sábado, 31 de maio de 2014

Sobre o Estelita (ou: porque não se render ao ultrapragmatismo do capital)


(Primeiro um esclarecimento para os leitores que não conhecem Recife. O Cais José Estelita se situa na parte histórica da cidade. Como infelizmente é comum, a área está razoavelmente degradada, ainda que em seus arredores haja uma significativa área comercial frequentada por muita gente. Pois para resolver o problema da degradação da área, a prefeitura conta com a "ajuda" de um "consórcio novo recife", formado pelas maiores construtoras da região. Que quer derrubar os antigos armazens e construir em seu lugar um catatau de torres de luxo, residenciais e comerciais - é o monstrengo da foto acima).

Me surpreendo ao ver tanta gente boa e esclarecida bradando contra o movimento "ocupe estelita", que visa impedir a transformação de uma área histórica da cidade em uma zona particular para o conforto de pessoas com dinheiro. Essas pessoas acham que a solução para o fato de uma região tão importante e bem localizada ter sido deixada abandonada pelo poder público é destruí-la e entregá-la ao capital privado. Simples assim. Dizem "aquilo está horroroso mesmo, melhor deixar as construtoras reformarem, vai ficar lindo e vamos poder andar lá em segurança".

Para essas pessoas, quem é contra o projeto é um bando de românticos desocupados que nunca se preocupou com isso e agora resolveu bancar o ativista. O que é muita desinformação: o movimento existe há anos. Essas pessoas acham que nasceu agora porque elas é que não estavam acompanhando o processo. E a coisa de chamar os militantes de "desocupados que agora querem bancar os ativistas" é um troço tão reaça que eu nem sei como responder.

Na verdade me parece que essas pessoas não estão captando o que há de mais importante. O que está acontecendo é uma tentativa de gentrificar aquela região. Algo que já aconteceu em muitas cidades do mundo. Pega-se uma parte antiga, histórica e abandonada da cidade, se entrega na mão da iniciativa privada, que destrói tudo e constrói lindos prédios. Num primeiro momento a sensação é ótima: prédios novinhos e uma área segura onde todos podem caminhar a vontade. Quem é contra é visto como tolo e romântico. Aí quando você se dá conta, uma área histórica e bem localizada foi privatizada, entregue de graça para desfrute exclusivo dos que tem mais dinheiro. Essa é a cidade que queremos?

Note: ninguém quer que as coisas fiquem como estão. A questão é que essa não é a única alternativa. Ao invés de entregar aquela região para as construtoras, a prefeitura poderia perfeitamente iniciar programas de revitalização da área. O que não é caro, não dispensa a iniciativa privada e nem seria tão difícil, já que é uma parte da cidade com intensa vida comercial durante o dia. Há inúmeras experiências bem sucedidas nesse sentido em todo o planeta. Basta ter vontade de fazer. Mas claro que é mais fácil entregar o problema para as construtoras. Parece um jogo em que todos ganham: o capital engorda, os ricos ganham uma área super bem localizada para viver e trabalhar e os políticos envolvidos ganham doações milionárias para suas campanhas. "Só" quem perde é quem não tem dinheiro para morar lá. Tipo uns 90% da cidade. Para não falar no crime contra o patrimônio histórico, claro.

Logo se vê que não é uma questão do destino dos armazéns. É muito mais que isso. É um momento crucial para decidirmos em que cidade queremos viver. Se a lógica do "está ruim? entrega para os ricos que fica bonito" prevalecer, daqui a pouco arrasaremos toda a parte central da cidade e a transformaremos em parque privado de diversões para a elite. Podemos também aproveitar e aplicar a mesma lógica à educação, saúde, transportes, etc. Pega escolas e hospitais públicos, entrega na mão dos grandes empresários e aposto que vão ficar lindos. Só uma minoria vai poder usar, mas pelo jeito esse pessoal não se preocupa com isso.

Vale ainda uma lembrança. Anos atrás duas torres enormes foram construídas na mesma região, justificada por argumentos razoavelmente semelhantes a esses. A cidade continuou exatamente igual, e nada mudou na vida de ninguém, exceto os moradores do "empreendimento". Para o resto da população a cidade ficou exatamente igual, só que enfeiadíssima por dois monstrengos horrorosos. Não há motivo para achar que agora será diferente. A cidade será a mesma, exceto para os que sempre se dão bem: elite, políticos e capital.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Copa, manifestações, política: está tudo muito confuso

Passei a quarta-feira toda na universidade em que trabalho. Cheguei em casa e me inteirei que as novidades do dia eram as seguintes. Professores universitários historicamente associados à esquerda assinando um manifesto contra "excessos" nas manifestações, pedindo que elas sejam ordeiras. Direitistas delirando porque um indígena atirou uma flecha numa manifestação, tentando pegar carona no episódio e resolvendo subitamente que são defensores desse grupo. Francamente, isso confunde qualquer um. Entendo completamente quem se sente perdido em um contexto assim.

Historicamente, a esquerda nunca teve o poder. Então se acostumou a ver a rua como um palco onde se sentia a vontade. Na rua a esquerda sempre se sentiu em casa, com sua militância empolgada, e a possibilidade de se manifestar à vontade, já que não conseguia controlar o Estado. Hoje é exatamente o oposto. Vemos um governo com muito medo das ruas, e uma agressiva militância que busca desqualificar toda e qualquer manifestação de desagrado como ilegítima. Por vezes apelando para um discurso nacionalista até, do tipo "pessoas assim não gostam do Brasil". Postura e discurso classicamente associados à direita.

