quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
A vida resumida em um dia 31 de dezembro
31 de dezembro de 1981 foi um dos dias mais especiais da minha vida. Eu tinha 9 anos e aprendi muita coisa. Foi o dia em que tudo aconteceu de uma vez.
Foi a primeira vez que vi uma pessoa morta. Minha bisavó Dindinha Belinha. Tinha morrido na véspera aos 87 anos. Naqueles tempos era muito velha, mas muito mesmo. Minha mãe e minhas tias até hoje acham absurdo quando ouvem que ela morreu com essa idade. Na cabeça delas era a pessoa mais velha do universo e devia ter mais de 100 anos. Entendo elas. Naquela época morrer com 60 anos tava na faixa, com 70 já era beeeem velho. 87 era muito mesmo.
No último dia de 1981 lá estava eu no bairro do Monte Cristo, em Barra Mansa, vizinha à Volta Redonda, vendo o velório da minha bisavó. Velório em casa, à moda camponesa. E com um lenço roxo tampando o rosto, como mandava o velho costume. Um dos fatos mais comentados do evento era o tamanho dos meus olhos arregalados olhando aquele rosto sem vida quando alguém, sempre no costume camponês, levantava o lenço para ver o rosto dela. Evidentemente era muito justo eu querer ver o rosto da Dindinha Belinha morta. Nem tive tempo de me apegar a ela, mas era a primeira pessoa morta da minha vida, poxa.
A função acabou e os mais animados foram para o enterro, em Pouso Seco, minuscula aldeia rural pertencente ao municipio de Rio Claro (RJ, não confundir com o homônimo paulista), encostado na serra do mar e na divisa do Rio com São Paulo. Minha família veio de lá. Um lugar minúsculo em que parentes se casam entgre si (meus avós eram primos, e as irmãs da minha avó se casaram com os irmãos do meu avô) em que todo mundo se parece. Na última vez em que fui lá, há uns 30 anos, me impressionei porque todo mundo parecia algum tio meu.
Mas eu, minha tia e minha avó abrimos mão desse desfecho. Fomos para a casa da minha tia, na época uma casa enorme (hoje tem um prédio lá) onde a família se reunia. O bairro era a Vila Santa Cecília, destinado aos trabalhadores da CSN. Àquela altura todo mundo da minha família tinha algum vínculo com a indústria que dominava a cidade. Hoje não temos mais, e nem eu nem meus primos nunca tivemos. Efeito da privatização.
Começaram a preparar a festa de reveillon. Os primos logo acharam uma bola de futebol e começaram a brincar no quintal. Não lembro como a coisa começou, mas um tio ou tia se juntou à brincadeira, depois outro, e quando vimos a brincadeira estava correndo solta. Começou a chegar o povo para o ano novo e caiu um dilúvio. A pelada ficou mais animada, com tios, tias e primos se divertindo com a farra. Numa certa altura minha avó largou a máquina de costura e foi nso repreender por fazer tamanha gritaria logo após enterrarmos um parente. Acabou aderindo à pelada. Imagine sua avó correndo atrás de uma bola quando você tinha 9 anos. Pois é.
No fim das contas sequer tenho ideia de como foi aquela festa de ano novo. Só lembro do enterro matutino à moda camponesa e da pelada vespertina em que aquela família operária mandou o mundo pra aquele lugar e se divertiu loucamente. Como nunca, ao menos na minha lembrança. Acho que eles não lembram de nada disso, mas foi exatamente assim. Um dos melhores dias da minha vida. Um insuperável 31 de dezembro.
sábado, 26 de dezembro de 2015
As delicias de ser um direitista sulamericano
Em alguns dias de mandato o novo presidente argentino já mostrou a que veio. O peso sofreu uma desvalorização, subsídios foram cortados, afetando toda a população, principalmente os que mais precisam, produtos de primeira necessidade dobraram de preço e juizes da Suprema Corte foram nomeados por decreto. Eu sei, você sabe, todo mundo sabe, que qualquer uma dessas coisas causaria escândalo continental se ocorressem em governos como Dilma, Cristina Kirchner ou Nicolas Maduro. Mas seu autor é Maurício Macri. Ex-prefeito de Buenos Aires, direitista e amigo dos poderosos e da imprensa local. Assim, tudo isso passa batido ou recebe deliciosos eufemismos ("adequação do câmbio" ao invés de "desvalorização", etc.).
Na verdade nada disso é vagamente surpreendente. É uma história que conhecemos de longa data e que se aprofundou terrivelmente com as seguidas vitórias de candidatos progressistas em nosso continente. Desacostumada a ser oposição, a direita partiu para o ataque, o que seria plenamente democrático, se não envolvesse a repetição infinita de coisas completamente absurdas, como se referir a esses governos como ditaduras comunista. E curiosamente, alguns dos argumentos para provar essa aberração são ações que presidentes de centro ou direita também cometeram, sem gerar nenhuma queixa dessas mesmas pessoas.
Para dar um exemplo absolutamente óbvio. Os dois maiores países sulamericanos tiveram nos anos 90 presidentes de linhagem neoliberal. Ambos modificaram a Constituição de seus países para ter direito a se reeleger. Algo francamente absurdo, já que se mudou a regra com o jogo em andamento: Menem em 1989 e FHC em 1994 foram eleitos para um mandato de quatro anos sem reeleição. Poderia ser inserida a reeleição, desde que só passasse a valer a partir do próximo presidente. Mas não: tais manobras, obviamente casuísticas, foram levadas à frente (no caso brasileiro incluindo uma comprovada compra de votos de deputados que votaram a favor da emenda) sem que ninguém falasse em ditadura ou autoritarismo. Na verdade FHC foi considerado um grande democrata por não ter tentado um terceiro mandato. Pense bem!
Agora tente imaginar o seguinte: Hugo Chávez mudando a Constituição venezuelana para se reeleger. Na verdade ele fez isso. Gritaria geral no continente, com a imprensa vendo aí a prova das intenções autoritárias do chavismo. Aliás você deve lembrar que já em 2010 o PSDB e seus amigos alertaram que uma vitória de Dilma seria perigosa para a democracia, pois levaria a 12 anos de governo de um mesmo partido, sendo que a alternância de poder é essencial para a manutenção das instituições democráticas. Claro que não se importam com o mesmo grupo direitista estar no poder na Colômbia desde sempre. Nem com o próprio PSDB marchar para 24 anos de governo em São Paulo. O problema é a esquerda ganhar. Isso fica patente nas vitórias chavistas na Venezuela, que para essas pessoas provam que as eleições foram fraudadas, mesmo tendo sido avalizadas por todos os observadores internacionais. O problema dessa gente é que a esquerda não pode ganhar eleições. Se ganhar isso prova que não há democracia. Que conceito de democracia, não? Só é democracia se a direita ganhar todas as eleições. Legal.
Outro exemplo interessante são as reações à ex presidente argentina Cristina Kirchner ter sido casada com Nestor Kirchner, presidente anterior. Para toda a imprensa e direita continentais isso é um personalismo inaceitável. Mas ao vermos a lista dos candidatos opositores à reeleição de Cristina em 2011 nos deparamos com um filho de ex presidente (Ricardo Alfonsín) e o irmão de outro ex presidente (Adolfo Rodriguez Sáa). Você viu alguém reclamando? Nem eu. Nas últimas eleições uruguaias a oposição apresentou dois candidatos, ambos filhos de ex presidentes: Pedro Bordaberry e Lacalle Pou. No Brasil os candidatos originais da oposição eram dois netos de políticos importantes, Aécio Neves e Eduardo Campos. Em nenhum desses casos me lembro de ter visto queixas sobre personalismo. No máximo se mencionava pomposamente as "linhagens de políticos" às quais esses candidatos pertenciam.
Note que sequer estou falando da flagrante diferença de critérios de avaliação para esses governos todos (Dilma com desemprego de 9%: catástrofe histórica; FHC com 20% de desemprego: é, a situação mundial está dificil. PT governa com o PMDB: está andando de mãos dadas com corruptos. PSDB governa com o PMDB: governabilidade. Etc. etc.). Nem das mentiras puras e simples que abundam na mídia e no discurso político e chegam ás raias da insanidade nas redes sociais. Estou falando de fatos facilmente verificáveis aos quais não cabe contestação. O fato é: ser da direita sulamericana é um paraíso. Não basta ter muito mais dinheiro, todo o apoio da imprensa e dos poderosos. Ainda por cima pode criticar histericamente a esquerda por coisas exatamente iguais às que eles fazem sem serem desmascarados. Uma beleza.
