quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Por uma lei de meios


Imagine se o Estado não pudesse dar nenhum palpite sobre o que se ensina nas salas de aula. Tampouco alunos, pais de alunos, sociedade civil, políticos ou mesmo professores. Imagine se alguém defendesse que toda a regulamentação do ensino brasileiro fosse definida por donos de escolas particulares e os diretores dessas escolas. Você conhece alguém no mundo que acharia que essa é a melhor saída para a educação brasileira?

Pois bem, é exatamente o que as empresas de comunicação defendem para o seu setor. Elas defendem que qualquer coisa diferente da autoregulação (leia-se: o que pensam seus donos e membros dos postos mais altos) é "censura" e "atentado à liberdade de expressão". Qualquer ideia que vá além disso é taxada de ditatorial. Alegam que o cidadão já influi o suficiente, uma vez que tem o direito de escolher o que quer consumir. Tipo: posso ensinar a meus alunos que Barack Obama é um samurai japonês da Idade Média. Não gostou? Tire seu filho da escola.

Ainda nesta semana escrevi um post mostrando a escandalosa discrepância entre o que ocorreu nas eleições argentinas e a história contada por nossa imprensa a respeito. Não sou fã de teorias da conspiração, mas nesse caso é evidente que há uma orquestração sistemática para denegrir o governo argentino por parte da imprensa (e não é uma ilação: já ouvi de mais de um jornalista que bater no kirchnerismo é a "linha editorial da empresa"). O motivo é evidente: a Ley de Medios.

A Ley de Medios, tida por inúmeros especialistas como avançadíssima, busca desconcentrar o fechado mercado de mídia argentino, em grande parte nas mãos de poucas empresas. A maior delas, o grupo Clarín, tomou a lei como algo contra ela, e ataca o governo de forma absolutamente furiosa, não importa quantas mentiras tenha de contar a respeito. Pinta a presidente como uma ditadora demagoga com evidentes sinais de retardo mental que por pura implicância inventou uma lei para punir o grupo por seu discurso "independente", num evidente ataque à democracia.

A imprensa brasileira aderiu de forma praticamente unânime a essa ideia, incluindo aí muita gente progressista. Vêem em uma lei que visa mudar as estruturas do universo da comunicação do país e democratizar o acesso à propriedade dos meios de comunicação uma mera vendetta contra a imprensa independente. Repito: muita gente boa está caindo nessa.

A lei não é ditatorial. Foi proposta pelo executivo, aprovada pelo legislativo e referendada pela Suprema Corte. Passou pelos três poderes que são o pilar de qualquer democracia. Quem não aceitou as regras do jogo democrático foi o grupo Clarín, que simplesmente se negou a cumprir a lei, recorrendo à Suprema Corte. Ontem finalmente foi derrotado. Não cabe mais recurso. Terá de se adequar. Não poderá mais controlar todos os ramos da imprensa argentina. Haverá mais pluralidade na informação.

Mas por que a imprensa brasileira se preocupa tanto com isso? Um pouco por sua postura historicamente alérgica à esquerda. Há um piloto automático que faz com que muitos brasileiros, inclusive os de esquerda, vejam nos políticos latino-americanos que não seguem a cartilha liberal como nada mais do que demagogos semi-ditadores. Por exemplo: há pessoas formadas em história que ensinam que Perón foi ditador, algo que nem chega vagamente próximo da verdade (foi eleito 3 vezes presidente, e um total de quatro golpes de Estado foram perpetrados entre 1955 e 1976, em todos os casos o peronismo estava do lado derrotado).

Mas no caso da imprensa há a vontade de mostrar os dentes. É uma tática pedagógica. O que importa é mostrar o que os barões da mídia fariam caso alguma lei do tipo fosse proposta por aqui. Se conseguiram assassinar a honra de um governante estrangeiro por conta da ley de medios, imagine o que fariam com alguém que tentasse fazer algo semelhante por aqui! Sempre evitando desagradar quem quer que seja, o governo brasileiro parece nem pensar no assunto.

Só que esse cenário já deu. Vários países do mundo já aprovaram um conselho regulador de mídia, incluindo a Inglaterra (que reconheceu o total fracasso da autoregulação defendida até a morte pelos barões da mídia de lá, veja aqui:http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Inglaterra-aprova-novo-sistema-regulador-da-imprensa/12/29399). Ninguém vai dizer que o país é uma ditadura comandada por um louco demagogo, então isso nem foi noticiado aqui. Melhor usar toda a munição contra o governo argentino. Mas é uma necessidade urgente. O formato, o alcance, tudo pode e deve ser discutido e negociado. O que não dá é uma sociedade inteira ficar a mercê do monopólio da informação por parte de um punhado de empresários. Se alguém acha que democracia é isso, então isso é baseado em um conceito de democracia que eu simplesmente desconheço.

PS: No Brasil a imprensa esportiva, inclusive a mais independente, critica seguidamente o fato de o governo argentino ter comprado os direitos das transmissões de futebol no país. Insistem que é demagogia ou populismo. Para quem quer saber mais sobre o assunto, de forma mais contextualizada, segue um link a respeito (em espanhol), que mostra que as coisas são muito mais complexas do que isso: http://www.sergiol-nimasnimenos.blogspot.com.ar/2013/10/el-futbol-en-la-ley-de-medios.html

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