Por seu lado, a direita sempre foi poder. Sempre se sentiu confortável nesse papel. Em todos os momentos desconfiou e hostilizou as manifestações de rua. É barbaramente contra as lutas das minorias. Vê indígenas como empecilhos absolutamente desagradáveis ao desenvolvimento e à livre iniciativa. E de repente, os vemos achando o máximo ver pessoas protestando contra o governo na rua. Nas redes sociais conclamam o "povo" (?) a reclamar contra o que está errado no país. E subitamente somos informados que acham indígenas o supra sumo da autenticidade dos protestos.

Para piorar a confusão, temos a oposição à esquerda. Que, não sem motivos, condena o governo por suas alianças espúrias com políticos da pior espécie, a ausência de avanços em campos importantes como aborto, direitos civis dos homossexuais, etc. Mas quando você vai ouvir o que eles dizem sobre essa situação, nota que estão perigosamente perto da oposição à direita. Criticam a corrupção, os gastos com a copa, exaltam os direitos dos indígenas, etc.

Quem, em sã consciência, consegue condenar quem se sinta perdido nessa situação? De fato tudo está muito complicado. Nos parágrafos que se seguem vai a minha leitura da situação.

De um lado temos um governo que eu acho que foi o melhor que tivemos, e que teve realizações que qualquer pessoa sensata tem de agradecer. Mas que é profundamente lamentável em termos político-ideológicos. Vamos combinar: após 12 anos de PT no poder, o Brasil é tão conservador quanto antes. Nossa política é tão viciada como era em 2002. Então o governo Dilma simplesmente não consegue ver outra maneira de lidar com a situação que não seja utilizar a retórica e as práticas consagradas pela direita. Ao invés de botar sua própria militância na rua, o PT prefere desqualificar a militância alheia. Nega toda a sua história. Lamentável.

Por outro lado, temos o oportunismo absurdo e descontrolado da oposição a direita. Que não tem UM MÍSERO PROJETO para o Brasil. Abra seu facebook ou os sites desse pessoal. Só sabem odiar o governo. Não fazem a menor ideia do que querem. Nem estão preocupados com isso. Sua pauta para 2014 é convencer as pessoas de que o Brasil tem como problemas centrais o mensalão e a copa. Não se importam vagamente com as condições de vida da população, não têm nenhuma ideia sobre como fazer a economia melhorar e vão manter os mesmos vícios da política que já conhecemos. São oportunistas que se agarram a qualquer chance de criticar o governo. Teve um indígena dando flechada em manifestação? Viremos todos defensores dos direitos deles, pois é o que dá IBOPE hoje. Nem sabem o vocabulário para fazer isso (vi gente falando "até índio protesta, fora Dilma". Tipo "até índio"? Oi?). O que importa é aproveitar o tema do dia para lucrar.

E no fim temos a oposição à esquerda. Que é absolutamente brilhante, a meu ver, nas críticas que faz ao governo. Eu frequentemente me vejo com as mesmas insatisfações deles. Nada da histeria moralista que vemos na oposição direitista, mas muitas vezes fazem críticas serenas e racionais ao governo que eu compartilho. Mas na hora de dizer o que querem... não conseguem ir além de palavras de ordem genéricas. O que se reflete em seu papel nas manifestações. Criticam o governo com razão muitas vezes, mas... nada além disso.

No fim das contas o que me parece é o seguinte. Não acho errado estar em nenhum dos lados citados. É uma questão de consciência pessoal, ditada pela visão de mundo de qualquer um. Mas me parece otário quem: 1) Compra qualquer uma dessas visões de forma acrítica; 2) Decide seu voto baseado nessa situação. De boa? O buraco é bem mais embaixo.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Comunista pode ter iPhone?. Ou: os malefícios da preguiça mental

Falei algumas vezes nos últimos dias sobre o Fla-Flu ideológico que tomou conta da política brasileira recentemente. Situação e oposição se combatem com uma fúria poucas vezes vista em termos democráticos. Pior que não há como escapar da situação. Ela se expõe com todo o vigor na rua, nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, na blogsfera, e assim por diante. E tanto direita como esquerda tem seus "provedores de argumentos". O que é absolutamente necessário, já que para ver o mundo de forma tão simples (Bem x Mal), não se pode gostar de usar o cérebro. Assim, há inúmeros sites e blogs para abastecer os sabichões de todas as tendências.

Cada tendência política tem sua particularidade nesse contexto. O arco direitista tem dois elementos que me desagradam em particular. O primeiro é sua agenda 100% negativa. Ninguém sabe o que essas pessoas querem, só sabemos que todos os problemas do país são culpa do PT. Só sabem falar disso. Projeto de país NUNCA aparece. Não se tem ideia do que essas pessoas gostariam que fosse feito do país. Mas sabemos muito bem que elas odeiam profundamente o governo. Só isso.

A outra questão me irrita bem mais, já que invade minha seara profissional. Muitos desses "pensadores" estão convencidos de que existe uma ditadura cultural esquerdista no país, e que eles serão nossos salvadores. Por algum motivo, essas pessoas, 99% das quais não tem treinamento ou experiência para isso, querem reescrever a história do universo. Não se importam por chegarem a conclusões que nenhum profissional da área está de acordo. Usam um argumento autovalidatório: quem os critica é por fazer parte da ditadura esquerdista que domina o pensamento brasileiro (argumento nada intelectual, evidentemente).

Como felizmente não parece haver muita gente à venda nas universidades brasileiras, para dar respeitabilidade a seus argumentos (tipo Marco ANtonio Villa ou Demetrio Magnoli), eles próprios colocam a mão na massa. Aí começam os totais absurdos. Tipo o Ali Kamel jogar décadas de pesquisa de alta qualidade no lixo para dizer que não existe preconceito racial no Brasil. Sem dados. Não existe porque ele não quer. Ponto final. E quem discordar é porque é comunista. Ou as tolices do Narloch, que inclusive é acusado de falsificar citações (teria feito isso para associar Allende ao nazismo nos anos 30, mas sinceramente é algo que me falaram, eu não tenho como saber se é isso mesmo ou não).