PS: tendo em vista os absurdos equívocos interpretativos que vi a respeito de comentários políticos meus em tempos de tanta gente tão nervosa e que lê tudo de forma tão apressada, quero ressaltar que:
1) Não estou dizendo que esses governos todos da esquerda são ótimos e muito menos que eles não erram. Mas que o que eles fazem é avaliado por uma régua completamente diferente dos governos de direita. Só isso.
2) Corolário: isso não é "justificar um erro por outro". Primeiro porque o texto não é sobre acertos e erros, mas sobre formas de avaliação de governos. Segundo, porque há coisas que apresentei que na verdade são traços gerais da cultura política latinoamericana, como o personalismo e a dificuldade de renovar quadros, algo que ocorre em todo o espectro político. Não é esse o objetivo do texto.
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
"Ideologia de gênero" mostrando como 2015 foi um ano de ouro
Qualquer pessoa que tenha lido Simone de Beauvoir ou saiba o que é gênero sabe que ninguém defende que não existem homens e mulheres, meninos e meninas. Simone disse algo que hoje soa absolutamente trivial. Que eu nasci com meus órgãos sexuais masculinos, mas que foi a sociedade que me ensinou que esses órgãos significavam que eu deveria gostar de futebol e não de bonecas, por exemplo. Qualquer pessoa com QI minimamente defensável consegue entender isso.
Mas muita gente não entendeu. E não apenas retardados mentais: muita gente boa não conseguiu ver essa obviedade. Pra eles o texto de Simone significa que não existem meninos e meninas, homens e mulheres, que há alguma coisa como uma "ideologia de genero" (aahhahahahahahahah) que diz que homens e mulheres são aberrações da natureza. Algo tão flagrantemente imbecil que deve nos levar à reflexão. Por que tanta gente com cérebro se mostra disposta a acreditar em algo tão idiota?
Tem uma certa coisa de achar que o governo petista é comunista e quer acabar com a família brasileira. Isso é imbecil demais e eu tenho preguiça de discutir. Prefiro falar de outra coisa.
O que existe de fato é um sentimento de que coisas que sempre existiram e são "naturais" estão sendo solapadas. Essa parte eu consigo entender. Todo dia na faculdade vejo alunos meus exibindo sua orientação, outros questionando a dominação masculina, ouço discursos contra a visão de mundo branca, contra a hegemonia do eixo Rio-SP e por aí vai. Não é sempre fácil lidar com tudo isso de uma vez só.
Temos duas opções. A primeira é assumirmos que somos privilegiados e tentarmos entender essa molecada e o que eles querem dizer. Não é um caminho fácil. Fomos jovens e sabemos como gente nova pode ser agressiva e impaciente. Mas eles tem algo que nenhum de nós tem: uma genuína vontade de mudar o mundo. Por mais que sejam às vezes inconsequentes e contraditórios, são os jovens que levam o mundo à frente. Não vou negar que há momentos em que minha filha e meus alunos me fazem sentir no meio de uma avalanche. Mas se alguém vai mudar o mundo, é gente como eles.
A outra opção é nos aferrarmos aos nossos privilégios. Nos agarrarmos a quem odeia todas essas demandas. A quem é e sempre foi privilegiado mas agora resolveu bancar a vítima. Homens brancos heteros carnívoros se sentindo sitiados por mulheres, negros, homossexuais, vegetarianos, e considerando que o que há a fazer é ficar por aí dizendo "tadinho de mim" enquanto endossam ideias que só fazem perpetuar desigualdades.
2015 foi um ano chave. Nele muita gente mostrou sua cara. Gente que passou a vida posando de gente boa teve de sair da casca e berrar em alto e bom som que se sentia coitado por ser privilegiado questionado por quem sempre se ferrou. Quem nunca teve voz falou mais que nunca. Quem sempre falou sozinho se sentiu ofendido. Me digam outro ano em que isso aconteceu com tanta intensidade.
Mas muita gente não entendeu. E não apenas retardados mentais: muita gente boa não conseguiu ver essa obviedade. Pra eles o texto de Simone significa que não existem meninos e meninas, homens e mulheres, que há alguma coisa como uma "ideologia de genero" (aahhahahahahahahah) que diz que homens e mulheres são aberrações da natureza. Algo tão flagrantemente imbecil que deve nos levar à reflexão. Por que tanta gente com cérebro se mostra disposta a acreditar em algo tão idiota?
Tem uma certa coisa de achar que o governo petista é comunista e quer acabar com a família brasileira. Isso é imbecil demais e eu tenho preguiça de discutir. Prefiro falar de outra coisa.
O que existe de fato é um sentimento de que coisas que sempre existiram e são "naturais" estão sendo solapadas. Essa parte eu consigo entender. Todo dia na faculdade vejo alunos meus exibindo sua orientação, outros questionando a dominação masculina, ouço discursos contra a visão de mundo branca, contra a hegemonia do eixo Rio-SP e por aí vai. Não é sempre fácil lidar com tudo isso de uma vez só.
Temos duas opções. A primeira é assumirmos que somos privilegiados e tentarmos entender essa molecada e o que eles querem dizer. Não é um caminho fácil. Fomos jovens e sabemos como gente nova pode ser agressiva e impaciente. Mas eles tem algo que nenhum de nós tem: uma genuína vontade de mudar o mundo. Por mais que sejam às vezes inconsequentes e contraditórios, são os jovens que levam o mundo à frente. Não vou negar que há momentos em que minha filha e meus alunos me fazem sentir no meio de uma avalanche. Mas se alguém vai mudar o mundo, é gente como eles.
A outra opção é nos aferrarmos aos nossos privilégios. Nos agarrarmos a quem odeia todas essas demandas. A quem é e sempre foi privilegiado mas agora resolveu bancar a vítima. Homens brancos heteros carnívoros se sentindo sitiados por mulheres, negros, homossexuais, vegetarianos, e considerando que o que há a fazer é ficar por aí dizendo "tadinho de mim" enquanto endossam ideias que só fazem perpetuar desigualdades.
2015 foi um ano chave. Nele muita gente mostrou sua cara. Gente que passou a vida posando de gente boa teve de sair da casca e berrar em alto e bom som que se sentia coitado por ser privilegiado questionado por quem sempre se ferrou. Quem nunca teve voz falou mais que nunca. Quem sempre falou sozinho se sentiu ofendido. Me digam outro ano em que isso aconteceu com tanta intensidade.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
Democracia e participação no Brasil
Há tempos queria escrever sobre um tema em que a história pode ajudar a entender o momento que vivemos. Hoje acordei me sentindo mal, passei o dia dormindo e consequentemente estou aqui insone avançando na madrugada. Resolvi aproveitar para tentar fazer algo útil.
Seja qual for sua área de atuação profissional, você já deve ter escutado que a Independência do Brasil foi feita através de um pacto interno da família real portuguesa, que a responsável pela abolição da escravidão foi a Princesa Isabel e que a Proclamação da República foi apenas uma quartelada. Um caso curioso mas não propriamente raro: teses criadas com uma finalidade e seguem vivas mas com outro sentido. Todas essas ideias foram construções da elite do século XIX, que não queria ouvir falar em participação popular. Então era politicamente conveniente contar histórias assim, em que o povo não era protagonista da nossa história.
O tempo passou, e essas explicações continuam a ser oferecidas diaramente aos nossos alunos na escola, e são praticamente consensuais para os que não são profissionais da área. Motivo: algumas décadas atrás essas teses passaram a ser muito convenientes para uma certa história que se pretende crítica. Você deve ter tido professores assim na escola: são aqueles progressistas mas mal informados que fazem toda a história do Brasil parecer um lixo. Esse tipo de profissional acha que desmerecendo a história do Brasil, fazendo-a absolutamente desinteressante perto daquela de outros países, estão denunciando uma elite perversa que nunca permitiu ao povo participar da vida democrática. Não percebem que apenas estão dando uma outra roupagem á velha tese elitista de que "o povo assistiu bestializado" a nossa história acontecer.
