acabou aderindo à pelada. Imagine sua avó correndo atrás de uma bola quando você tinha 9 anos. Pois é.

No fim das contas sequer tenho ideia de como foi aquela festa de ano novo. Só lembro do enterro matutino à moda camponesa e da pelada vespertina em que aquela família operária mandou o mundo pra aquele lugar e se divertiu loucamente. Como nunca, ao menos na minha lembrança. Acho que eles não lembram de nada disso, mas foi exatamente assim. Um dos melhores dias da minha vida. Um insuperável 31 de dezembro.

sábado, 26 de dezembro de 2015

As delicias de ser um direitista sulamericano


Em alguns dias de mandato o novo presidente argentino já mostrou a que veio. O peso sofreu uma desvalorização, subsídios foram cortados, afetando toda a população, principalmente os que mais precisam, produtos de primeira necessidade dobraram de preço e juizes da Suprema Corte foram nomeados por decreto. Eu sei, você sabe, todo mundo sabe, que qualquer uma dessas coisas causaria escândalo continental se ocorressem em governos como Dilma, Cristina Kirchner ou Nicolas Maduro. Mas seu autor é Maurício Macri. Ex-prefeito de Buenos Aires, direitista e amigo dos poderosos e da imprensa local. Assim, tudo isso passa batido ou recebe deliciosos eufemismos ("adequação do câmbio" ao invés de "desvalorização", etc.).

Na verdade nada disso é vagamente surpreendente. É uma história que conhecemos de longa data e que se aprofundou terrivelmente com as seguidas vitórias de candidatos progressistas em nosso continente. Desacostumada a ser oposição, a direita partiu para o ataque, o que seria plenamente democrático, se não envolvesse a repetição infinita de coisas completamente absurdas, como se referir a esses governos como ditaduras comunista. E curiosamente, alguns dos argumentos para provar essa aberração são ações que presidentes de centro ou direita também cometeram, sem gerar nenhuma queixa dessas mesmas pessoas.

Para dar um exemplo absolutamente óbvio. Os dois maiores países sulamericanos tiveram nos anos 90 presidentes de linhagem neoliberal. Ambos modificaram a Constituição de seus países para ter direito a se reeleger. Algo francamente absurdo, já que se mudou a regra com o jogo em andamento: Menem em 1989 e FHC em 1994 foram eleitos para um mandato de quatro anos sem reeleição. Poderia ser inserida a reeleição, desde que só passasse a valer a partir do próximo presidente. Mas não: tais manobras, obviamente casuísticas, foram levadas à frente (no caso brasileiro incluindo uma comprovada compra de votos de deputados que votaram a favor da emenda) sem que ninguém falasse em ditadura ou autoritarismo. Na verdade FHC foi considerado um grande democrata por não ter tentado um terceiro mandato. Pense bem!

Agora tente imaginar o seguinte: Hugo Chávez mudando a Constituição venezuelana para se reeleger. Na verdade ele fez isso. Gritaria geral no continente, com a imprensa vendo aí a prova das intenções autoritárias do chavismo. Aliás você deve lembrar que já em 2010 o PSDB e seus amigos alertaram que uma vitória de Dilma seria perigosa para a democracia, pois levaria a 12 anos de governo de um mesmo partido, sendo que a alternância de poder é essencial para a manutenção das instituições democráticas. Claro que não se importam com o mesmo grupo direitista estar no poder na Colômbia desde sempre. Nem com o próprio PSDB marchar para 24 anos de governo em São Paulo. O problema é a esquerda ganhar. Isso fica patente nas vitórias chavistas na Venezuela, que para essas pessoas provam que as eleições foram fraudadas, mesmo tendo sido avalizadas por todos os observadores internacionais. O problema dessa gente é que a esquerda não pode ganhar eleições. Se ganhar isso prova que não há democracia. Que conceito de democracia, não? Só é democracia se a direita ganhar todas as eleições. Legal.