E aí se chega ao grau máximo de loucura que se pode imaginar, que são as associações entre o PT e o comunismo. Qualquer pessoa minimamente culta (nem precisa ter feito história ou ciências sociais) sabe que o PT nasceu justamente contra o comunismo. Nunca teve nenhum projeto concreto nesse sentido. Todo o discurso do partido é a favor do desenvolvimentismo com redução da desigualdade, algo que não tem nada a ver com comunismo. O Brasil é um país com imprensa livre para criticar o governo e os caras falam que é ditadura. O PT nunca mencionou o fim da propriedade privada dos meios de produção, que é o fundamento básico do socialismo, mas não interessa. Os caras ou são muito ignorantes ou confiam demais na ignorância alheia (o que, vamos combinar, costuma dar certo).

Aí a linha que separa a idiotice do ridículo é ultrapassada com gosto quando se começa com argumentos assim: "meu Deus, olha essa foto dos caras do MST no Mc Donald's? nessa hora eles gostam do capitalismo, né?". Ou "comunista mas tem iphone. poser. hipócrita". E dá-lhe hashtags indignadas #mensaleiros #petralhas #barbosapresidente #vamoraremcuba etc. Não vou me alongar: você sabe do que estou falando. Seu facebook é cheio de gente assim. Como vários são pessoas que você gosta e que postam coisas legais sobre outros assuntos, quando topa com uma dessas engole, finge que não viu e segue em frente.

Pois esse argumento é a coisa mais ridícula que pode existir. Não conheço um único teórico seja do socialismo, seja do capitalismo, que pense que pessoas que vivem num regime que não concordam, não possam desfrutar aquilo que conseguirem. E isso é uma invenção desse novo contexto. Duvido que em 1971 alguém ouvisse "diz que não gosta da ditadura mas compra um fusca se aproveitando do milagre econômico, né, seu hipócrita?". E é fácil imaginar porque nenhum teórico disse algo que dê base a isso: esse raciocínio é uma das coisas mais idiotas que se possa imaginar.

O "pensamento" (vamos chamar assim) que sustenta esse tipo de coisa é algo tipo "iphone foi inventado no capitalismo, então se você é comunista não pode usar". Bem, então essa pessoa só pode comer comida crua, pois o fogo foi inventado pelo homem das cavernas. Tem de defender o fim das armas de fogo, já que a pólvora foi inventada pelos chineses. Bem, isso seria muita idiotice, não? Pois é o argumento desses reaças caga-regra de hoje em dia.

Só que no debate político atual a maioria está tão preocupada em gritar seus argumentos nos ouvidos alheios que sequer pára para pensar se está dizendo algo que ao menos faça sentido (não é privilégio da direita, basta pensar naquele seu amigo que acha que o Zé Dirceu é um mártir ou aquele outro que acha os black-blocks superlegais e prestes a acabar com a tirania humana). Isso já é uma droga. Mas quando começa a esse tipo de coisa virar base para argumentos pretensamente históricos ou sociológicos, aí já dá vontade de estourar os miolos.

Ser depressivo: um depoimento

Começo contando uma lembrança das mais fortes que tenho da minha infância. Ouvi uma pessoa de idade falando de suas saudades de outros tempos. Eu pensei: "engraçado, tenho essa mesma nostalgia, tenho muitas saudades, e isso me deixa triste. Mas como pode ser assim, se sou tão novo?". Hoje me parece claro. Aquela criança definiu de forma genial o que era ser uma pessoa com depressão: carregar dentro de si uma tristeza, uma angústia, um "não sei o que" permanente. Que te corrói por dentro, mesmo que você não tenha a menor compreensão do que se trata.

Meu diagnóstico de depressão veio muito depois. Um dia não consegui levantar da cama. Simplesmente não consegui. Eu era um funcionário exemplar, e meus chefes desconfiaram da minha ausência no trabalho. Foram até minha casa, a TV estava ligada, o ventilador também. Chamaram a polícia, que arrombou a porta. Lá estava eu, vivo, com o organismo funcionando perfeitamente. Mas a mente simplesmente o impedia de se mexer. Não havia motivo para sair do lugar.

Minha melhor amiga me levou ao psiquiatra, que finalmente diagnosticou: eu tinha uma forma crônica de depressão, que num contexto muito ruim tinha se acentuado. Me deu remédios. Não adiantou nada: tomei mais de 80 antidepressivos e ansiolíticos de uma vez pra acabar com tudo. Mas a genética e meu passado de atleta impediram a consumação do meu plano. Horas de soro e eu estava em casa. Até trabalhei nesse dia. Dei aula e ninguém desconfiou. Eu tinha 34 anos.

Escutei muitos "diagnósticos". Difícil dizer qual o mais devastador. Para alguns, era falta do que fazer, como se eu não trabalhasse insanamente. Falavam, com todas as boas intenções, que uma enxada resolveria tudo. Outros vinham com conversa religiosa. O que faltava na minha vida era Deus, como se eu não tivesse minha religião.E como se isso não viesse da minha infância em escola religiosa. Mas tem o pior de todos: "não se deixe levar por isso". Como se algo que nasceu contigo fosse na verdade fruto de uma escolha sua. O que na verdade é culpar você por uma doença. Qualquer depressivo sabe: amigos bem intencionados com conselhos idiotas podem ser seu pior inimigo.

Depressão é uma doença. Como tantas outras. Mas como é uma enfermidade mental, muitos a vêem como frescura. Quase ninguém consegue identificar um. Nos piores momentos acordamos, não conseguimos nos levantar, ficamos lá, mas quando saímos ninguém imagina o gigantesco peso que carregamos nas costas. Em geral, criamos personagens públicos, que a maioria compra, sem desconfiar a dor interna que estamos sentindo. Mas claro, há momentos melhores, em que a vida segue normalmente. Somos sempre azedos, mas soa como estilo ou personalidade. Somos vistos como críticos demais, enjoados ou até arrogantes, e bola pra frente.