Ora, que nossa elite preferia que a população fosse mesmo tão passiva não resta dúvida. E não só a nossa, aliás, todas as demais também gostariam disso. Mas dizer que a população se conformou à inércia é outra coisa muito diferente. Muito sangue correu na Independência, inclusive de negros, pobres e escravos (em especial na Bahia). Como demonstrou fartamente a historiografia brasileira dos últimos 30 anos, os escravos foram absolutos protagonistas na luta pela sua liberdade. Inclusive vale lembrar que o Brasil não era uma monarquia absoluta: a Princesa Isabel apenas sancionou uma lei aprovada no Congresso com apenas 9 votos em contrário (8 deles da província do RJ, onde a escravidão estava muito arraigada).
O caso mais delicado é o da República. Em grande medida pela produção de José Murilo de Carvalho, em especial pelo seu livro Bestializados, um dos mais influentes escritos em nossa área dos últimos 30 anos. Nele, Carvalho contesta a versão republicana que havia dominado os 100 anos anteriores, que via apenas um Império ineficaz caindo por seu próprio arcaísmo para que o Brasil pudesse se modernizar. Até aí tudo bem. O problema foi trocar isso por uma visão irreal de uma família imperial super popular sendo apeada do poder por um golpe militar elitista. E aqui chegamos ao ponto que eu queria discutir: a única maneira de participar de algo é pegando em armas ou ao menos indo às ruas?
No caso citado, por exemplo, é fato que os protagonistas do 15 de novembro foram os militares. O que, convenhamos, é muitíssimo comum em todas as quebras de regime, em especial na América Latina, onde o intervencionismo militar é um dado permanente da história nossa e dos vizinhos. Em toda a história latinoamericana o exército sempre foi um elemento desestabilizador. Sendo assim, não há absolutamente nada de incomum que os militares tenham sido os agentes da queda do Império. E o que esses autores monarquistas convenientemente esquecem, é que o único evento com defensores da restauração monárquica digno de nota também foi protagonizado por militares, a Revolta da Armada. E de resto, vale perguntar porque uma família real tão amada e idolatrada não encontrou ninguém disposto a defendê-la do golpe ou sequer se despedir dela no porto.
Chegamos ao ponto central: não é apenas pegando em armas ou carregando cartazes que se participa de eventos assim. É muito difícil imaginar que alguém vá tentar dar um golpe ou derrubar um regime se não se sentir autorizado por parte significativa da população. A ideia de um regime que se impõe apenas pela força é indefensável no médio prazo. Ninguém aguenta algo assim por muito tempo. Os líderes republicanos previram que a população os autorizava a fazer aquilo. E previram corretamente: não houve um mísero levante não militar contra o novo regime. Sem essa legitimidade a República provavelmente nem teria existido.
O mesmo vale para 1964. Hoje temos acesso a pesquisas do Ibope que mostram que João Goulart tinha taxa de aprovação popular alta e boas chances de se eleger presidente em 1965 caso conseguisse registrar sua candidatura. Mas havia despertado ódio visceral de boa parcela da população, que incluía a imprensa, a Igreja, o empresariado e os EUA (muitos depois recontaram sua história com sucesso, e entraram nela como opositores ao regime). Sem esses apoios é impossível imaginar os militares deixando os quartéis para tomar o poder naquele primeiro de abril. Eles se sentiam legitimados pelo apoio que tinham.
E chegamos ao dia de hoje. Eduardo Cunha é a pessoa perfeita para ser odiada. Corrupto, abjetamente reacionário, usa a religião para fins políticos, enfim, o que há de pior na política brasileira. No entanto é preciso ter calma. Ele não faz nada sozinho. Por mais poder que tenha, ele é um deputado em um grupo de 513. Se ele aprova o que quer é porque tem o voto da maioria dos deputados. E essa maioria se compõe de dois grupos absolutamente representativos da sociedade brasileira.
De um lado o PSDB e seus amigos. Pra eles qualquer coisa que seja contra o governo está bom. Qualquer coisa que for contra o PT serve. Infelizmente temos de aceitar isso. O que um dia foi um partido solidamente liberal e centrista, com certos tons mais progressistas, se transformou em porta voz de pessoas que odeiam o governo com todas as forças, inclusive (muitas vezes principalmente) pelo que ele tem de bom, enquanto vociferam contra uma corrupção da qual também são praticantes. Mas gostemos ou não, o fato é que esse discurso é muito representativo. Todo mundo conhece um monte de gente assim. E essas pessoas se sentem representadas. Topam ver PM sentar porrada em professor e estudante, fechar escola, ficar sem água em casa desde que isso seja feito por alguém que critique o PT.
Outra parte é um "Brasil profundo" que fizemos tudo para ignorar mas que explodiu na nossa cara nas últimas eleições parlamentares. Nessa eleição foram eleitos (vários com votação consagradora) deputados com a simples missão de cumprir uma agenda ultra reacionária. Para eles o mundo é dos homens brancos héteros cristãos e todo o resto não merece direitos. Curiosamente se consideram vitimas se defendendo da hostilidade dos outros grupos. São parlamentares que representam um tipo de gente tão mesquinha e egoísta que sequer é capaz de se colocar por 1 segundo no lugar dos outros. E quer que todo mundo que não é como ele se exploda. Se possível, que a PM extermine a todos. Essa gente infelizmente é muito mais numerosa que imaginávamos. Para eles, oprimir minorias é um ato heróico de coragem.
Eduardo Cunha não é, como muitos parecem crer, uma anomalia política criada em Brasília. É fruto de percepções e da visão de mundo de uma grande parte da população brasileira. Ele e seus aliados não fazem o que fazem manobrando nas sombras. Fazem porque sabem que possuem apoio popular para isso. Inclusive se for feito uma pesquisa, aposto que há uma parcela nada desprezível dos eleitores de Lula e Dilma que concorda com boa parte dessas pautas grotestas que Cunha vinha aprovando até se atolar na própria lama. Essa enorme base de apoio não é uma anomalia. Quem pensa isso está voltando àquela ideia que descrevi no começo, da população brasileira inerte e vítima de uma elite inescrupulosa. É uma história muito conveniente mas falsa. Parte significativa da população elegeu essas pessoas sabendo que elas eram assim e estão muito felizes com isso tudo. Os Cunhas, Bolsonaros e Felicianos agem se sentindo legitimados por seus eleitores. E têm razão. É com enorme dor no coração que digo isso: o pior é que eles têm razão nesse ponto.
Seja qual for sua área de atuação profissional, você já deve ter escutado que a Independência do Brasil foi feita através de um pacto interno da família real portuguesa, que a responsável pela abolição da escravidão foi a Princesa Isabel e que a Proclamação da República foi apenas uma quartelada. Um caso curioso mas não propriamente raro: teses criadas com uma finalidade e seguem vivas mas com outro sentido. Todas essas ideias foram construções da elite do século XIX, que não queria ouvir falar em participação popular. Então era politicamente conveniente contar histórias assim, em que o povo não era protagonista da nossa história.
O tempo passou, e essas explicações continuam a ser oferecidas diaramente aos nossos alunos na escola, e são praticamente consensuais para os que não são profissionais da área. Motivo: algumas décadas atrás essas teses passaram a ser muito convenientes para uma certa história que se pretende crítica. Você deve ter tido professores assim na escola: são aqueles progressistas mas mal informados que fazem toda a história do Brasil parecer um lixo. Esse tipo de profissional acha que desmerecendo a história do Brasil, fazendo-a absolutamente desinteressante perto daquela de outros países, estão denunciando uma elite perversa que nunca permitiu ao povo participar da vida democrática. Não percebem que apenas estão dando uma outra roupagem á velha tese elitista de que "o povo assistiu bestializado" a nossa história acontecer.
Ora, que nossa elite preferia que a população fosse mesmo tão passiva não resta dúvida. E não só a nossa, aliás, todas as demais também gostariam disso. Mas dizer que a população se conformou à inércia é outra coisa muito diferente. Muito sangue correu na Independência, inclusive de negros, pobres e escravos (em especial na Bahia). Como demonstrou fartamente a historiografia brasileira dos últimos 30 anos, os escravos foram absolutos protagonistas na luta pela sua liberdade. Inclusive vale lembrar que o Brasil não era uma monarquia absoluta: a Princesa Isabel apenas sancionou uma lei aprovada no Congresso com apenas 9 votos em contrário (8 deles da província do RJ, onde a escravidão estava muito arraigada).
