sábado, 26 de dezembro de 2015

As delicias de ser um direitista sulamericano


Em alguns dias de mandato o novo presidente argentino já mostrou a que veio. O peso sofreu uma desvalorização, subsídios foram cortados, afetando toda a população, principalmente os que mais precisam, produtos de primeira necessidade dobraram de preço e juizes da Suprema Corte foram nomeados por decreto. Eu sei, você sabe, todo mundo sabe, que qualquer uma dessas coisas causaria escândalo continental se ocorressem em governos como Dilma, Cristina Kirchner ou Nicolas Maduro. Mas seu autor é Maurício Macri. Ex-prefeito de Buenos Aires, direitista e amigo dos poderosos e da imprensa local. Assim, tudo isso passa batido ou recebe deliciosos eufemismos ("adequação do câmbio" ao invés de "desvalorização", etc.).

Na verdade nada disso é vagamente surpreendente. É uma história que conhecemos de longa data e que se aprofundou terrivelmente com as seguidas vitórias de candidatos progressistas em nosso continente. Desacostumada a ser oposição, a direita partiu para o ataque, o que seria plenamente democrático, se não envolvesse a repetição infinita de coisas completamente absurdas, como se referir a esses governos como ditaduras comunista. E curiosamente, alguns dos argumentos para provar essa aberração são ações que presidentes de centro ou direita também cometeram, sem gerar nenhuma queixa dessas mesmas pessoas.

Para dar um exemplo absolutamente óbvio. Os dois maiores países sulamericanos tiveram nos anos 90 presidentes de linhagem neoliberal. Ambos modificaram a Constituição de seus países para ter direito a se reeleger. Algo francamente absurdo, já que se mudou a regra com o jogo em andamento: Menem em 1989 e FHC em 1994 foram eleitos para um mandato de quatro anos sem reeleição. Poderia ser inserida a reeleição, desde que só passasse a valer a partir do próximo presidente. Mas não: tais manobras, obviamente casuísticas, foram levadas à frente (no caso brasileiro incluindo uma comprovada compra de votos de deputados que votaram a favor da emenda) sem que ninguém falasse em ditadura ou autoritarismo. Na verdade FHC foi considerado um grande democrata por não ter tentado um terceiro mandato. Pense bem!

Agora tente imaginar o seguinte: Hugo Chávez mudando a Constituição venezuelana para se reeleger. Na verdade ele fez isso. Gritaria geral no continente, com a imprensa vendo aí a prova das intenções autoritárias do chavismo. Aliás você deve lembrar que já em 2010 o PSDB e seus amigos alertaram que uma vitória de Dilma seria perigosa para a democracia, pois levaria a 12 anos de governo de um mesmo partido, sendo que a alternância de poder é essencial para a manutenção das instituições democráticas. Claro que não se importam com o mesmo grupo direitista estar no poder na Colômbia desde sempre. Nem com o próprio PSDB marchar para 24 anos de governo em São Paulo. O problema é a esquerda ganhar. Isso fica patente nas vitórias chavistas na Venezuela, que para essas pessoas provam que as eleições foram fraudadas, mesmo tendo sido avalizadas por todos os observadores internacionais. O problema dessa gente é que a esquerda não pode ganhar eleições. Se ganhar isso prova que não há democracia. Que conceito de democracia, não? Só é democracia se a direita ganhar todas as eleições. Legal.

Outro exemplo interessante são as reações à ex presidente argentina Cristina Kirchner ter sido casada com Nestor Kirchner, presidente anterior. Para toda a imprensa e direita continentais isso é um personalismo inaceitável. Mas ao vermos a lista dos candidatos opositores à reeleição de Cristina em 2011 nos deparamos com um filho de ex presidente (Ricardo Alfonsín) e o irmão de outro ex presidente (Adolfo Rodriguez Sáa). Você viu alguém reclamando? Nem eu. Nas últimas eleições uruguaias a oposição apresentou dois candidatos, ambos filhos de ex presidentes: Pedro Bordaberry e Lacalle Pou. No Brasil os candidatos originais da oposição eram dois netos de políticos importantes, Aécio Neves e Eduardo Campos. Em nenhum desses casos me lembro de ter visto queixas sobre personalismo. No máximo se mencionava pomposamente as "linhagens de políticos" às quais esses candidatos pertenciam.

Note que sequer estou falando da flagrante diferença de critérios de avaliação para esses governos todos (Dilma com desemprego de 9%: catástrofe histórica; FHC com 20% de desemprego: é, a situação mundial está dificil. PT governa com o PMDB: está andando de mãos dadas com corruptos. PSDB governa com o PMDB: governabilidade. Etc. etc.). Nem das mentiras puras e simples que abundam na mídia e no discurso político e chegam ás raias da insanidade nas redes sociais. Estou falando de fatos facilmente verificáveis aos quais não cabe contestação. O fato é: ser da direita sulamericana é um paraíso. Não basta ter muito mais dinheiro, todo o apoio da imprensa e dos poderosos. Ainda por cima pode criticar histericamente a esquerda por coisas exatamente iguais às que eles fazem sem serem desmascarados. Uma beleza.

PS: tendo em vista os absurdos equívocos interpretativos que vi a respeito de comentários políticos meus em tempos de tanta gente tão nervosa e que lê tudo de forma tão apressada, quero ressaltar que:

1) Não estou dizendo que esses governos todos da esquerda são ótimos e muito menos que eles não erram. Mas que o que eles fazem é avaliado por uma régua completamente diferente dos governos de direita. Só isso.

2) Corolário: isso não é "justificar um erro por outro". Primeiro porque o texto não é sobre acertos e erros, mas sobre formas de avaliação de governos. Segundo, porque há coisas que apresentei que na verdade são traços gerais da cultura política latinoamericana, como o personalismo e a dificuldade de renovar quadros, algo que ocorre em todo o espectro político. Não é esse o objetivo do texto.

Um comentário:

  1. Olá, Tiago
    também sou de esquerda e concordo inteiramente com a tua avaliação a respeito dos "dois pesos duas medidas" aplicado pela mídia e engolidos por grande parte de nossa sociedade.
    Acho o governo petista tenebroso, mas por motivos completamente diversos da horda coxinha (sou de oposição à esquerda!). Por diversos motivos não considero esse governo como efetivamente de esquerda (articulação com o grande capital financeiro e empreiteiras; nenhum projeto de taxação de grandes fortunas ou diminuição no desequilíbrio da tributação; reforma agrária se arrastando; articulações políticas fisiológicas em níveis federal, estadual e municipal com figuras historicamente asquerosas da direita; etc).
    Do ponto de vista teórico e na prática governamental, gostaria de saber de ti se podemos (e de que forma) ainda considerar o PT como um partido de esquerda. Eu o considero um partido de centro (social-democrata como os europeus) com práticas fisiológicas idênticas às da direita do país, e gostaria de saber qual a tua avaliação a respeito disto.

    Abraço,

    Moisés Bonniek

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