Com o tempo você se acostuma com muita coisa. Em algum momento você aceita que vai viver para sempre com um bicho te roendo por dentro. Sabe que nunca vai ser como os outros. Percebe que vai chorar à toa, que vai ter limitações físicas e emocionais. Provavelmente o pior de tudo: descobre da pior maneira possível que muita gente não vai entender isso. Você acaba vendo que no fim vai ter de eliminar da sua vida gente que até é legal, mas que não tem capacidade de entender o que é viver uma vida com tantas limitações.

Não é que sejamos coitadinhos. Não somos. Detesto a auto-vitimização e não a aplicaria nunca a mim. Mas é uma condição que gera sofrimento. Ao qual acabamos tendo que nos acostumar, ou ao menos aprender a lidar. Mas a gente consegue. Estar vivo é uma dádiva para todos nós. Não há dia em que eu não olhe pela janela sem pensar em me jogar. Mas fico aqui. E sobrevivo. Cada dia é uma vitória. E seguimos na luta.

domingo, 25 de maio de 2014

Adianta alguma coisa torcer contra a seleção?

Sou esquerdista, filho de esquerdista, passei a vida cercado por esquerdistas. Ouvi inúmeras histórias da geração mais velha falando sobre o dilema moral que viveram em 1970. O Brasil tinha um time maravilhoso, sensacional, único, mas o país vivia o auge de uma ditadura violenta e que promovia a desigualdade. Queriam torcer contra o time, com medo que sua vitória fortalecesse a ditadura. Mas não conseguiam, já que o time era uma maravilha. E viveram com essa culpa. Ouvi coisas muito parecidas na Argentina em relação à copa de 1978.

Falo disso porque no meio das polêmicas sobre a copa surgiu um novo tipo. Não é que simplesmente a pessoa seja contra a copa, vá a protestos nesse sentido, etc. Há gente dizendo que vai torcer contra a seleção. Acham que uma vitória canarinho turbinará o governo, e que uma vitória, digamos, da Argentina aumentaria as chances de vitória oposicionista em outubro. De fato é uma crença generalizada a de que vitórias esportivas ajudam governos, que as capitalizam. Mas será que é o que a história mostra?

Não. Para ficarmos nos exemplos citados. Em 1970 tivemos eleições para o parlamento. A grande estrela do pleito foi um macaco do zoológico do Rio de Janeiro, que teve dezenas de milhares de votos de pessoas que protestavam contra a situação daquele momento. Em 1978 no fim do ano o governo quase jogou o país numa guerra absurda contra o Chile por causa de um pedacinho de gelo na Terra do Fogo, numa tentativa desesperada de recuperar a popularidade que andava em baixa. Ou seja: esses regimes fizeram de tudo para capitalizar os títulos futebolísticos, mas os resultados foram bem escassos. A figura de Médici era popular por conta do milagre econômico e continuou sendo, independente do show brazuca no México.

Se seguimos os resultados eleitorais do Brasil, vemos também que não há relação nenhuma. Perdemos em 1982 e o governo teve um desempenho mediano nas eleições. Perdemos em 1986 e o governo teve uma vitória devastadora. Fomos péssimos em 1990, e o governo foi bem nas urnas. Ganhamos em 1994 e Itamar Franco fez seu sucessor. Perdemos em 1998 e FHC se reelegeu facilmente. Vencemos muito bem em 2002 e FHC não conseguiu fazer seu sucessor. Fomos mal em 2006 e 2010, e o PT se manteve no poder sem sofrer muito.

Olhando em conjunto, não surge nenhuma relação visível entre resultados futebolísticos e desempenho eleitoral do governo do momento. Nem brasileiros, nem pessoas de outro país, parecem levar em consideração questões esportivas na hora de decidir seu voto (no que, diga-se de passagem, fazem muito bem). Para arrematar falando de algo muito recente: a vitória do Brasil na Copa das Confederações aumentou a popularidade de Dilma? Não.

Claro que se Dilma for reeleita, os oposicionistas que não entenderam bem a democracia vão relacionar isso à copa, caso o Brasil a vença. Mas se ela vencer, será por motivos claríssimos, que qualquer pessoa razoável, independente de ideologia, consegue perceber com clareza: ela é conhecida do eleitorado, e seus opositores não; seu governo é bem avaliado pela população em todas as pesquisas; com reeleição, o presidente que está no poder tende a ser favorito (e isso não só no Brasil).

Cada um escolhe para quem torcer. Eu mesmo, embora brasileiro, torço pela seleção brasileira mas também vibro insanamente pela uruguaia. Escrevo para um site de futebol argentino, com amigos brasileiros que torcem pela Argentina por gostarem do futebol do país, mais que do brasileiro. Nada contra. Mas torcer contra por motivos políticos eu acho tolice. Até por não ser algo que historicamente seja relevante para influir em resultados eleitorais.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

O dia em que o macaco fui eu

Sou homem, branco, heterossexual, de classe média, professor universitário, nascido no Sul e criado no Sudeste do Brasil. Ou seja, não faço parte de nenhuma das categorias que são alvo mais frequente de discriminação em nosso país. Mas sempre simpatizei com esses grupos. Sempre achei odioso o preconceito (aberto ou subliminar) em relação a mulheres, negros, homossexuais, nordestinos ou qualquer outro que você pensar. E do fundo do coração eu tinha certeza que entendia a situação das pessoas que eram alvo de discriminação. Afinal, sentia tamanha empatia e compartilhava de tal maneira a raiva por esses preconceitos que tinha certeza que entendia o que elas sentiam.