O caso mais delicado é o da República. Em grande medida pela produção de José Murilo de Carvalho, em especial pelo seu livro Bestializados, um dos mais influentes escritos em nossa área dos últimos 30 anos. Nele, Carvalho contesta a versão republicana que havia dominado os 100 anos anteriores, que via apenas um Império ineficaz caindo por seu próprio arcaísmo para que o Brasil pudesse se modernizar. Até aí tudo bem. O problema foi trocar isso por uma visão irreal de uma família imperial super popular sendo apeada do poder por um golpe militar elitista. E aqui chegamos ao ponto que eu queria discutir: a única maneira de participar de algo é pegando em armas ou ao menos indo às ruas?
No caso citado, por exemplo, é fato que os protagonistas do 15 de novembro foram os militares. O que, convenhamos, é muitíssimo comum em todas as quebras de regime, em especial na América Latina, onde o intervencionismo militar é um dado permanente da história nossa e dos vizinhos. Em toda a história latinoamericana o exército sempre foi um elemento desestabilizador. Sendo assim, não há absolutamente nada de incomum que os militares tenham sido os agentes da queda do Império. E o que esses autores monarquistas convenientemente esquecem, é que o único evento com defensores da restauração monárquica digno de nota também foi protagonizado por militares, a Revolta da Armada. E de resto, vale perguntar porque uma família real tão amada e idolatrada não encontrou ninguém disposto a defendê-la do golpe ou sequer se despedir dela no porto.
Chegamos ao ponto central: não é apenas pegando em armas ou carregando cartazes que se participa de eventos assim. É muito difícil imaginar que alguém vá tentar dar um golpe ou derrubar um regime se não se sentir autorizado por parte significativa da população. A ideia de um regime que se impõe apenas pela força é indefensável no médio prazo. Ninguém aguenta algo assim por muito tempo. Os líderes republicanos previram que a população os autorizava a fazer aquilo. E previram corretamente: não houve um mísero levante não militar contra o novo regime. Sem essa legitimidade a República provavelmente nem teria existido.
O mesmo vale para 1964. Hoje temos acesso a pesquisas do Ibope que mostram que João Goulart tinha taxa de aprovação popular alta e boas chances de se eleger presidente em 1965 caso conseguisse registrar sua candidatura. Mas havia despertado ódio visceral de boa parcela da população, que incluía a imprensa, a Igreja, o empresariado e os EUA (muitos depois recontaram sua história com sucesso, e entraram nela como opositores ao regime). Sem esses apoios é impossível imaginar os militares deixando os quartéis para tomar o poder naquele primeiro de abril. Eles se sentiam legitimados pelo apoio que tinham.
E chegamos ao dia de hoje. Eduardo Cunha é a pessoa perfeita para ser odiada. Corrupto, abjetamente reacionário, usa a religião para fins políticos, enfim, o que há de pior na política brasileira. No entanto é preciso ter calma. Ele não faz nada sozinho. Por mais poder que tenha, ele é um deputado em um grupo de 513. Se ele aprova o que quer é porque tem o voto da maioria dos deputados. E essa maioria se compõe de dois grupos absolutamente representativos da sociedade brasileira.
De um lado o PSDB e seus amigos. Pra eles qualquer coisa que seja contra o governo está bom. Qualquer coisa que for contra o PT serve. Infelizmente temos de aceitar isso. O que um dia foi um partido solidamente liberal e centrista, com certos tons mais progressistas, se transformou em porta voz de pessoas que odeiam o governo com todas as forças, inclusive (muitas vezes principalmente) pelo que ele tem de bom, enquanto vociferam contra uma corrupção da qual também são praticantes. Mas gostemos ou não, o fato é que esse discurso é muito representativo. Todo mundo conhece um monte de gente assim. E essas pessoas se sentem representadas. Topam ver PM sentar porrada em professor e estudante, fechar escola, ficar sem água em casa desde que isso seja feito por alguém que critique o PT.
Outra parte é um "Brasil profundo" que fizemos tudo para ignorar mas que explodiu na nossa cara nas últimas eleições parlamentares. Nessa eleição foram eleitos (vários com votação consagradora) deputados com a simples missão de cumprir uma agenda ultra reacionária. Para eles o mundo é dos homens brancos héteros cristãos e todo o resto não merece direitos. Curiosamente se consideram vitimas se defendendo da hostilidade dos outros grupos. São parlamentares que representam um tipo de gente tão mesquinha e egoísta que sequer é capaz de se colocar por 1 segundo no lugar dos outros. E quer que todo mundo que não é como ele se exploda. Se possível, que a PM extermine a todos. Essa gente infelizmente é muito mais numerosa que imaginávamos. Para eles, oprimir minorias é um ato heróico de coragem.
Eduardo Cunha não é, como muitos parecem crer, uma anomalia política criada em Brasília. É fruto de percepções e da visão de mundo de uma grande parte da população brasileira. Ele e seus aliados não fazem o que fazem manobrando nas sombras. Fazem porque sabem que possuem apoio popular para isso. Inclusive se for feito uma pesquisa, aposto que há uma parcela nada desprezível dos eleitores de Lula e Dilma que concorda com boa parte dessas pautas grotestas que Cunha vinha aprovando até se atolar na própria lama. Essa enorme base de apoio não é uma anomalia. Quem pensa isso está voltando àquela ideia que descrevi no começo, da população brasileira inerte e vítima de uma elite inescrupulosa. É uma história muito conveniente mas falsa. Parte significativa da população elegeu essas pessoas sabendo que elas eram assim e estão muito felizes com isso tudo. Os Cunhas, Bolsonaros e Felicianos agem se sentindo legitimados por seus eleitores. E têm razão. É com enorme dor no coração que digo isso: o pior é que eles têm razão nesse ponto.
quarta-feira, 25 de novembro de 2015
#meuamigosecreto. Ou: artificios para sacanear uma causa
Nos últimos dias nas redes sociais (ao menos no meu caso, principalmente no facebook) muitas mulheres usaram a hastag #meuamigosecreto para iniciar frases em que lembravam histórias, experiências de machismo, misoginia, etc. Ao menos que eu tenha notado, em alguns casos eram experiências específicas, em outros estavam mais para condensados de todo um conjunto de vivências ligadas ao tema.
Gosto muito de iniciativas deste tipo. Elas abrem um espaço extra para que mulheres possam compartilhar essas situações. Suponho que deve existir muita gente que não tinha coragem de se posicionar mas em situações como essa se sentiu mais forte ao perceber que era parte de uma coletividade. Mas também é muito boa para que os homens tenham um entendimento um pouquinho melhor do que é a experiência concreta de ser mulher, algo que jamais teremos, por motivos óbvios. Sentir empatia é necessário, mas não é a mesma coisa que viver na pele, e nunca vai ser.
Mais aí começam os artifícios que de mil formas diferentes tentam corroer a luta. Uma que vi algumas vezes foi a chatura do coitadismo. Vi vários caras numa assim: "#meuamigosecreto é mulher, feminista mas fica generalizando como se todos os homens do mundo fossem misóginos e estupradores". Bem, pra começar o grau de egoísmo de quem faz isso é inacreditável. A pessoa acha que a campanha é para atacar os homens. Caras, acordem: feminismo não é sobre homens. É sobre as mulheres. Não importa o que vocês ouviram da mamãe, vocês não são o centro do universo. Aceitem. Aí o cara vem "ay o feminismo não devia ser desse jeito porque aí eu fico magoado e histérico". Uma campanha para dar voz as mulheres sobre a desigualdade de gênero vira uma campanha mundial para machucar o coração de um pobre coitado.
Claro que choca ler certas postagens falando como se todo homem fosse um estuprador em potencial. Mas meus pobres amiguinhos coitados: aproveitem a campanha e leiam com atenção o que elas estão contando. Só que as histórias que eu li quase sem exceção não são fatos isolados. São coisas que elas vivem diariamente, em todos os lugares, não há pra onde escapar. O que inclui o medo do estupro. Pode ser que a pessoa que postou isso inclusive tenha sofrido algum tipo de abuso, algo mais comum do que se possa imaginar. Quem pode saber o que levou essa pessoa a dizer isso? Que homem sabe que tipo de experiência pode construir uma visão dessas? Mais importante que tudo, o que faz do mundo um lugar melhor: 1) uma mulher berrar para o mundo uma mágoa que tem e tentar lidar melhor com ela enquanto nós nos chocamos num primeiro momento mas sabemos que nunca fizemos nada com ela e não levamos para o lado pessoal; 2) a mulher continuar sofrendo em silêncio para não machucar o coração de quem não consegue se deslocar um centímetro para entender o outro?