Outro exemplo interessante são as reações à ex presidente argentina Cristina Kirchner ter sido casada com Nestor Kirchner, presidente anterior. Para toda a imprensa e direita continentais isso é um personalismo inaceitável. Mas ao vermos a lista dos candidatos opositores à reeleição de Cristina em 2011 nos deparamos com um filho de ex presidente (Ricardo Alfonsín) e o irmão de outro ex presidente (Adolfo Rodriguez Sáa). Você viu alguém reclamando? Nem eu. Nas últimas eleições uruguaias a oposição apresentou dois candidatos, ambos filhos de ex presidentes: Pedro Bordaberry e Lacalle Pou. No Brasil os candidatos originais da oposição eram dois netos de políticos importantes, Aécio Neves e Eduardo Campos. Em nenhum desses casos me lembro de ter visto queixas sobre personalismo. No máximo se mencionava pomposamente as "linhagens de políticos" às quais esses candidatos pertenciam.

Note que sequer estou falando da flagrante diferença de critérios de avaliação para esses governos todos (Dilma com desemprego de 9%: catástrofe histórica; FHC com 20% de desemprego: é, a situação mundial está dificil. PT governa com o PMDB: está andando de mãos dadas com corruptos. PSDB governa com o PMDB: governabilidade. Etc. etc.). Nem das mentiras puras e simples que abundam na mídia e no discurso político e chegam ás raias da insanidade nas redes sociais. Estou falando de fatos facilmente verificáveis aos quais não cabe contestação. O fato é: ser da direita sulamericana é um paraíso. Não basta ter muito mais dinheiro, todo o apoio da imprensa e dos poderosos. Ainda por cima pode criticar histericamente a esquerda por coisas exatamente iguais às que eles fazem sem serem desmascarados. Uma beleza.

PS: tendo em vista os absurdos equívocos interpretativos que vi a respeito de comentários políticos meus em tempos de tanta gente tão nervosa e que lê tudo de forma tão apressada, quero ressaltar que:

1) Não estou dizendo que esses governos todos da esquerda são ótimos e muito menos que eles não erram. Mas que o que eles fazem é avaliado por uma régua completamente diferente dos governos de direita. Só isso.

2) Corolário: isso não é "justificar um erro por outro". Primeiro porque o texto não é sobre acertos e erros, mas sobre formas de avaliação de governos. Segundo, porque há coisas que apresentei que na verdade são traços gerais da cultura política latinoamericana, como o personalismo e a dificuldade de renovar quadros, algo que ocorre em todo o espectro político. Não é esse o objetivo do texto.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

"Ideologia de gênero" mostrando como 2015 foi um ano de ouro

Qualquer pessoa que tenha lido Simone de Beauvoir ou saiba o que é gênero sabe que ninguém defende que não existem homens e mulheres, meninos e meninas. Simone disse algo que hoje soa absolutamente trivial. Que eu nasci com meus órgãos sexuais masculinos, mas que foi a sociedade que me ensinou que esses órgãos significavam que eu deveria gostar de futebol e não de bonecas, por exemplo. Qualquer pessoa com QI minimamente defensável consegue entender isso.

Mas muita gente não entendeu. E não apenas retardados mentais: muita gente boa não conseguiu ver essa obviedade. Pra eles o texto de Simone significa que não existem meninos e meninas, homens e mulheres, que há alguma coisa como uma "ideologia de genero" (aahhahahahahahahah) que diz que homens e mulheres são aberrações da natureza. Algo tão flagrantemente imbecil que deve nos levar à reflexão. Por que tanta gente com cérebro se mostra disposta a acreditar em algo tão idiota?

Tem uma certa coisa de achar que o governo petista é comunista e quer acabar com a família brasileira. Isso é imbecil demais e eu tenho preguiça de discutir. Prefiro falar de outra coisa.

O que existe de fato é um sentimento de que coisas que sempre existiram e são "naturais" estão sendo solapadas. Essa parte eu consigo entender. Todo dia na faculdade vejo alunos meus exibindo sua orientação, outros questionando a dominação masculina, ouço discursos contra a visão de mundo branca, contra a hegemonia do eixo Rio-SP e por aí vai. Não é sempre fácil lidar com tudo isso de uma vez só.

Temos duas opções. A primeira é assumirmos que somos privilegiados e tentarmos entender essa molecada e o que eles querem dizer. Não é um caminho fácil. Fomos jovens e sabemos como gente nova pode ser agressiva e impaciente. Mas eles tem algo que nenhum de nós tem: uma genuína vontade de mudar o mundo. Por mais que sejam às vezes inconsequentes e contraditórios, são os jovens que levam o mundo à frente. Não vou negar que há momentos em que minha filha e meus alunos me fazem sentir no meio de uma avalanche. Mas se alguém vai mudar o mundo, é gente como eles.