Até que aconteceu comigo. Na Itália, ouvi, com toda a clareza possível, um casal de namorados se referindo a mim, a meu lado, como "macaco sul-americano", e rindo. Eles só tinham me visto falando em português e inglês, o que os fez achar que eu não sabia nada de italiano. De fato não falo, mas entendo decentemente. Fiz ver a eles que estava entendendo tudo, eles morreram de vergonha e o clima ficou horrível, como seria de se prever.

Sei muito bem que não existe A experiência de discriminação. Existem experiências variadas, múltiplas, plurais. Os grupos que sofrem mais têm em seu interior pessoas que sofreram formas diferentes. Uma vez participei de uma mesa sobre preconceito racial, na qual um dos componentes foi muito feliz ao comparar a experiência vivida por ele (negro, baiano, participante de religião afro-brasileira), com a dos outros componentes (uma negra e mulher, o outro, negro e africano). Não é a mesma coisa. Não dá pra presumir que a experiência de todos com a discriminação é igual.

Também varia infinitamente a forma que as pessoas lidam com isso. Há os que optam pela negação, os que internalizam o ódio, os que transformam a dor em combustível para lutar, e inclusive os que genuinamente não ligam. Não vejo como reprovar nenhuma dessas posturas, ou valorar uma mais que outra. Não estou no lugar dessas pessoas para saber o que elas devem fazer.

O que sei é que quando aconteceu comigo eu senti coisas conflitantes. Por um lado, eu tenho muito orgulho de ser brasileiro e sul-americano. Nada que nenhum italiano direitista falar vai mudar isso. Por outro, confesso que doeu muito ver que coisas que estão em mim, que eu não posso mudar, que eu não quero mudar, puderam me transformar em alvo de preconceito e troça. Por um lado, eu sei que em hipótese alguma eu deveria ligar para o que diz um jovem casal de direitistas que não sabem nada sobre o Brasil, pessoas que inclusive eu mal conheço. Por outro, vou confessar: doeu. Ponto final.

Se algum negro, mulher, homossexual, nordestino, etc. estiver lendo isso tem todo o direito de pensar "ah, cara, fichinha isso aí, um episódio besta em 41 anos de vida, você não faz ideia do que eu passo". Teria toda a razão. Pois foi exatamente o que eu pensei quando aconteceu. Se um evento me marcou dessa maneira, não faço ideia do que uma vida de discriminação faz a uma pessoa. Principalmente quando se está cercado de gente disposta a dizer "ah, não seja tão sensível, não foi nada, vocês vêem preconceito em todo lugar". Não faço ideia. Só lamento que seja assim.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Comunismo assassino x Capitalismo libertador?

Como argumentei no post anterior, existe no Brasil atual uma série de gurus (?) intelectuais (??) da direita que abastece a militancia oposicionista com argumentos (???) pretensamente sérios. Em alguns casos a coisa é tão caricatural que nem merece discussão, como "Mandela era terrorista" e "Hitler era socialista". Talvez mais perigosos sejam argumentos, nada originais, já que pescados da guerra fria, que visam caracterizar o liberalismo como única plataforma que garante a liberdade humana, tacando a pecha de "comunistas assassinos" em todos os que se opõem a ele.

A coisa já começa muito mal, pois pretende desenhar o governo petista como "comunista", o que (infelizmente pra mim) nem chega vagamente perto de ser verdade. Mas vira uma idiotice total quando vemos o grau de descontextualização histórica presente nele. Afinal, a comparação presume que todos os regimes capitalistas foram lindamente democráticos. Proponho então uma comparação bem simples. O regime dito socialista que mais tempo durou foi o soviético: 74 anos. Onde será que estavam os regimes liberais após esse período?

Se tomarmos os EUA a partir da Declaração de Independência, isso nos levaria a 1850. Quando metade do país aceitava (e defendia ardorosamente) a escravidão. Na verdade o país só se libertou de vez da desigualdade de direitos após 190 anos, com o triunfo do movimento pelos direitos civis. Até ali, queimar e castrar negros era algo que se podia fazer a vontade em parte substantiva do país.

Vamos à Inglaterra. Se tomamos como base 1770, ano que a maioria dos historiadores considera o início da Revolução Industrial, chegamos ao ano de 1844. Nesse ano exato Friedrich Engels publicava seu seminal A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, em que pinta um retrato devastador das condições de vida da classe trabalhadora. Na qual era comum morrer aos 30 anos e ver um filho a cada três chegar à idade adulta. Tá, você não acredita no que diz um comunista. Então vamos a um dado. Em 1832, sob gigantesca pressão da opinião pública, um parlamento muito relutante havia aprovado uma reforma eleitoral. Que "expandiu" o direito de voto a 1 em cada 6 homens adultos. 800 mil pessoas estavam aptas a votar num país de 15 milhões de pessoas.

Atravessemos o canal da mancha e vejamos a situação da França. O país tem o ano de 1789 como marco, o que nos leva a 1863. Naquele tempo o país vivia uma monarquia absoluta e obscurantista comandada por Napoleão III. Na verdade, 74 anos após a Revolução Francesa, o país vivia um regime que, em termos políticos, diferia pouco ou nada em relação àquele derrubado pelos "enfants de la patrie" ainda no século XVIII.

Na verdade, quando pensamos em Inglaterra e França a coisa fica muito pior se pensamos que esses foram os mais importantes países imperialistas. Essas colônias eram território pertencente aos impérios. E se formos aos anos que marcaram o desmoronamento desses impérios chegaremos a 1947, quando a Índia ficou independente, 177 anos após o início da Revolução Industrial, e 1962, quando a Argélia se livrou do domínio francês, 173 anos após a queda da bastilha.