Um outro ponto mais sutil mas que vai na mesma direção: homens (real ou supostamente) aliados do feminismo que começam a postar coisas tipo "#meuamigosecreto é um vizinho que paga de moralista mas estuprou as filhas", sei lá, algo assim. Quando vejo isso penso em particular nas minhas amigas historiadoras. Além da experiência concreta de ser mulher num mundo machista, elas ainda tem o adicional de saber perfeitamente bem o quanto homens sempre falaram em nome das mulheres. Aí depois de décadas de luta a coisa melhora (ainda está longe do ideal, mas melhorou), e quando a pessoa abre sua rede social vê um bando de homens pretendendo falar em nome das mulheres em 2015.
CARAS, AS MULHERES SABEM FALAR. Elas não precisam que falemos por elas. Aliás a campanha tem justamente a ver com isso. Com mulheres falando do que vivem. Assumindo o protagonismo. O nosso papel é apoiar, aplaudir e PRINCIPALMENTE ouvir com atenção o que elas têm a dizer para tentar melhorar nosso comportamento. Nossa função aqui não é falarmos como se fossemos uma delas. Isso foi feito por MILÊNIOS e ainda é feito. Parem de tentar roubar a fala delas. Apenas parem.
Gosto muito de iniciativas deste tipo. Elas abrem um espaço extra para que mulheres possam compartilhar essas situações. Suponho que deve existir muita gente que não tinha coragem de se posicionar mas em situações como essa se sentiu mais forte ao perceber que era parte de uma coletividade. Mas também é muito boa para que os homens tenham um entendimento um pouquinho melhor do que é a experiência concreta de ser mulher, algo que jamais teremos, por motivos óbvios. Sentir empatia é necessário, mas não é a mesma coisa que viver na pele, e nunca vai ser.
Mais aí começam os artifícios que de mil formas diferentes tentam corroer a luta. Uma que vi algumas vezes foi a chatura do coitadismo. Vi vários caras numa assim: "#meuamigosecreto é mulher, feminista mas fica generalizando como se todos os homens do mundo fossem misóginos e estupradores". Bem, pra começar o grau de egoísmo de quem faz isso é inacreditável. A pessoa acha que a campanha é para atacar os homens. Caras, acordem: feminismo não é sobre homens. É sobre as mulheres. Não importa o que vocês ouviram da mamãe, vocês não são o centro do universo. Aceitem. Aí o cara vem "ay o feminismo não devia ser desse jeito porque aí eu fico magoado e histérico". Uma campanha para dar voz as mulheres sobre a desigualdade de gênero vira uma campanha mundial para machucar o coração de um pobre coitado.
Claro que choca ler certas postagens falando como se todo homem fosse um estuprador em potencial. Mas meus pobres amiguinhos coitados: aproveitem a campanha e leiam com atenção o que elas estão contando. Só que as histórias que eu li quase sem exceção não são fatos isolados. São coisas que elas vivem diariamente, em todos os lugares, não há pra onde escapar. O que inclui o medo do estupro. Pode ser que a pessoa que postou isso inclusive tenha sofrido algum tipo de abuso, algo mais comum do que se possa imaginar. Quem pode saber o que levou essa pessoa a dizer isso? Que homem sabe que tipo de experiência pode construir uma visão dessas? Mais importante que tudo, o que faz do mundo um lugar melhor: 1) uma mulher berrar para o mundo uma mágoa que tem e tentar lidar melhor com ela enquanto nós nos chocamos num primeiro momento mas sabemos que nunca fizemos nada com ela e não levamos para o lado pessoal; 2) a mulher continuar sofrendo em silêncio para não machucar o coração de quem não consegue se deslocar um centímetro para entender o outro?
Um outro ponto mais sutil mas que vai na mesma direção: homens (real ou supostamente) aliados do feminismo que começam a postar coisas tipo "#meuamigosecreto é um vizinho que paga de moralista mas estuprou as filhas", sei lá, algo assim. Quando vejo isso penso em particular nas minhas amigas historiadoras. Além da experiência concreta de ser mulher num mundo machista, elas ainda tem o adicional de saber perfeitamente bem o quanto homens sempre falaram em nome das mulheres. Aí depois de décadas de luta a coisa melhora (ainda está longe do ideal, mas melhorou), e quando a pessoa abre sua rede social vê um bando de homens pretendendo falar em nome das mulheres em 2015.
CARAS, AS MULHERES SABEM FALAR. Elas não precisam que falemos por elas. Aliás a campanha tem justamente a ver com isso. Com mulheres falando do que vivem. Assumindo o protagonismo. O nosso papel é apoiar, aplaudir e PRINCIPALMENTE ouvir com atenção o que elas têm a dizer para tentar melhorar nosso comportamento. Nossa função aqui não é falarmos como se fossemos uma delas. Isso foi feito por MILÊNIOS e ainda é feito. Parem de tentar roubar a fala delas. Apenas parem.
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
Por que precisamos do dia da consciência negra
Quem conhece alguma coisa sobre meu trabalho acadêmico sabe a importância que o tema do racismo tem para mim. Não é dificil entender por que. Cresci numa cidade com muitos negros, tive muitos amigos negros a vida toda. Mas nasci em 1972. Fui criado em um mundo em que se achava que fazer piada racista era normal. E quando falo "piada racista" estou falando em coisas absolutamente escancaradas tipo "por que o mundo é redondo? para os pretos não cagarem nos cantinhos". Meus amigos negros de infância tinham apelidos como "sombra", "nublado", etc. Cansei, mas cansei, de chamar gente de macaco e ver outros fazendo o mesmo. Ao mesmo tempo dizíamos que não havia racismo, que tudo isso era brincadeira e tal.
Na Unicamp ouvi, em meados dos anos 90, um professor, historiador bem famoso, falar assim: "ah, gente, disciplinar negro não dá, né?". Veja o quão recente é o racismo aberto em qualquer lugar. Pra quem não sabe: a Unicamp é referência nacional na área de escravidão, talvez seja a grande especialidade daquele grupo de professores. E há 20 anos se podia ouvir isso de um autor nacionalmente reconhecido perante a complacência de quase toda a turma, inclusive eu. Esse foi o mundo em que me criei. Então não tem essa de "tenho amigos negros" não. Fui criado num mundo extremamente racista. Querer dizer que fiquei imune à isso seria me considerar alguém acima do mundo em que vive.
Sei que há gente de bom coração que acredita genuinamente que não é racista. As entendo, mas infelizmente elas estão erradas. Ter amigos negros e amar a todos não quer dizer que você não é racista. O cara que mata a esposa pode amar a mãe, a irmã, etc. e nem por isso deixa de ser machista. Possivelmente na cabeça dele ele ame até a esposa que matou. Tem pesquisa inclusive mostrando que o racismo é particularmente violento em familias em que coexistem brancos e negros. Um ponto em que a militância negra tem muita razão é justamente em denunciar o caráter "discreto" do nosso racismo. Tem uma pesquisa que mostra que a imensa maioria dos brasileiros acredita que há racismo no país mas não se julgam racistas. Racista sempre é o outro.
Justamente por isso não acho que o alvo das campanhas devam ser essa facção lunática de religiosos que sai por ai invadindo terreiro e quebrando imagem de divindades de religiões afro-brasileiras. Essas pessoas são lunáticas. São tema para policiais e psiquiatras. Não vão ser convencidas de nada. Talvez devam ser estudadas pela medicina para se descobrir como viver sem cérebro. Acho que o tema é outro: que as pessoas entendam que por mais que sejam bem intencionadas e gostem genuinamente de alguns negros são racistas assim mesmo. Aprendam a reconhecer isso e ajam tentando mudar.
