segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Sou machista, racista e homofóbico. Você também.

Quem me conhece minimamente sabe que o título do post não significa que vem por aí uma cachoeira de mimimi privilegiado tipo "estou sendo transgressor ao combater a tirania politicamente correta". Não é nada disso. È que me senti muito tocado pela entrevista do técnico do Flamengo, Cristóvão Borges, falando sobre o racismo no futebol. E ele não apenas foi corajoso ao tocar em algo que é um pouco tabu: fez isso de forma tão digna, clara, coerente, crítica, sem nenhuma auto vitimização que eu fiquei pensando no assunto.

Dito isso: sou machista, racista e homofóbico. Todo mundo é. Fomos criados em um mundo com esses valores. Por exemplo, para uma pessoa que nasceu em 1972, ver negros na TV sem ser no papel de serviçal foi algo que só aconteceu na vida adulta. Homoessuais na TV? Só como piada, a "bicha louca". Me lembro perfeitamente de ter sido criado em um mundo em que ser filho de mãe separada era uma catástrofe que justificava qualquer desastre na vida da pessoa. E olha, vou mais longe: fiz História na Unicamp na primeira metade dos anos 90, e a realidade que vi lá não era muito diferente.

Não preciso ir mais longe, o leitor já entendeu onde quero chegar. Nasci, cresci e vivo em um mundo machista, racista e homofóbico. Por mais que eu tenha nascido e crescido numa família esquerdista que combate essas coisas, por mais que eu seja um ardoroso apoiador dos que lutam contra isso tudo, não importa. Um ranço sempre vai ficar. Odeio que seja assim, lamento que seja assim, mas é assim. Sei muito bem que se eu estiver andando a noite numa rua escura e tiver um branco numa calçada e um negro na outra, tenderei a escolher a calçada onde está o branco.

Esse fato em si não me faz sentir pior que ninguém. Todos nós somos submetidos aos mesmos estímulos que eu fui. Quantas vezes ouvimos o argumento imbecil de que "o próprio negro é racista. assim que ganha dinheiro quer casar com uma loira". É uma imbecilidade por tantos motivos que fico até com preguiça de listar: a ideia de que negro tem de casar com negro (atribuindo a ele um lugar, bem longe de você), o julgamento do sentimento de alguém que você nem conhece, etc. Mas o que importa no tópico que discuto aqui: CLARO que negros são racistas. Assim como já cansei de ouvir comentários machistas de mulheres e homofóbicos de homossexuais. Mulheres, negros e homossexuais nasceram e cresceram no mesmo mundo que eu e ouviram as mesmas lições que eu.

Mas este post não pretende ser um exercício de auto complacência. Vale lembrar Marx: os homens fazem sua história, em condições que eles não escolheram. É isso. Nenhum de nós escolheu nascer num mundo machista, racista e homofóbico. Mas não problematizar isso, não fazer auto crítica, não tentar ver as coisas pela lente do outro, aí já é questão de escolha. O que existe dentro de nós nesse sentido é um dado. Mas ter orgulho disso ou negar sua existência é decisão individual de cada um.

Posso dizer que nisso a vida foi generosíssima comigo. Me fez nascer numa família de mulheres muito guerreiras. Me fez viver em um ambiente com muitos negros, incluindo um cunhado espetacular, uma sobrinha tão linda que eu tenho medo de matar de tanto morder e uma das melhores amigas que fiz em toda a minha carreira acadêmica (e uma das melhores historiadoras que conheço). Botou um gay dentro da minha casa quando fui estudar fora, muitos outros em todo o tipo de situação e me deu como filha (=pessoa mais perfeita do mundo, evidentemente) uma lésbica. Tive todas as chances de ver as dores, as lutas, as dificuldades, de olhar as coisas pelo ângulo delas.

Sei que não cumpri integralmente a missão de eliminar todos os resquícios do fato de ter nascido e crescido nesse mundo escroto. E tenho consciência que jamais chegarei lá. Nem eu nem ninguém, infelizmente. Odeio profundamente identificar esses resquícios dentro de mim. Quando acontece eu me sinto a pessoa mais horrível e desprezível deste planeta.

Mas não tenho dúvidas que isso é o que posso fazer. Aproveitar a oportunidade que a vida me deu para tentar crescer com a ajuda das pessoas à minha volta. Não tenho dúvidas que isso é muito melhor do que ser um desses filhos da puta que ofendem diariamente essas pessoas se dizendo "transgressoras" ou "politicamente incorretas" e encaram qualquer crítica ao que dizem como "censura à liberdade de expressão". Ou aquelas que simplesmente negam a existência dessas coisas, e ainda tentam fazer parecer que mulheres, negros e homossexuais são "sensíveis demais" quando reclamam. Acho que odeio ainda mais esses do que os primeiros.

Enfim, acho que ter impulsos horrorosos nesse campo que menciono não é algo que deva nos fazer sentir mal. Somos filhos do mundo em que vivemos. Escolher continuar assim, ou até achar isso bonito, aí já é outra história. Não vejo outra saída além de tentarmos a cada a dia lutar contra nós mesmos, contra esses impulsos horríveis que o mundo nos deu. A vitória completa não será alcançada por nós, mas sempre dá para entregar a nossos filhos um mundo melhor que aquele que recebemos.

Um comentário:

  1. Sempre leio teus textos na certeza que vem coisa boa. Até hoje, tenho acertado na expectativa. Muito bom!

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