Em suma, a história nos mostra que, mesmo nos países onde foi gerado, o capitalismo só pôde se orgulhar de ostentar uma liberdade juridica 170-190 anos depois de aparecer. Nem falemos de outras grandes bandeiras do liberalismo que sequer chegamos perto de conhecer. Ou você seria capaz de nomear uma única fração do planeta em que exista algo vagamente parecido com a igualdade de oportunidades?

Eu não me identifico minimamente com o que aconteceu nos regimes ditos socialistas. Acho que alguns deles tiveram méritos sim, mas no todo fracassaram de forma evidente. Não defendo, e nem conheço quem defenda, os expurgos de Stalin ou o grande salto para a frente de Mao. Isso não me tira o sono nem por um minuto. Podem falar deles a vontade. Aconteceram, foram lamentáveis e não fazem parte de nada que eu defenda. Aliás, quem quer que tenha lido Marx sabe que o socialismo para ele era a libertação do homem, e não a tirania. Se esses regimes cometeram o que cometeram em seu nome, problema deles, estão completamente errados.

Mas aí vale lembrar duas coisas. Quem lê Marx vê que o socialismo soviético ou chinês é muito diferente do que ele imaginava. Mas quem consegue reconhecer o mundo em que vivemos nos escritos de John Locke ou Adam Smith? O capitalismo e o liberalismo pretenderam desde o começo eliminar os privilégios de nascimento. De forma jurídica conseguiram, felizmente, foi uma grande conquista. Mas na prática eles desapareceram? Há algo minimamente parecido com igualdade de oportunidades no mundo em que vivemos ou quem nasce no andar de cima tem chance enorme de continuar por lá? Pensando assim, parece que as coisas não acontecem como nos conta a lenda dourada do capitalismo, né?

Mais que isso. O capitalismo e o liberalismo espalharam ditaduras pelo mundo afora, e mataram loucamente. Ainda fazem isso. Mas de fato trazem liberdade a uma parte do planeta. Só que isso não aconteceu instantaneamente. Mesmo os países que os geraram levaram quase dois séculos para ao menos juridicamente conseguir a igualdade de direitos. Porque diabos então tirar conclusões tão absolutamente definitivas sobre um projeto a partir de uns poucos países que o experimentaram por pouco tempo e de forma tão afastada da teoria original?

Nada do que falei é uma crítica ao capitalismo. Se o sistema levou quase 200 anos para conquistar (em seus países mais avançados) uma de suas mais básicas propostas, a igualdade jurídica, isso aconteceu por um motivo compreensível. As ideias são postas em práticas em contextos específicos por seres humanos. A prática sempre vai fazer com que as coisas sejam diferentes. O capitalismo lidou com situações muito concretas e não previstas por seus idealizadores. Por isso demorou tanto para consolidar algumas de suas ideias mais básicas e hoje o mundo é tão diferente do que seus teóricos imaginaram. A questão é: por que não permitir ao socialismo viver essa mesma experiência e jogá-lo na lata de lixo da história tendo tido um período tão curto, em países tão pobres, para se afirmar?

Bem, se você ainda vive na guerra fria, certamente sabe a resposta. Para você só existe o bem e o mal, um sistema que liberta e outro que oprime. O mesmo vale se você tem preguiça de pensar e prefere se guiar por gente que só sabe gritar coisas simples sobre temas complexos. Mas se você tem um mínimo de curiosidade intelectual e não quer só se envolver em uma briga histérica, arremessando questões políticas do Brasil de 2014 na cabeça de um passado que nada tem a ver com isso, sabe que o mundo é complicado demais para ser simplificado de forma tão bisonha.

domingo, 18 de maio de 2014

Quando a direita perdeu todos os argumentos

As pessoas que não conhecem história certamente acharão isso surpreendente. Mas houve um tempo, nem tão distante, em que a direita era bem diferente. Tinha pensadores inteligentes, com bons argumentos. Tinha políticos que tentavam conquistar os corações e mentes da classe trabalhadora. Se podia discordar a vontade, como acontece com qualquer pessoa. Mas eles estavam lá, apresentando suas ideias, discutindo, tentando convencer. Enfim, estavam no jogo.

Entre os anos 70 e 80 isso mudou. Por dois motivos. O primeiro foi a ascensão do neoliberalismo. Ainda que isso não fizesse parte do escopo teórico do neoliberalismo, seus políticos acabaram adotando uma postura de antagonizar a classe trabalhadora. Faz parte da visão de mundo dessas pessoas que quem faz o mundo andar são os empresários. Acham que sindicatos não são agrupações a serem conquistadas ou convencidas, mas sim destruídas, pois nada mais são do que empecilhos à livre iniciativa. Assim, atacaram vigorosamente os direitos trabalhistas, e perderam todas as conexões que a direita pudesse ter com a classe trabalhadora.

O segundo é específico da América Latina. Tivemos ditaduras absolutamente anti-intelectuais por aqui. Diferente dos regimes autoritários dos anos 1930, as ditaduras latino-americanas dos 60/70 não queriam saber de gente pensando. Achavam isso perigoso demais. Sonhavam com um mundo em que ninguém pensaria em política, ninguém refletiria sobre nada. Não estimularam uma produção intelectual que construísse uma visão de mundo favorável a esses regimes. Desconfiavam de todo esforço de reflexão.

O resultado foi uma direita que simplesmente não sabe argumentar. Após décadas detestando qualquer pessoa que pensasse, perdeu toda a sua capacidade reflexiva. Basta ver o quanto odeiam a universidade. O quanto difundiram o mito de que na universidade brasileira só existe gente perdendo tempo com pesquisas inúteis, guerras de egos e doutrinação ideológica. E depois de tantos anos desconfiando severamente das pessoas que vivem do trabalho, não sabe mais como estabelecer diálogo com essa gente.