Aqui vai uma historinha real. Minha irmã é mais morena que eu e se casou com um negro. Sendo assim, tiveram uma filha negra, que hoje tem, se não me engano, seis anos (a senilidade precoce não ajuda a guardar esse tipo de coisa). Segundo ela, quando leva a filha pra brincar na pracinha as crianças brancas se afastam com ajuda das mães. Uma linda menina inocente que inunda qualquer espaço em que esteja de alegria e vida tendo de passar por isso. Quando penso nisso e no que mais ela terá de passar tenho vontade de sair por aí dando porrada em todo mundo. Infelizmente não é específico dela. Há vasta bibliografia sobre isso, que mostra inclusive que crianças muito novas já discriminam barbaramente os coleguinhas negros. Professores também.
Claro que nada disso deveria existir. E há exemplos disso. Minha sobrinha tem dois irmãos, um casal de gêmeos filhos da minha irmã de um relacionamento anterior. São muito brancos e já chegaram na adolescência. Todo mundo pergunta a eles como podem ter uma irmã negra. Eles não entendem. Pra eles essa categorização racial simplesmente não faz sentido. Na cabeça deles não é "somos brancos, minha mãe também, e temos uma irmã negra como o marido da minha mãe". Essa não é uma questão pra eles e ponto final. Deveríamos viver em um mundo só com pessoas assim.
Mas não vivemos. E uma das coisas que aprendi com a história é que privilegiados nunca concedem direitos. Eles têm de ser arrancados à fórceps pelos subalternos. Tudo o que os negros conseguiram melhorar nos últimos 120 anos foi devido à luta deles. Então tem de ter dia da consciência negra sim. Só não pode virar festa, dia de branco ir ver espetáculo de samba, capoeira, maracatu, etc. para se sentir descolado e galeroso. Tem de ser dia de luta. De esfregar o racismo na cara da sociedade. Fazer com que todos sejam obrigados a encarar aquilo que muita gente quer varrer pra baixo do tapete, por escrotidão, visão privilegiada de mundo ou falta de reflexão e conhecimento. Tem de ir pro confronto. Não há outra solução possível.
Na Unicamp ouvi, em meados dos anos 90, um professor, historiador bem famoso, falar assim: "ah, gente, disciplinar negro não dá, né?". Veja o quão recente é o racismo aberto em qualquer lugar. Pra quem não sabe: a Unicamp é referência nacional na área de escravidão, talvez seja a grande especialidade daquele grupo de professores. E há 20 anos se podia ouvir isso de um autor nacionalmente reconhecido perante a complacência de quase toda a turma, inclusive eu. Esse foi o mundo em que me criei. Então não tem essa de "tenho amigos negros" não. Fui criado num mundo extremamente racista. Querer dizer que fiquei imune à isso seria me considerar alguém acima do mundo em que vive.
Sei que há gente de bom coração que acredita genuinamente que não é racista. As entendo, mas infelizmente elas estão erradas. Ter amigos negros e amar a todos não quer dizer que você não é racista. O cara que mata a esposa pode amar a mãe, a irmã, etc. e nem por isso deixa de ser machista. Possivelmente na cabeça dele ele ame até a esposa que matou. Tem pesquisa inclusive mostrando que o racismo é particularmente violento em familias em que coexistem brancos e negros. Um ponto em que a militância negra tem muita razão é justamente em denunciar o caráter "discreto" do nosso racismo. Tem uma pesquisa que mostra que a imensa maioria dos brasileiros acredita que há racismo no país mas não se julgam racistas. Racista sempre é o outro.
Justamente por isso não acho que o alvo das campanhas devam ser essa facção lunática de religiosos que sai por ai invadindo terreiro e quebrando imagem de divindades de religiões afro-brasileiras. Essas pessoas são lunáticas. São tema para policiais e psiquiatras. Não vão ser convencidas de nada. Talvez devam ser estudadas pela medicina para se descobrir como viver sem cérebro. Acho que o tema é outro: que as pessoas entendam que por mais que sejam bem intencionadas e gostem genuinamente de alguns negros são racistas assim mesmo. Aprendam a reconhecer isso e ajam tentando mudar.
Aqui vai uma historinha real. Minha irmã é mais morena que eu e se casou com um negro. Sendo assim, tiveram uma filha negra, que hoje tem, se não me engano, seis anos (a senilidade precoce não ajuda a guardar esse tipo de coisa). Segundo ela, quando leva a filha pra brincar na pracinha as crianças brancas se afastam com ajuda das mães. Uma linda menina inocente que inunda qualquer espaço em que esteja de alegria e vida tendo de passar por isso. Quando penso nisso e no que mais ela terá de passar tenho vontade de sair por aí dando porrada em todo mundo. Infelizmente não é específico dela. Há vasta bibliografia sobre isso, que mostra inclusive que crianças muito novas já discriminam barbaramente os coleguinhas negros. Professores também.
Claro que nada disso deveria existir. E há exemplos disso. Minha sobrinha tem dois irmãos, um casal de gêmeos filhos da minha irmã de um relacionamento anterior. São muito brancos e já chegaram na adolescência. Todo mundo pergunta a eles como podem ter uma irmã negra. Eles não entendem. Pra eles essa categorização racial simplesmente não faz sentido. Na cabeça deles não é "somos brancos, minha mãe também, e temos uma irmã negra como o marido da minha mãe". Essa não é uma questão pra eles e ponto final. Deveríamos viver em um mundo só com pessoas assim.
Mas não vivemos. E uma das coisas que aprendi com a história é que privilegiados nunca concedem direitos. Eles têm de ser arrancados à fórceps pelos subalternos. Tudo o que os negros conseguiram melhorar nos últimos 120 anos foi devido à luta deles. Então tem de ter dia da consciência negra sim. Só não pode virar festa, dia de branco ir ver espetáculo de samba, capoeira, maracatu, etc. para se sentir descolado e galeroso. Tem de ser dia de luta. De esfregar o racismo na cara da sociedade. Fazer com que todos sejam obrigados a encarar aquilo que muita gente quer varrer pra baixo do tapete, por escrotidão, visão privilegiada de mundo ou falta de reflexão e conhecimento. Tem de ir pro confronto. Não há outra solução possível.
domingo, 15 de novembro de 2015
Muçulmanos
Profissionais que estudam temas culturais sabem muito bem que identidades se constroem pelo contraste. Ou seja, sempre privilegiaremos o que nos diferencia do outro na hora de construirmos nosso lugar no mundo. Um exemplo simples: o arroz com feijão é consumido em larga escala de norte a sul do país. Mas justamente por isso não é marcador de identidade regional de nenhum lugar do Brasil, pois não serve como diferenciador. Se usam coisas bem menos consumidas (bode aqui no nordeste, churrasco no RS, etc.) mas que cumprem esse papel diferenciador.
O Ocidente pretende se diferenciar do resto do mundo por uma narrativa da modernidade que teria, entre seus traços particulares, o respeito e a tolerância pelas diferenças. Supostamente seríamos os únicos com essa capacidade. O que significa que seríamos uma ilha de racionalidade em um planeta de bárbaros. Uma definição identitária como essa demanda desesperadamente por um Outro bárbaro, incivilizado e intolerante. Os muçulmanos acabaram assumindo esse papel em nosso imaginário. Dizia para meus alunos semana passada: criamos um combo que associa islamismo, árabes, fanatismo e intolerância. Algo completamente irracional que visa justificar a imagem de que somos os únicos racionais.
Talvez não seja demais esclarecer que quando digo que essa é uma concepção irracional não quero dizer que não existam aquelas coisas. Mas são generalizações francamente abusivas. Há centenas de milhões de muçulmanos que não são árabes (iranianos e indonésios, por exemplo), e a ideia de que todos islâmicos são jihadistas é de chorar. 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) são muçulmanas. Se todas fossem terroristas o mundo nem existiria mais.
Tão ruim quanto isso é a nossa auto imagem. Acreditamos sinceramente que somos uma civilização tolerante. Criamos o nazismo, matamos judeus e muçulmanos, temos pena de morte, somos racistas, machistas e homofóbicos, mas embora vejamos isso diariamente achamos que os muçulmanos são piores. Que eles não são humanos como nós, não têm compaixão, não enterram seus mortos e não amam seus filhos. Eles não são humanos como nós. Por isso, se muçulmanos matam um de nós podemos matar um milhão deles como vingança. Eles não são como nós.