A outra opção é nos aferrarmos aos nossos privilégios. Nos agarrarmos a quem odeia todas essas demandas. A quem é e sempre foi privilegiado mas agora resolveu bancar a vítima. Homens brancos heteros carnívoros se sentindo sitiados por mulheres, negros, homossexuais, vegetarianos, e considerando que o que há a fazer é ficar por aí dizendo "tadinho de mim" enquanto endossam ideias que só fazem perpetuar desigualdades.

2015 foi um ano chave. Nele muita gente mostrou sua cara. Gente que passou a vida posando de gente boa teve de sair da casca e berrar em alto e bom som que se sentia coitado por ser privilegiado questionado por quem sempre se ferrou. Quem nunca teve voz falou mais que nunca. Quem sempre falou sozinho se sentiu ofendido. Me digam outro ano em que isso aconteceu com tanta intensidade.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Democracia e participação no Brasil

Há tempos queria escrever sobre um tema em que a história pode ajudar a entender o momento que vivemos. Hoje acordei me sentindo mal, passei o dia dormindo e consequentemente estou aqui insone avançando na madrugada. Resolvi aproveitar para tentar fazer algo útil.

Seja qual for sua área de atuação profissional, você já deve ter escutado que a Independência do Brasil foi feita através de um pacto interno da família real portuguesa, que a responsável pela abolição da escravidão foi a Princesa Isabel e que a Proclamação da República foi apenas uma quartelada. Um caso curioso mas não propriamente raro: teses criadas com uma finalidade e seguem vivas mas com outro sentido. Todas essas ideias foram construções da elite do século XIX, que não queria ouvir falar em participação popular. Então era politicamente conveniente contar histórias assim, em que o povo não era protagonista da nossa história.

O tempo passou, e essas explicações continuam a ser oferecidas diaramente aos nossos alunos na escola, e são praticamente consensuais para os que não são profissionais da área. Motivo: algumas décadas atrás essas teses passaram a ser muito convenientes para uma certa história que se pretende crítica. Você deve ter tido professores assim na escola: são aqueles progressistas mas mal informados que fazem toda a história do Brasil parecer um lixo. Esse tipo de profissional acha que desmerecendo a história do Brasil, fazendo-a absolutamente desinteressante perto daquela de outros países, estão denunciando uma elite perversa que nunca permitiu ao povo participar da vida democrática. Não percebem que apenas estão dando uma outra roupagem á velha tese elitista de que "o povo assistiu bestializado" a nossa história acontecer.

Ora, que nossa elite preferia que a população fosse mesmo tão passiva não resta dúvida. E não só a nossa, aliás, todas as demais também gostariam disso. Mas dizer que a população se conformou à inércia é outra coisa muito diferente. Muito sangue correu na Independência, inclusive de negros, pobres e escravos (em especial na Bahia). Como demonstrou fartamente a historiografia brasileira dos últimos 30 anos, os escravos foram absolutos protagonistas na luta pela sua liberdade. Inclusive vale lembrar que o Brasil não era uma monarquia absoluta: a Princesa Isabel apenas sancionou uma lei aprovada no Congresso com apenas 9 votos em contrário (8 deles da província do RJ, onde a escravidão estava muito arraigada).

O caso mais delicado é o da República. Em grande medida pela produção de José Murilo de Carvalho, em especial pelo seu livro Bestializados, um dos mais influentes escritos em nossa área dos últimos 30 anos. Nele, Carvalho contesta a versão republicana que havia dominado os 100 anos anteriores, que via apenas um Império ineficaz caindo por seu próprio arcaísmo para que o Brasil pudesse se modernizar. Até aí tudo bem. O problema foi trocar isso por uma visão irreal de uma família imperial super popular sendo apeada do poder por um golpe militar elitista. E aqui chegamos ao ponto que eu queria discutir: a única maneira de participar de algo é pegando em armas ou ao menos indo às ruas?

No caso citado, por exemplo, é fato que os protagonistas do 15 de novembro foram os militares. O que, convenhamos, é muitíssimo comum em todas as quebras de regime, em especial na América Latina, onde o intervencionismo militar é um dado permanente da história nossa e dos vizinhos. Em toda a história latinoamericana o exército sempre foi um elemento desestabilizador. Sendo assim, não há absolutamente nada de incomum que os militares tenham sido os agentes da queda do Império. E o que esses autores monarquistas convenientemente esquecem, é que o único evento com defensores da restauração monárquica digno de nota também foi protagonizado por militares, a Revolta da Armada. E de resto, vale perguntar porque uma família real tão amada e idolatrada não encontrou ninguém disposto a defendê-la do golpe ou sequer se despedir dela no porto.