O resultado foi devastador. A direita sofreu uma sequência de derrotas eleitorais sem precedentes. Perdeu quase toda a América Latina. Sofre na Europa. E tenta recuperar o terreno perdido em ambas as frentes. Mas ficou difícil. Passou décadas sem formar quadros intelectuais nem tentando se inserir nos movimentos sociais. O que faz agora?

A questão do diálogo com os movimentos sociais é uma causa perdida a curto prazo. Os políticos da oposição simplesmente não sabem dizer o que podem fazer para que a vida da população possa melhorar. Quem olha o grau de melhoria dos índices sociais sob governos como o nosso, o kirchnerista, o frenteamplista uruguaio, o da concertación chilena, os bolivarianos do norte do continente, vê claramente que não há muito o que argumentar. A vida das pessoas mais pobres é muito melhor hoje do que era há 20 anos. Oferecer melhoras sociais é dizer "nunca fizemos nada por vocês, mas agora vamos". Ninguém vai acreditar.

O que sobra é a gritaria. Você sabe o que estou dizendo. Todo mundo conhece gente que berra MENSALÃO DITADURA COMUNISTA TERRORISTAS com as veias do pescoço sobressaltadas (as caixas de comentários dos sites de notícias então... qualquer notinha sobre vendedores de tapioca gera dezenas de comentários assim, sempre em caixa alta). Essas pessoas genuinamente acreditam que a vida era melhor antes do PT. Têm certeza de que não havia corrupção, o salário mínimo era alto, e todos eram felizes. Infelizmente não têm argumentos que dêem sustentação a isso. Então só resta gritar. Berrar. Vai que falando mais alto a coisa fica mais convincente?

Isso fica evidente quando se lê os "gurus" intelectuais da direita. São ignorantes a ponto de chamar Mandela de terrorista e dizer que Hitler era socialista. O grau de incapacidade argumentativa é inacreditável. Mas não importa. Dão elementos para os "indignados" gritarem. Não interessam os gráficos, os números, os dados. Eles estão aí gritando. Se juntam em confortabilíssimas salas de jantar e compartilham seu ódio. Sem argumentos concretos. Mas pelo jeito isso é irrelevante.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Vai ter copa

Começo este post dizendo o seguinte: fui contra a realização da copa no Brasil desde que a ideia apareceu. Pelos motivos óbvios: me parecia absurdo gastar dinheiro público em estádios de futebol. Um negócio que inclusive lembrava os estádios que a ditadura espalhou pelo país afora. Sem falar que era impossível não achar que isso ia gerar muita corrupção. Quando a coisa se concretizou, pensei que ao menos de repente poderíamos ter um legado de obras nas cidades-sede.

A realidade foi ainda pior que eu imaginava. O lado ruim se confirmou. Estádios que serão elefantes brancos, outros que serão utilizados, mas cobrando preços que a maioria da população não pode pagar, tudo com dinheiro público. A FIFA mandando e desmandando, suspeitas altamente fundamentadas de corrupção. E as obras para melhorar a vida dos habitantes das cidades-sede claramente não vieram, ou, na melhor das hipóteses, foram ultra tímidas (falo das cidades que conheço mais e/ou visitei recentemente: Recife, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre)

E, passando agora para algo mais subjetivo: quem mora em cidade-sede tem todos os motivos para estar de saco cheio. Moro no Recife, numa avenida super importante. Faz uns dois anos que começou uma obra de mobilidade urbana nessa avenida. A obra avança a passos de tartaruga, não vai ficar pronta a tempo, e o trânsito nela está INSUPORTÁVEL. As obras não avançam, os problemas de sempre continuam iguais, mas o maldito estádio no fim do mundo está lá, prontinho, lindo e maravilhoso. Quem pode recriminar o recifense que se enfurece com esse cenário? Ninguém.

Em suma: sempre fui contra a copa no Brasil, e a cada dia tenho mais certeza de que eu tinha razão. Só que eu acho que há algumas ponderações a fazer. Pois há muita gente que, seja por ingenuidade ou má fé, está semeando confusão.

Pra começar, eu vejo que muita gente debita todos esses problemas na conta do governo federal. Que não construiu ou reformou arena nenhuma. Até onde sei, nove estádios foram construídos/reconstruídos pelos governos estaduais, e três são particulares. Mais uma vez, até onde sei (não estou tão bem informado, se alguém tem informação que me contradiga, fique à vontade), a participação do governo federal na construção dessas arenas (bleargh!) foi tão somente na forma de empréstimos, que serão pagos. Ou seja, não há dinheiro federal envolvido nisso (pela terceira vez: até onde sei, ao menos, confesso que posso estar enganado).

Nesse sentido, me parece totalmente equivocado atacar Dilma por isso. Não gostei nem um pouco da postura dos governos Lula e Dilma em relação a copa. Nem um pouco mesmo. Mas os governos estaduais, que foram os que meteram a mão na massa, não foram diferentes, e na verdade sequer conheço gente que tente argumentar nesse sentido. Sejam governos petistas (como o da Bahia), sejam aliados do governo federal (como o do Rio), sejam oposicionistas (como Minas e Pernambuco, tendo à frente os dois candidatos da oposição à presidência), todo mundo seguiu o mesmo roteiro lamentável de gastos de dinheiro público com estádios e subserviência à FIFA. Botar isso na conta da Dilma me parece inaceitável.

Um segundo ponto se refere às críticas a gastos que poderiam ser melhor empregados em áreas prioritárias. Nenhuma pessoa com um mínimo de bom senso pode discordar disso. Voltando à cidade onde moro. A educação pública é um terror, os professores ganham esmolas, a saúde pública é um lixo, a cidade fica debaixo dágua com qualquer chuva mais forte, as ruas são esburacadas e o transporte público é desumano, para ficar apenas no mais básico. Lógico que é obsceno que o governo do estado tenha como prioridade um estádio de futebol num contexto desses.