Por tudo isso a questão dos refugiados de guerra da Síria gerou tanto alarde. Muita gente, inclusive na esquerda, se disse temerosa com medo de uma invasão de muçulmanos homofóbicos e machistas. Como se pessoas que votam em Berlusconi e Le Pen precisasse de alguém que os ensinasse essas coisas. Como se a Síria não fosse um dos países mais laicos da região. O fato de serem muçulmanos dispensa maiores explicações: só podem ser machistas, homofóbicos, homens-bomba e gente que não possui a nossa humanidade.
Só tive uma experiência limitada com muçulmanos, na semana que passei em Istambul. Antes de ir falei com duas pessoas. Uma brasileira que mora lá me disse que Istambul era tranquilo, que eu não me preocupasse com nada diferente do que eu precisava me cuidar no Brasil. Uma turca que era vizinha da minha então namorada italiana avisou que não havia nada de muito diferente, exceto não existir porco ou Cristo, uma definição que me fez rir muito, mas se mostrou real: muçulmanos não comem carne de porco mesmo. Mas fazem o capeta com cordeiro, então tudo bem.
Tinham me falado maravilhas de Istambul. Mas não achei essa coisa toda. Gostei muito, mas achei superestimada. A parte histórica é infartante. Para um brasileiro, conhecer construções do século VI é mais que um sonho. Comida também é excelente. Nada que soe exótico pra nós. Diferente da nossa, bem temperada, mas nada que nos faça pensar que estamos em outro planeta. A cerveja também é muito decente.
As pessoas são um capítulo à parte. Istambul é parte européia e parte asiática. É um ponto de convergência. No aeroporto já fiquei fascinado por nunca ter visto gente de tantos tipos, cores e tamanhos diferentes. No painel de chegadas e partidas tinha vôo de tudo que é lugar do mundo. Impossível achar que quem vive num lugar assim seja esse mar de intolerância, pois simplesmente não há como. Cheguei, o aeroporto estava uma zona (havia caído um temporal master, impedindo os vôos de pousar, e quando acabou todos pousaram de uma vez), mostrei meu passaporte para o fiscal da imigração, ele viu de onde eu era, perguntou "e o 7 a 1, hein?", riu, carimbou o passaporte e fui atrás de um táxi. Tudo bem comum.
Nas ruas as mulheres usam vários tipos de roupas. Muitas com vestimentas que associamos ao islamismo, outras em trajes ocidentais. Porteiro do hotel me explicava que a Turquia é um país laico e eles têm muito orgulho dessa característica, que atribuem ao fundador do país, Mustafá Kemal, o "Ataturk", cuja foto está por todos os lugares. Se no Brasil o futebol é uma mania nacional, lá é muito mais que isso. Quando percebiam que eu era brasileiro, 11 a cada 10 pessoas vinham falar de futebol. Ronaldinho Gaúcho, em particular, era um tema da curiosidade e admiração.
Claro que não são pessoas perfeitas. Inclusive em várias coisas lembram os brasileiros, e sejam até piores. Tentar roubar na hora de dar o troco é uma doença nacional. Um dia pegamos um taxi, o cara fez um comentário super machista sobre mulheres dirigirem mal, minha então namorada italiana fez comentários indignados comigo e o taxista começou a passear só pra nos sacanear (pessoas de Istambul aparentemente sabem algo sobre todas as línguas do mundo). No mítico mercado público, do século XV, tentam se aproveitar de você de todas as maneiras possíveis (mas a visita vale demais assim mesmo).
Ao menos nessa viagem, o que vi foi que muçulmanos são gente como nós. Amam seus filhos, choram seus mortos, amam futebol, fazem uma comida ótima e são trambiqueiros. E comem aquelas coisas que a gente pensa que só existem na Biblia, tipo tâmaras. Ao menos pelo que vi a imagem ocidental não se sustenta por um segundo. Certamente deve haver intolerância, como também há de sobra no Ocidente. Em suma, não vi nada muito diferente do que conhecemos. No máximo diferenças culturais, como senti também na Itália, na Holanda ou em outras partes do Brasil, o que é completamente normal.
Termino este post com a sensação de só ter dito coisas óbvias. Mas vivemos em um mundo em que ver o óbvio virou uma virtude.
O Ocidente pretende se diferenciar do resto do mundo por uma narrativa da modernidade que teria, entre seus traços particulares, o respeito e a tolerância pelas diferenças. Supostamente seríamos os únicos com essa capacidade. O que significa que seríamos uma ilha de racionalidade em um planeta de bárbaros. Uma definição identitária como essa demanda desesperadamente por um Outro bárbaro, incivilizado e intolerante. Os muçulmanos acabaram assumindo esse papel em nosso imaginário. Dizia para meus alunos semana passada: criamos um combo que associa islamismo, árabes, fanatismo e intolerância. Algo completamente irracional que visa justificar a imagem de que somos os únicos racionais.
Talvez não seja demais esclarecer que quando digo que essa é uma concepção irracional não quero dizer que não existam aquelas coisas. Mas são generalizações francamente abusivas. Há centenas de milhões de muçulmanos que não são árabes (iranianos e indonésios, por exemplo), e a ideia de que todos islâmicos são jihadistas é de chorar. 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) são muçulmanas. Se todas fossem terroristas o mundo nem existiria mais.
Tão ruim quanto isso é a nossa auto imagem. Acreditamos sinceramente que somos uma civilização tolerante. Criamos o nazismo, matamos judeus e muçulmanos, temos pena de morte, somos racistas, machistas e homofóbicos, mas embora vejamos isso diariamente achamos que os muçulmanos são piores. Que eles não são humanos como nós, não têm compaixão, não enterram seus mortos e não amam seus filhos. Eles não são humanos como nós. Por isso, se muçulmanos matam um de nós podemos matar um milhão deles como vingança. Eles não são como nós.
Por tudo isso a questão dos refugiados de guerra da Síria gerou tanto alarde. Muita gente, inclusive na esquerda, se disse temerosa com medo de uma invasão de muçulmanos homofóbicos e machistas. Como se pessoas que votam em Berlusconi e Le Pen precisasse de alguém que os ensinasse essas coisas. Como se a Síria não fosse um dos países mais laicos da região. O fato de serem muçulmanos dispensa maiores explicações: só podem ser machistas, homofóbicos, homens-bomba e gente que não possui a nossa humanidade.
Só tive uma experiência limitada com muçulmanos, na semana que passei em Istambul. Antes de ir falei com duas pessoas. Uma brasileira que mora lá me disse que Istambul era tranquilo, que eu não me preocupasse com nada diferente do que eu precisava me cuidar no Brasil. Uma turca que era vizinha da minha então namorada italiana avisou que não havia nada de muito diferente, exceto não existir porco ou Cristo, uma definição que me fez rir muito, mas se mostrou real: muçulmanos não comem carne de porco mesmo. Mas fazem o capeta com cordeiro, então tudo bem.
Tinham me falado maravilhas de Istambul. Mas não achei essa coisa toda. Gostei muito, mas achei superestimada. A parte histórica é infartante. Para um brasileiro, conhecer construções do século VI é mais que um sonho. Comida também é excelente. Nada que soe exótico pra nós. Diferente da nossa, bem temperada, mas nada que nos faça pensar que estamos em outro planeta. A cerveja também é muito decente.
As pessoas são um capítulo à parte. Istambul é parte européia e parte asiática. É um ponto de convergência. No aeroporto já fiquei fascinado por nunca ter visto gente de tantos tipos, cores e tamanhos diferentes. No painel de chegadas e partidas tinha vôo de tudo que é lugar do mundo. Impossível achar que quem vive num lugar assim seja esse mar de intolerância, pois simplesmente não há como. Cheguei, o aeroporto estava uma zona (havia caído um temporal master, impedindo os vôos de pousar, e quando acabou todos pousaram de uma vez), mostrei meu passaporte para o fiscal da imigração, ele viu de onde eu era, perguntou "e o 7 a 1, hein?", riu, carimbou o passaporte e fui atrás de um táxi. Tudo bem comum.
Nas ruas as mulheres usam vários tipos de roupas. Muitas com vestimentas que associamos ao islamismo, outras em trajes ocidentais. Porteiro do hotel me explicava que a Turquia é um país laico e eles têm muito orgulho dessa característica, que atribuem ao fundador do país, Mustafá Kemal, o "Ataturk", cuja foto está por todos os lugares. Se no Brasil o futebol é uma mania nacional, lá é muito mais que isso. Quando percebiam que eu era brasileiro, 11 a cada 10 pessoas vinham falar de futebol. Ronaldinho Gaúcho, em particular, era um tema da curiosidade e admiração.
