Há tempos queria escrever sobre um tema em que a história pode ajudar a entender o momento que vivemos. Hoje acordei me sentindo mal, passei o dia dormindo e consequentemente estou aqui insone avançando na madrugada. Resolvi aproveitar para tentar fazer algo útil.
Seja qual for sua área de atuação profissional, você já deve ter escutado que a Independência do Brasil foi feita através de um pacto interno da família real portuguesa, que a responsável pela abolição da escravidão foi a Princesa Isabel e que a Proclamação da República foi apenas uma quartelada. Um caso curioso mas não propriamente raro: teses criadas com uma finalidade e seguem vivas mas com outro sentido. Todas essas ideias foram construções da elite do século XIX, que não queria ouvir falar em participação popular. Então era politicamente conveniente contar histórias assim, em que o povo não era protagonista da nossa história.
O tempo passou, e essas explicações continuam a ser oferecidas diaramente aos nossos alunos na escola, e são praticamente consensuais para os que não são profissionais da área. Motivo: algumas décadas atrás essas teses passaram a ser muito convenientes para uma certa história que se pretende crítica. Você deve ter tido professores assim na escola: são aqueles progressistas mas mal informados que fazem toda a história do Brasil parecer um lixo. Esse tipo de profissional acha que desmerecendo a história do Brasil, fazendo-a absolutamente desinteressante perto daquela de outros países, estão denunciando uma elite perversa que nunca permitiu ao povo participar da vida democrática. Não percebem que apenas estão dando uma outra roupagem á velha tese elitista de que "o povo assistiu bestializado" a nossa história acontecer.
Ora, que nossa elite preferia que a população fosse mesmo tão passiva não resta dúvida. E não só a nossa, aliás, todas as demais também gostariam disso. Mas dizer que a população se conformou à inércia é outra coisa muito diferente. Muito sangue correu na Independência, inclusive de negros, pobres e escravos (em especial na Bahia). Como demonstrou fartamente a historiografia brasileira dos últimos 30 anos, os escravos foram absolutos protagonistas na luta pela sua liberdade. Inclusive vale lembrar que o Brasil não era uma monarquia absoluta: a Princesa Isabel apenas sancionou uma lei aprovada no Congresso com apenas 9 votos em contrário (8 deles da província do RJ, onde a escravidão estava muito arraigada).
O caso mais delicado é o da República. Em grande medida pela produção de José Murilo de Carvalho, em especial pelo seu livro Bestializados, um dos mais influentes escritos em nossa área dos últimos 30 anos. Nele, Carvalho contesta a versão republicana que havia dominado os 100 anos anteriores, que via apenas um Império ineficaz caindo por seu próprio arcaísmo para que o Brasil pudesse se modernizar. Até aí tudo bem. O problema foi trocar isso por uma visão irreal de uma família imperial super popular sendo apeada do poder por um golpe militar elitista. E aqui chegamos ao ponto que eu queria discutir: a única maneira de participar de algo é pegando em armas ou ao menos indo às ruas?
No caso citado, por exemplo, é fato que os protagonistas do 15 de novembro foram os militares. O que, convenhamos, é muitíssimo comum em todas as quebras de regime, em especial na América Latina, onde o intervencionismo militar é um dado permanente da história nossa e dos vizinhos. Em toda a história latinoamericana o exército sempre foi um elemento desestabilizador. Sendo assim, não há absolutamente nada de incomum que os militares tenham sido os agentes da queda do Império. E o que esses autores monarquistas convenientemente esquecem, é que o único evento com defensores da restauração monárquica digno de nota também foi protagonizado por militares, a Revolta da Armada. E de resto, vale perguntar porque uma família real tão amada e idolatrada não encontrou ninguém disposto a defendê-la do golpe ou sequer se despedir dela no porto.