Mas outra coisa muito, mas muito diferente, é achar que esses problemas seriam melhorados se o dinheiro da Arena Pernambuco tivesse sido investido nisso. Pelo que li, foram gastos algo como 7 bilhões de reais em estádios para a copa, em 12 sedes. O que dá uns 600 milhões por cidade-sede. É pouco? Não. Mas se esse dinheiro fosse empregado em educação, saúde e transporte público isso faria essas cidades estarem numa situação realmente melhor? Não também. Em termos absolutos é muito dinheiro, ainda mais para se gastar em estádio. Mas em termos relativos não é lá essas coisas. Todos os governos (o federal e os estaduais) gastam bem mais que isso em saúde e educação.

Não vou comentar aqui o pessoal que acha, sinceramente, que pode impedir a realização da copa. Nem os que usam argumentos relativos à "imagem do Brasil no exterior", seja para atacar ou defender a copa. Os primeiros vivem em um mundo irreal, fora do universo que pode ser alcançado por argumentos racionais. Os do segundo tipo são ainda piores. Ou sua imagem da África do Sul mudou depois da última copa? E, caso tenha mudado: e daí?

Sigo achando a copa um despropósito. Mas principalmente por motivos simbólicos. Me parece um escárnio que num país com os problemas que temos haja quem considere correto gastar o que gastamos para termos um mundial. Acho inaceitável. Mas concretamente a copa não vai trazer grandes consequencias. O dinheiro gasto em estádios é muito mais do que deveria existir (pra mim, qualquer coisa acima de zero é mais do que deveria), mas francamente, não é por causa da copa que nossos problemas estão no pé que estão. Já estavam mal e estariam assim, com copa ou não.

Criticar a copa sim, é altamente válido. Eu estou nessa também. Mas vamos com calma. Para ser crítico, é necessário ser crítico com todos. Inclusive com os críticos. Critiquemos o governo federal pela sua postura, dividamos a responsabilidade dele com os 12 governos estaduais envolvidos, mas também reconheçamos que não é a copa que fez com que o Brasil tenha os problemas que tem. Achar que a copa é a culpada por tudo é fazer o jogo de alguém, da mesma maneira que ser acrítico com ela é fazer o jogo de outro alguém.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Estamos jogando fora o melhor do liberalismo. E ficando só com a pior parte

Nós da esquerda temos uma visão muito ruim do liberalismo. O que, em linhas gerais, está correto. Especialmente em sua roupagem Reagan-Tatcher o liberalismo vai contra tudo em que acreditamos. Mas acho importante ressaltar que, especialmente em sua versão dos indepedentistas norte-americanos, o liberalismo trouxe contribuições essenciais. Vou citar duas.

1) Os três poderes. Executivo, Legislativo e Judiciário existindo de forma independente. Mecanismo básico e essencial da democracia. Garante que qualquer governante tenha limites ao seu poder, e que as decisões que realmente importam sejam divididas por grupos independentes. Presidente não pode eliminar parlamentar. Deputado ou senador não pode mudar decisão judiciária. Juiz do STF não pode influir no valor do salário mínimo. Poder dividido significando que há limites para a ação de todos, independente do cargo que ocupem.

2) Direitos individuais. A Constituição Norte-Americana e o Bill of Rights garantem que todos são inocentes até prova em contrário. Que só podemos ser condenados dentro de um processo que inclui todas as garantias de que o acusado teve um julgamento justo.

Óbvio: na prática essas coisas não funcionam tão lindamente como na teoria. Mas isso é normal. Na teoria tudo sempre é lindo, e, como dizem os jogadores de futebol, na prática a teoria é outra. Mas convenhamos: ao menos enquanto vivermos no capitalismo, esses fundamentos são o que podemos ter de melhor. Aí vem a pergunta chave: se as coisas não funcionam na prática tão bem como na teoria é melhor jogar a teoria fora ou tentar melhorar a prática?

Ao menos até onde entendo, escolhemos a primeira opção. Culpamos o presidente do Brasil por todos os males que existem ao sul do equador. Parlamentares corruptos, problemas na educação básica, absolvição de assassinos, é tudo culpa do presidente. Não existe legislativo, judiciário, governos estaduais ou municipais. Tudo é culpa do governo federal (hoje é Dilma, ontem era Lula, anteontem FHC, tanto faz quem está lá. a culpa de tudo é da presidência. como se não vivêssemos num sistema federativo que tem três poderes).

Sobre os direitos individuais talvez seja melhor nem falar. Decidimos que isso é "defender direito humano para bandido". Simplesmente decidimos que é melhor sair matando gente na rua. Frequentemente isso significa que criminosos com ficha policial estão justiçando gente inocente. Mas não importa. A sociedade brasileira gosta disso. Se sente vingada por todos os males. Não adianta culpar a retardada do SBT. A culpa não é dela, ainda que suas declarações tenham servido como salvo-conduto. O problema é que a semente que ela soltou caiu em terra muito fértil. Somos um país que acredita na justiça feita pelas próprias mãos. Seja ela justa ou não. A verdade é: não ligamos para uma inocente sendo morta por uma turba sem ter feito nada. Ela é pobre. Não é gente. O que importa é a sensação de segurança que isso nos dá. Estou feliz porque amanhã se um pobre roubar meu cinzeiro será estraçalhado vivo por uma multidão de justiceiros que desfrutarão da doce impunidade.

Escolhemos ser liberais, de um jeito muito particular. Não gostamos de respeitar direitos humanos, não gostamos de justiça feita pela justiça, odiamos os três poderes, o sistema federativo e ansiamos por um presidente super homem que resolva todos os nossos problemas mesmo que atropelando a constituição. Do liberalismo retivemos apenas a naturalização das diferenças sociais e a certeza de que se alguém é pobre é porque fez por onde. Maravilha.