No último fim de semana Neymar foi vítima de mais um episódio de racismo no maravilhoso e organizado futebol da perfeita e irreparável Europa, aquele lugar que nem podemos ter o direito de sonhar copiar, segundo tanta gente por aqui. O genial atacante brasileiro não quis render o assunto e preferiu deixar pra lá. Foi o que bastou para que viesse uma chuva torrencial de críticas por seu imobilismo político.
Estou de férias, e quando é assim meio que me alieno do mundo. A vida já é dura demais, com trabalho demais, pra eu ainda ficar em plenas férias tentando acompanhar tudo o que acontece no mundo. Mas não pude deixar de notar que particularmente entre jornalistas esportivos (mas também no jornalismo geral) essa crítica foi mais forte. A opção de Neymar foi colada impiedosamente à ideia de que jogador de futebol é tudo alienado e Neymar só se preocupa com o instagram e seus cabelos. Daí foi fácil atacar uma frase do jogador como prova definitiva de uma postura alienada e inconsequente.
Desnecessário dizer que esses jornalistas são brancos e nasceram em condições bem mais favoráveis que Neymar. O que para quem tem o olhar minimamente treinado causa arrepios. Para um historiador então chega a dar calafrios. Durante décadas e décadas a história da escravidão brasileira foi contada a partir das fontes deixadas por viajantes europeus e fazendeiros, todos brancos e bem nascidos, como os indignados jornalistas de hoje. Afinal aqueles historiadores, de extração muito parecida com os jornalistas atuais, achavam que os negros não poderiam falar por si próprios. Então meus antepassados de profissão resolviam o problema assumindo uma luta que supostamente as vítimas da escravidão não foram capazes, por falta de consciência política. Assim, cabia a nós falar por eles.
Num episódio recente de racismo me lembro de um jornalista de um importante veículo da imprensa brasileira falando que as pessoas mais preparadas para atacar o racismo no futebol eram os jornalistas esportivos, pois os jogadores negros não tinham consciência política para isso. Comentando o mesmo episódio, um premiadíssimo jornalista esportivo se referiu ao fato de um atleta ter sido chamado de "macaco" como uma "deselegância" do outro atleta. Essas são as pessoas que, supostamente, entendem melhor que os negros o que é a luta anti racista.
Nós historiadores somos treinados para evitar frases como "nada mudou", pois inevitavelmente são viciadas pelo anacronismo. De fato estou fazendo um paralelo mostrando algumas permanências em situações que são completamente diferentes (jogadores muitas vezes milionários não são escravos, só pra começar). Mas é impossível não notar a continuidade da ideia de que os negros não tem condições nem de falar por si próprios nem defender-se do racismo. A ideia da necessidade da tutela branca vai se transformando e sobrevivendo em contextos variados.
Só isso pode explicar o fato de tais "patronos" da causa negra não terem considerado possibilidades óbvias. Por exemplo, quem é negro convive com o racismo a cada dia da sua vida. Qualquer negro tem todo o direito de achar que se for brigar em todos os episódios a vida será cansativa e desgastante em excesso. Assim, pode achar que não vale a pena se envolver em briga em certos tipos de episódio e guardar a energia para outros. Seria uma postura criticável? Não me parece. Talvez eu a adotasse se estivesse nessa situação, não sei. Foi essa a visão que informou a atitude de Neymar? Não sabemos, já que isso não lhe foi perguntado. Mais fácil jogar pedra do conforto do seu lugar de quem já nasceu no lugar privilegiado da história.
Vou repetir aqui o que já disse sobre homossexuais e sobre mulheres: negros sabem pensar, sabem ver que há racismo, sabem se defender, sabem escolher as batalhas a lutar. Não somos nós, brancos, que nunca vamos ter ideia do que é viver diariamente o racismo, que temos de ensinar a essas pessoas essas coisas. Pode ter certeza que elas sabem. E se não souberem, não cabe a nós ensinar. Já são seculos demais em que brancos pensam poder falar em nome dos negros e ensiná-los como pensar. Essa história já deveria ter acabado há muito tempo. Mas segue viva. Em outra roupagem, em outro contexto, mas muito viva em cada post sobre o tema.
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