Chegamos ao ponto central: não é apenas pegando em armas ou carregando cartazes que se participa de eventos assim. É muito difícil imaginar que alguém vá tentar dar um golpe ou derrubar um regime se não se sentir autorizado por parte significativa da população. A ideia de um regime que se impõe apenas pela força é indefensável no médio prazo. Ninguém aguenta algo assim por muito tempo. Os líderes republicanos previram que a população os autorizava a fazer aquilo. E previram corretamente: não houve um mísero levante não militar contra o novo regime. Sem essa legitimidade a República provavelmente nem teria existido.

O mesmo vale para 1964. Hoje temos acesso a pesquisas do Ibope que mostram que João Goulart tinha taxa de aprovação popular alta e boas chances de se eleger presidente em 1965 caso conseguisse registrar sua candidatura. Mas havia despertado ódio visceral de boa parcela da população, que incluía a imprensa, a Igreja, o empresariado e os EUA (muitos depois recontaram sua história com sucesso, e entraram nela como opositores ao regime). Sem esses apoios é impossível imaginar os militares deixando os quartéis para tomar o poder naquele primeiro de abril. Eles se sentiam legitimados pelo apoio que tinham.

E chegamos ao dia de hoje. Eduardo Cunha é a pessoa perfeita para ser odiada. Corrupto, abjetamente reacionário, usa a religião para fins políticos, enfim, o que há de pior na política brasileira. No entanto é preciso ter calma. Ele não faz nada sozinho. Por mais poder que tenha, ele é um deputado em um grupo de 513. Se ele aprova o que quer é porque tem o voto da maioria dos deputados. E essa maioria se compõe de dois grupos absolutamente representativos da sociedade brasileira.

De um lado o PSDB e seus amigos. Pra eles qualquer coisa que seja contra o governo está bom. Qualquer coisa que for contra o PT serve. Infelizmente temos de aceitar isso. O que um dia foi um partido solidamente liberal e centrista, com certos tons mais progressistas, se transformou em porta voz de pessoas que odeiam o governo com todas as forças, inclusive (muitas vezes principalmente) pelo que ele tem de bom, enquanto vociferam contra uma corrupção da qual também são praticantes. Mas gostemos ou não, o fato é que esse discurso é muito representativo. Todo mundo conhece um monte de gente assim. E essas pessoas se sentem representadas. Topam ver PM sentar porrada em professor e estudante, fechar escola, ficar sem água em casa desde que isso seja feito por alguém que critique o PT.

Outra parte é um "Brasil profundo" que fizemos tudo para ignorar mas que explodiu na nossa cara nas últimas eleições parlamentares. Nessa eleição foram eleitos (vários com votação consagradora) deputados com a simples missão de cumprir uma agenda ultra reacionária. Para eles o mundo é dos homens brancos héteros cristãos e todo o resto não merece direitos. Curiosamente se consideram vitimas se defendendo da hostilidade dos outros grupos. São parlamentares que representam um tipo de gente tão mesquinha e egoísta que sequer é capaz de se colocar por 1 segundo no lugar dos outros. E quer que todo mundo que não é como ele se exploda. Se possível, que a PM extermine a todos. Essa gente infelizmente é muito mais numerosa que imaginávamos. Para eles, oprimir minorias é um ato heróico de coragem.

Eduardo Cunha não é, como muitos parecem crer, uma anomalia política criada em Brasília. É fruto de percepções e da visão de mundo de uma grande parte da população brasileira. Ele e seus aliados não fazem o que fazem manobrando nas sombras. Fazem porque sabem que possuem apoio popular para isso. Inclusive se for feito uma pesquisa, aposto que há uma parcela nada desprezível dos eleitores de Lula e Dilma que concorda com boa parte dessas pautas grotestas que Cunha vinha aprovando até se atolar na própria lama. Essa enorme base de apoio não é uma anomalia. Quem pensa isso está voltando àquela ideia que descrevi no começo, da população brasileira inerte e vítima de uma elite inescrupulosa. É uma história muito conveniente mas falsa. Parte significativa da população elegeu essas pessoas sabendo que elas eram assim e estão muito felizes com isso tudo. Os Cunhas, Bolsonaros e Felicianos agem se sentindo legitimados por seus eleitores. E têm razão. É com enorme dor no coração que digo isso: o pior é que eles têm razão nesse ponto.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