Chegamos ao ponto central: não é apenas pegando em armas ou carregando cartazes que se participa de eventos assim. É muito difícil imaginar que alguém vá tentar dar um golpe ou derrubar um regime se não se sentir autorizado por parte significativa da população. A ideia de um regime que se impõe apenas pela força é indefensável no médio prazo. Ninguém aguenta algo assim por muito tempo. Os líderes republicanos previram que a população os autorizava a fazer aquilo. E previram corretamente: não houve um mísero levante não militar contra o novo regime. Sem essa legitimidade a República provavelmente nem teria existido.
O mesmo vale para 1964. Hoje temos acesso a pesquisas do Ibope que mostram que João Goulart tinha taxa de aprovação popular alta e boas chances de se eleger presidente em 1965 caso conseguisse registrar sua candidatura. Mas havia despertado ódio visceral de boa parcela da população, que incluía a imprensa, a Igreja, o empresariado e os EUA (muitos depois recontaram sua história com sucesso, e entraram nela como opositores ao regime). Sem esses apoios é impossível imaginar os militares deixando os quartéis para tomar o poder naquele primeiro de abril. Eles se sentiam legitimados pelo apoio que tinham.
E chegamos ao dia de hoje. Eduardo Cunha é a pessoa perfeita para ser odiada. Corrupto, abjetamente reacionário, usa a religião para fins políticos, enfim, o que há de pior na política brasileira. No entanto é preciso ter calma. Ele não faz nada sozinho. Por mais poder que tenha, ele é um deputado em um grupo de 513. Se ele aprova o que quer é porque tem o voto da maioria dos deputados. E essa maioria se compõe de dois grupos absolutamente representativos da sociedade brasileira.
De um lado o PSDB e seus amigos. Pra eles qualquer coisa que seja contra o governo está bom. Qualquer coisa que for contra o PT serve. Infelizmente temos de aceitar isso. O que um dia foi um partido solidamente liberal e centrista, com certos tons mais progressistas, se transformou em porta voz de pessoas que odeiam o governo com todas as forças, inclusive (muitas vezes principalmente) pelo que ele tem de bom, enquanto vociferam contra uma corrupção da qual também são praticantes. Mas gostemos ou não, o fato é que esse discurso é muito representativo. Todo mundo conhece um monte de gente assim. E essas pessoas se sentem representadas. Topam ver PM sentar porrada em professor e estudante, fechar escola, ficar sem água em casa desde que isso seja feito por alguém que critique o PT.
Outra parte é um "Brasil profundo" que fizemos tudo para ignorar mas que explodiu na nossa cara nas últimas eleições parlamentares. Nessa eleição foram eleitos (vários com votação consagradora) deputados com a simples missão de cumprir uma agenda ultra reacionária. Para eles o mundo é dos homens brancos héteros cristãos e todo o resto não merece direitos. Curiosamente se consideram vitimas se defendendo da hostilidade dos outros grupos. São parlamentares que representam um tipo de gente tão mesquinha e egoísta que sequer é capaz de se colocar por 1 segundo no lugar dos outros. E quer que todo mundo que não é como ele se exploda. Se possível, que a PM extermine a todos. Essa gente infelizmente é muito mais numerosa que imaginávamos. Para eles, oprimir minorias é um ato heróico de coragem.
Eduardo Cunha não é, como muitos parecem crer, uma anomalia política criada em Brasília. É fruto de percepções e da visão de mundo de uma grande parte da população brasileira. Ele e seus aliados não fazem o que fazem manobrando nas sombras. Fazem porque sabem que possuem apoio popular para isso. Inclusive se for feito uma pesquisa, aposto que há uma parcela nada desprezível dos eleitores de Lula e Dilma que concorda com boa parte dessas pautas grotestas que Cunha vinha aprovando até se atolar na própria lama. Essa enorme base de apoio não é uma anomalia. Quem pensa isso está voltando àquela ideia que descrevi no começo, da população brasileira inerte e vítima de uma elite inescrupulosa. É uma história muito conveniente mas falsa. Parte significativa da população elegeu essas pessoas sabendo que elas eram assim e estão muito felizes com isso tudo. Os Cunhas, Bolsonaros e Felicianos agem se sentindo legitimados por seus eleitores. E têm razão. É com enorme dor no coração que digo isso: o pior é que eles têm razão nesse ponto.
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