sábado, 12 de outubro de 2013
Nós e nossos ídolos
Cheguei de volta ao Brasil, e ao tentar me inteirar do que se passou na minha ausência, fiquei perplexo ao ser informado da existência do tal Procure Saber. O grupo, que tem Caetano Veloso, Chico Buarque, Roberto Carlos e Gilberto Gil entre seus membros quer simplesmente que uma biografia só possa ser publicada com a anuência do biografado ou de sua família.
O absurdo da proposição salta aos olhos, tanto mais quando vemos os pífios argumentos que lhe dão base. Para começar, reclamam que os biógrafos ganham fortunas à custa dos biografados. O que, para começar, é mentira na maioria absoluta dos casos. Mas mesmo que ganhassem: não é justo que sejam bem pagos ao produzir um sucesso de vendas? Ou os membros do grupo não ganham dinheiro com sua produção musical?
Outro argumento é que os biografados podem ser injustamente detratados numa biografia. Ora, mas em que isso difere de qualquer outra produção intelectual? Qualquer cidadão tem o direito de ir à justiça se isso acontecer num livro, disco, site, jornal, revista, etc. Pode ser lento o processo, mas infelizmente só há uma alternativa a isso: a censura, que é exatamente o que propõe o grupo.
Pelo que notei, a postura dos músicos tem sido muito atacada. Vejo que há muita decepção com artistas que foram censurados pela ditadura, e hoje propõem a mesma censura em relação a biografias. Concordo, é isso mesmo. Mas acho que falta notar algo aí. Isso tudo (inclusive o que eu mesmo argumentei) faria sentido se pensarmos nesses artistas como pessoas comuns que vivem da música. Mas eles não se vêem assim. Se vêem como instituições.
Na verdade o tal grupo é apenas o ponto de chegada de um longo processo que fez dessa brilhante geração de músicos algo verdadeiramente inquestionável. Você simplesmente não fala mal desses artistas. Dizer que um disco deles é ruim é tão inconcebível que isso sequer passa pela nossa cabeça. Até os fatos mais óbvios nessa direção passam batido. Por exemplo: faça uma lista das 20 melhores músicas desses artistas. Quantas delas foram escritas nos últimos 25 anos? Nenhuma? Uma? Talvez duas? Pois é, há um quarto de século eles estão produzindo discos que não deixarão nenhuma marca na história da música brasileira. Todos sabemos disso. Mas não podemos nem pensar nisso. É um verdadeiro pecado.
Em boa medida isso não tem a ver com os artistas em si. Eles fizeram parte dessa mitificação, mas não tanto quanto críticos, jornalistas, intelectuais, consumidores, etc. Digamos a verdade: nós transformamos esses caras em instituições inatacáveis. E eles acreditaram. Será que são tão culpados assim por isso?
A grande verdade é que somos todos culpados em mais de um sentido. Não é segredo que Chico Buarque é um cachaceiro mulherengo muito parecido com milhões de outros que qualquer mulher odeia. Mas é preciso manter o mito. As mesmas mulheres que odeiam caras como ele querem manter a imagem do cara sensível, bonito e que “entende o que a gente pensa”. Todos os outros membros do grupo tem esqueletos do tipo no armário, todos bem guardados com a nossa conivência. O mito tinha de ser preservado a todo custo, em um empreendimento coletivo.
A gigantesca arrogância que os artistas demonstram agora não saiu da cabeça deles. Foi criada por toda uma sociedade. Agora não adianta ficar com raiva por eles terem assumido o papel que oferecemos a eles. Dissemos a eles por quase 50 anos que eles eram mitos inatacáveis perfeitos, verdadeiras instituições, muito mais que pessoas, salvaguardas da música brasileira. Então não vale achar que a culpa desse monstrengo que eles querem nos empurrar é só deles.
O mais triste, no fundo, é o que isso tudo mostra sobre nós. Pensamos que somos pessoas progressistas, intelectualizadas, de mente aberta, mas não podemos aceitar que um músico que amamos tenha uma vida pessoal que nos desagrade, ou até uma perna mecânica. Isso sim é que é triste. Eles não querem que essas coisas sejam reveladas porque nós mesmos mandamos todos os sinais de que preferíamos não ter de lidar com elas. No fim, somos bem piores do que pensamos.
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