#meuamigosecreto. Ou: artificios para sacanear uma causa

Nos últimos dias nas redes sociais (ao menos no meu caso, principalmente no facebook) muitas mulheres usaram a hastag #meuamigosecreto para iniciar frases em que lembravam histórias, experiências de machismo, misoginia, etc. Ao menos que eu tenha notado, em alguns casos eram experiências específicas, em outros estavam mais para condensados de todo um conjunto de vivências ligadas ao tema.

Gosto muito de iniciativas deste tipo. Elas abrem um espaço extra para que mulheres possam compartilhar essas situações. Suponho que deve existir muita gente que não tinha coragem de se posicionar mas em situações como essa se sentiu mais forte ao perceber que era parte de uma coletividade. Mas também é muito boa para que os homens tenham um entendimento um pouquinho melhor do que é a experiência concreta de ser mulher, algo que jamais teremos, por motivos óbvios. Sentir empatia é necessário, mas não é a mesma coisa que viver na pele, e nunca vai ser.

Mais aí começam os artifícios que de mil formas diferentes tentam corroer a luta. Uma que vi algumas vezes foi a chatura do coitadismo. Vi vários caras numa assim: "#meuamigosecreto é mulher, feminista mas fica generalizando como se todos os homens do mundo fossem misóginos e estupradores". Bem, pra começar o grau de egoísmo de quem faz isso é inacreditável. A pessoa acha que a campanha é para atacar os homens. Caras, acordem: feminismo não é sobre homens. É sobre as mulheres. Não importa o que vocês ouviram da mamãe, vocês não são o centro do universo. Aceitem. Aí o cara vem "ay o feminismo não devia ser desse jeito porque aí eu fico magoado e histérico". Uma campanha para dar voz as mulheres sobre a desigualdade de gênero vira uma campanha mundial para machucar o coração de um pobre coitado.

Claro que choca ler certas postagens falando como se todo homem fosse um estuprador em potencial. Mas meus pobres amiguinhos coitados: aproveitem a campanha e leiam com atenção o que elas estão contando. Só que as histórias que eu li quase sem exceção não são fatos isolados. São coisas que elas vivem diariamente, em todos os lugares, não há pra onde escapar. O que inclui o medo do estupro. Pode ser que a pessoa que postou isso inclusive tenha sofrido algum tipo de abuso, algo mais comum do que se possa imaginar. Quem pode saber o que levou essa pessoa a dizer isso? Que homem sabe que tipo de experiência pode construir uma visão dessas? Mais importante que tudo, o que faz do mundo um lugar melhor: 1) uma mulher berrar para o mundo uma mágoa que tem e tentar lidar melhor com ela enquanto nós nos chocamos num primeiro momento mas sabemos que nunca fizemos nada com ela e não levamos para o lado pessoal; 2) a mulher continuar sofrendo em silêncio para não machucar o coração de quem não consegue se deslocar um centímetro para entender o outro?

Um outro ponto mais sutil mas que vai na mesma direção: homens (real ou supostamente) aliados do feminismo que começam a postar coisas tipo "#meuamigosecreto é um vizinho que paga de moralista mas estuprou as filhas", sei lá, algo assim. Quando vejo isso penso em particular nas minhas amigas historiadoras. Além da experiência concreta de ser mulher num mundo machista, elas ainda tem o adicional de saber perfeitamente bem o quanto homens sempre falaram em nome das mulheres. Aí depois de décadas de luta a coisa melhora (ainda está longe do ideal, mas melhorou), e quando a pessoa abre sua rede social vê um bando de homens pretendendo falar em nome das mulheres em 2015.

CARAS, AS MULHERES SABEM FALAR. Elas não precisam que falemos por elas. Aliás a campanha tem justamente a ver com isso. Com mulheres falando do que vivem. Assumindo o protagonismo. O nosso papel é apoiar, aplaudir e PRINCIPALMENTE ouvir com atenção o que elas têm a dizer para tentar melhorar nosso comportamento. Nossa função aqui não é falarmos como se fossemos uma delas. Isso foi feito por MILÊNIOS e ainda é feito. Parem de tentar roubar a fala delas. Apenas parem.