sábado, 31 de maio de 2014

Sobre o Estelita (ou: porque não se render ao ultrapragmatismo do capital)


(Primeiro um esclarecimento para os leitores que não conhecem Recife. O Cais José Estelita se situa na parte histórica da cidade. Como infelizmente é comum, a área está razoavelmente degradada, ainda que em seus arredores haja uma significativa área comercial frequentada por muita gente. Pois para resolver o problema da degradação da área, a prefeitura conta com a "ajuda" de um "consórcio novo recife", formado pelas maiores construtoras da região. Que quer derrubar os antigos armazens e construir em seu lugar um catatau de torres de luxo, residenciais e comerciais - é o monstrengo da foto acima).

Me surpreendo ao ver tanta gente boa e esclarecida bradando contra o movimento "ocupe estelita", que visa impedir a transformação de uma área histórica da cidade em uma zona particular para o conforto de pessoas com dinheiro. Essas pessoas acham que a solução para o fato de uma região tão importante e bem localizada ter sido deixada abandonada pelo poder público é destruí-la e entregá-la ao capital privado. Simples assim. Dizem "aquilo está horroroso mesmo, melhor deixar as construtoras reformarem, vai ficar lindo e vamos poder andar lá em segurança".

Para essas pessoas, quem é contra o projeto é um bando de românticos desocupados que nunca se preocupou com isso e agora resolveu bancar o ativista. O que é muita desinformação: o movimento existe há anos. Essas pessoas acham que nasceu agora porque elas é que não estavam acompanhando o processo. E a coisa de chamar os militantes de "desocupados que agora querem bancar os ativistas" é um troço tão reaça que eu nem sei como responder.

Na verdade me parece que essas pessoas não estão captando o que há de mais importante. O que está acontecendo é uma tentativa de gentrificar aquela região. Algo que já aconteceu em muitas cidades do mundo. Pega-se uma parte antiga, histórica e abandonada da cidade, se entrega na mão da iniciativa privada, que destrói tudo e constrói lindos prédios. Num primeiro momento a sensação é ótima: prédios novinhos e uma área segura onde todos podem caminhar a vontade. Quem é contra é visto como tolo e romântico. Aí quando você se dá conta, uma área histórica e bem localizada foi privatizada, entregue de graça para desfrute exclusivo dos que tem mais dinheiro. Essa é a cidade que queremos?

Note: ninguém quer que as coisas fiquem como estão. A questão é que essa não é a única alternativa. Ao invés de entregar aquela região para as construtoras, a prefeitura poderia perfeitamente iniciar programas de revitalização da área. O que não é caro, não dispensa a iniciativa privada e nem seria tão difícil, já que é uma parte da cidade com intensa vida comercial durante o dia. Há inúmeras experiências bem sucedidas nesse sentido em todo o planeta. Basta ter vontade de fazer. Mas claro que é mais fácil entregar o problema para as construtoras. Parece um jogo em que todos ganham: o capital engorda, os ricos ganham uma área super bem localizada para viver e trabalhar e os políticos envolvidos ganham doações milionárias para suas campanhas. "Só" quem perde é quem não tem dinheiro para morar lá. Tipo uns 90% da cidade. Para não falar no crime contra o patrimônio histórico, claro.

Logo se vê que não é uma questão do destino dos armazéns. É muito mais que isso. É um momento crucial para decidirmos em que cidade queremos viver. Se a lógica do "está ruim? entrega para os ricos que fica bonito" prevalecer, daqui a pouco arrasaremos toda a parte central da cidade e a transformaremos em parque privado de diversões para a elite. Podemos também aproveitar e aplicar a mesma lógica à educação, saúde, transportes, etc. Pega escolas e hospitais públicos, entrega na mão dos grandes empresários e aposto que vão ficar lindos. Só uma minoria vai poder usar, mas pelo jeito esse pessoal não se preocupa com isso.

Vale ainda uma lembrança. Anos atrás duas torres enormes foram construídas na mesma região, justificada por argumentos razoavelmente semelhantes a esses. A cidade continuou exatamente igual, e nada mudou na vida de ninguém, exceto os moradores do "empreendimento". Para o resto da população a cidade ficou exatamente igual, só que enfeiadíssima por dois monstrengos horrorosos. Não há motivo para achar que agora será diferente. A cidade será a mesma, exceto para os que sempre se dão bem: elite, políticos e capital.

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