quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Cotas e Meritocracia

Por esses dias o tema das cotas voltou com tudo para as redes sociais. Por um estopim qualquer que não vem ao caso, explodiu novamente o gigantesco coitadismo dos que sempre são beneficiados mas insistem em ridiculamente assumir o papel de oprimidos. Pra mim isso já está virando caso de divâ, sinceramente, pois não é possível que essas pessoas sejam todas tão umbiguistas a ponto de achar que homens, brancos, heteros, etc. sejam os subalternos dessa história toda. Essa gente precisa de tratamento, não de argumentos. Não é a eles que este post se dirige.

Acho importante lembrar do que estamos falando quando debatemos a questão das cotas. Vejo muita gente favorável apresentando o argumento da reparação histórica, que não me parece ser o melhor caminho. Principalmente se a referência for à escravidão. Pois aí temos um flanco que fica exposto: a participação de negros, africanos e brasileiros, na criação e manutenção da instituição em questão. Que por sinal acabou há 127 anos. Defender as cotas com base em uma reparação pela escravidão é um argumento para o qual não vejo sustentação. A escravidão não foi criada e mantida apenas por brancos, e já acabou há muito tempo. Enormes contingentes de imigrantes chegaram depois disso com uma mão na frente e outra atrás, em condições financeiras semelhantes aos então recém libertos e seus descendentes estão muito bem hoje. Claramente a questão não é essa.

Na verdade a meu ver um bom ponto de partida é o tópico que encerrou o parágrafo anterior. Foi nele que comecei a entender o que era a discriminação racial. Há um quarto de século eu chegava a uma universidade absolutamente top de linha do mundo acadêmico brasileiro, a Unicamp. Já estávamos há mais de um século da Abolição, e na minha turma não havia um único negro. Nem mulato, nada. Todos éramos impecavelmente brancos, em uma cidade com um terço da população negra. Mas não era só isso. Me chamava a atenção a lista de chamada repleta de sobrenomes italianos, alemães, russos, enfim, nomes de família que deixavam claro que todo mundo ali era descendente de pessoas que haviam chegado ao Brasil depois da Abolição em extrema dificuldade financeira. Não tinham, em sua maioria, mais dinheiro ou contatos que aqueles negros que haviam sido libertos. Mas seus bisnetos estavam nas instituições de elite do ensino superior brasileiro, prestes a se tornar membros da elite intelectual do país, enquanto os bisnetos daqueles negros limpavam o chão que pisávamos para sobreviver. Por que?

Em suma, a questão não é a escravidão, mas o que veio após o seu fim. Se o problema fosse a escravidão, viveríamos em um mundo muito diferente. Nos últimos 127 anos progressivamente os negros teriam, uma vez livres do fardo do cativeiro, ascendido socialmente e hoje haveria apenas traços, resquícios daquilo tudo. Mas basta olhar à nossa volta e vemos que não é o caso. Os descendentes daqueles negros e imigrantes que moravam nos mesmos bairros há 100 anos atrás se encontram hoje em lugares muito diferentes. A escravidão não é culpada disso. Aqueles negros e imigrantes europeus eram muito semelhantes em recursos, contatos, habilidades e nível de formação educacional. Os negros possivelmente até tivessem mais armas em função do maior domínio da língua e dos meandros da sociedade, já que estavam aqui há mais tempo. Por que diabos a história posterior dessas famílias diverge tão absurdamente e tão a favor dos imigrantes?

Durante décadas os historiadores produziram material deixando claro que não restava explicação que não reservasse ao racismo um lugar central. E na década passada apareceu a pesquisa que simplesmente liquidou o assunto: o premiadíssimo Jogo da Dissimulação, da minha grande amiga Wlamyra Albuquerque. Ali tudo ficou claro, e hipóteses elaboradas ao longo de décadas foram demonstradas de forma incontestável. Durante séculos a escravidão havia sido o elemento estruturador da desigualdade social: senhores de um lado, escravos do outro. Mais que um mero fato econômico, a Abolição perigava ser uma hecatombe sócio-cultural para os dominantes. Sem o grande elemento diferenciador, como se estruturaria a diferença, a hierarquia? Ou, nas cristalinas palavras de um senhor de engenho baiano citado no livro em questão: "só seremos senhores se houverem escravos".

O racismo apareceu como uma solução mágica que repunha as hierarquizações sem a necessidade do aparato jurídico da escravidão. Brancos dominando negros era o novo pilar da organização social brasileira. Ainda no período de declínio da escravidão surgiram as ideologias pseudocientíficas que justificavam tal ponto de vista (geralmente conhecidas hoje como "racismo científico"), e após 1888 elas se transformaram em visão de mundo oficial da elite branca. Não era mais necessário existirem senhores e escravos. A onda agora era outra: eram necessários os negros para que os brancos fossem dominantes. E sobre essa divisão nosso país se reinventou. A desigualdade social entre brancos e negros teve alguma diminuição na primeira metade do século XX para crescer espetacularmente após 1964, em especial a partir do "milagre econômico" dos anos Médici.

Ou seja, a desigualdade social não veio em processo de redução contínua após 1888, como seria de se esperar caso aceitássemos a tese do "não existe racismo, os negros são pobres por causa da escravidão, mas com o tempo tudo vai se acertar". Essa diferença cresceu e diminuiu em contextos diferentes a partir de decisões políticas. Essa é a fria verdade que aparece nos dados recolhidos há décadas por historiadores, sociólogos, etc. A defesa das cotas é a defesa de uma política que priorize a redução dessas desigualdades. Ela não tem nada de anômala. Aumento e redução da desigualdade sempre foram fruto de decisões políticas. E estamos defendendo uma decisão política, enquanto nossos opositores defendem outra. É o jogo de sempre. Nada de anormal aí.

Encerro com um tópico que infelizmente costuma bagunçar muito esse debate. Nunca é demais lembrar: nada disso é pessoal. Ninguém está te chamando de burro ou incapaz que se deu bem só por ser branco. Ninguém está dizendo que todos os negros são maravilhosos e só não dominam a galáxia por causa do racismo. A luta a favor das cotas apenas parte do reconhecimento de que ser branco é uma vantagem, assim como ser homem, ser hétero, etc. Na luta pelo limitado número de bons postos de trabalho oferecidos pela sociedade capitalista, qualquer uma dessas vantagens pode fazer a diferença entre pessoas de capacidade semelhante. A quantidade de melanina na pele é uma dessas vantagens. E é uma das maiores, por sinal.

Em suma, cotas não tem nada a ver com socialismo, com coitadismo ou coisa do tipo. É apenas reconhecer que a luta por oportunidades não é uma luta entre iguais. Portanto, é uma corrida viciada desde o principio. As cotas no fundo são apenas um passo adiante no aperfeiçoamento do capitalismo, uma luta para que todos possam competir em igualdade de condições. Nada mais que isso.

Um comentário:

  1. Como sempre mestre Tiago com palavras no lugar de ficar. Quantas saudades de ler seus textos. Como eu gostaria de saber o que pensa desta loucura toda do Brasil e do mundo atual. Enfim, saudades enorme meu caro Doutor Tiago.

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