Claro que não são pessoas perfeitas. Inclusive em várias coisas lembram os brasileiros, e sejam até piores. Tentar roubar na hora de dar o troco é uma doença nacional. Um dia pegamos um taxi, o cara fez um comentário super machista sobre mulheres dirigirem mal, minha então namorada italiana fez comentários indignados comigo e o taxista começou a passear só pra nos sacanear (pessoas de Istambul aparentemente sabem algo sobre todas as línguas do mundo). No mítico mercado público, do século XV, tentam se aproveitar de você de todas as maneiras possíveis (mas a visita vale demais assim mesmo).
Ao menos nessa viagem, o que vi foi que muçulmanos são gente como nós. Amam seus filhos, choram seus mortos, amam futebol, fazem uma comida ótima e são trambiqueiros. E comem aquelas coisas que a gente pensa que só existem na Biblia, tipo tâmaras. Ao menos pelo que vi a imagem ocidental não se sustenta por um segundo. Certamente deve haver intolerância, como também há de sobra no Ocidente. Em suma, não vi nada muito diferente do que conhecemos. No máximo diferenças culturais, como senti também na Itália, na Holanda ou em outras partes do Brasil, o que é completamente normal.
Termino este post com a sensação de só ter dito coisas óbvias. Mas vivemos em um mundo em que ver o óbvio virou uma virtude.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Fui um abusador
Difícil demais dizer isso. Mas é a verdade. Já fui alguém que abusou de mulheres. Nunca fiz nada fora da lei, nunca estuprei ou bati em mulher. Mas quando era mais novo fiz aquelas coisas que entre homens são tidas como "normais": encoxar, passar a mão, etc. Quando mais novo fiz tudo isso muitas vezes. E estive em grupos em que caras contavam uns aos outros essas coisas, sempre rindo muito.
Talvez a pior parte disso é que tudo aquilo era (e ainda é) socialmente aceito. Nós homens não somos treinados para encarar como relevante o desejo feminino. Somos ensinados que o mundo é nosso. Só isso pode explicar pessoas de bom coração (acredite, eu era) cometendo esse tipo de abusos achando sinceramente que era divertido.
Isso é algo tão forte que me lembro perfeitamente de, em plenos anos 90, fazendo História na Unicamp, colegas irem para festas exclusivamente com essa finalidade. Nessa época eu já encarava isso como algo que não fazia muito sentido, ainda que não tivesse elaborado nada mentalmente. Mas me lembro nitidamente de gente que inclusive hoje é historiador reconhecido contando vantagem de ter "alisado" a fulana, para inveja geral.
E naqueles mesmos anos eu tive contato mais direto com o feminismo pela primeira vez. De forma completamente imatura. Eu via minhas colegas de faculdade na militância mas ainda não conseguia me deslocar minimamente. Achávamos que elas eram um bando de chatas que criavam caso por nada. Era um olhar mais para condescendente. Não odiávamos elas por isso, várias eram nossas amigas, mas aquilo nos soava muito mimimi.
Precisei ter uma amiga ultrafeminista, minha parceira de trabalho, uma norte americana que segurou meu rosto e me mandou parar de agir como se fosse um imbecil. Foi ela que me mostrou o quanto as ações que eu achava normais reproduziam uma cultura que degradava as mulheres, ignorava seus desejos e as via como objetos a serem fruidos por nós. Imagino que para uma mulher isso deve ser ininteligível, mas fazendo doutorado em história eu ainda não tinha entendido isso. Pois não é o recado que recebemos. O que nos dizem o tempo todo é exatamente o oposto.
Claro que eu lamento muito isso tudo. Tenho plena consciência que nunca vou superar o fato de ter sido criado para acreditar que somos os donos do mundo. Na verdade não apenas eu: todos os homens recebem essa mensagem 24 horas por dia. Mas eu lamento ainda mais que muitos nunca consigam sequer problematizar isso. Gente velha que continua assumindo o papel de vítima perante o feminismo. Gente que inventa idiotices tipo "femismo", etc. Esses só conseguem ver seu próprio umbigo. Nem dá pra discutir.
Talvez a pior parte disso é que tudo aquilo era (e ainda é) socialmente aceito. Nós homens não somos treinados para encarar como relevante o desejo feminino. Somos ensinados que o mundo é nosso. Só isso pode explicar pessoas de bom coração (acredite, eu era) cometendo esse tipo de abusos achando sinceramente que era divertido.
Isso é algo tão forte que me lembro perfeitamente de, em plenos anos 90, fazendo História na Unicamp, colegas irem para festas exclusivamente com essa finalidade. Nessa época eu já encarava isso como algo que não fazia muito sentido, ainda que não tivesse elaborado nada mentalmente. Mas me lembro nitidamente de gente que inclusive hoje é historiador reconhecido contando vantagem de ter "alisado" a fulana, para inveja geral.
E naqueles mesmos anos eu tive contato mais direto com o feminismo pela primeira vez. De forma completamente imatura. Eu via minhas colegas de faculdade na militância mas ainda não conseguia me deslocar minimamente. Achávamos que elas eram um bando de chatas que criavam caso por nada. Era um olhar mais para condescendente. Não odiávamos elas por isso, várias eram nossas amigas, mas aquilo nos soava muito mimimi.
Precisei ter uma amiga ultrafeminista, minha parceira de trabalho, uma norte americana que segurou meu rosto e me mandou parar de agir como se fosse um imbecil. Foi ela que me mostrou o quanto as ações que eu achava normais reproduziam uma cultura que degradava as mulheres, ignorava seus desejos e as via como objetos a serem fruidos por nós. Imagino que para uma mulher isso deve ser ininteligível, mas fazendo doutorado em história eu ainda não tinha entendido isso. Pois não é o recado que recebemos. O que nos dizem o tempo todo é exatamente o oposto.
Claro que eu lamento muito isso tudo. Tenho plena consciência que nunca vou superar o fato de ter sido criado para acreditar que somos os donos do mundo. Na verdade não apenas eu: todos os homens recebem essa mensagem 24 horas por dia. Mas eu lamento ainda mais que muitos nunca consigam sequer problematizar isso. Gente velha que continua assumindo o papel de vítima perante o feminismo. Gente que inventa idiotices tipo "femismo", etc. Esses só conseguem ver seu próprio umbigo. Nem dá pra discutir.
domingo, 8 de novembro de 2015
Que viva a esquerda!
Sábado a Revolução Russa fez 98 anos. É uma data tão importante pra mim que nem sei o que pensar.
Sou de uma família esquerdista. Cresci nos anos 80 e vivi todo aquele clima da redemocratização. E em uma cidade operária onde o brizolismo reinava. Daí embarquei diretamente no mundo dos historiadores, um universo que com todos os seus problemas e suas chatices sempre tende a ser progressista. No início dos anos 90, quando eu estava na graduação, lembro que brincávamos que o comunismo só existia em Cuba e no nosso curso.
Em suma, em duas semanas farei 43 anos vivendo em um universo de esquerda. Provavelmente por isso não sei como é ser de direita. Pode ser que esse ponto do arco político tenha virtudes, mas eu não vejo nenhuma. Só vejo pessoas que tem como meta o ódio a quem já se ferra o tempo todo. Seja qual for o contexto. Os judeus, prostitutas e homossexuais no nazismo, os esquerdistas nas ditaduras militares latinoamericanas, os homossexuais, negros e nordestinos hoje, as mulheres e pobres desde sempre. Só consigo imaginar essas pessoas se unindo para odiar. E sempre odiando gente subalterna. Sempre com pena dos dominantes que são favorecidos. Por algum motivo na cabeça dessa gente a vida se resume a sentir pena dos brancos, dos heteros, dos homens, enfim, dos que já têm tudo. Em alguma lógica isso faz sentido pra eles.
Na minha lógica isso tudo é coisa de quem só pensa em si. Culpa dessa maldita formação esquerdista. Pra nós existe no mundo uma coisa chamada empatia, que significa tentar ver a vida com os olhos de quem não é como nós e tentar entender o ponto de vista de quem precisa de ajuda. Também existe uma coisa chamada generosidade, que é tentar pensar num mundo além do que é bom para nós mesmos. Podem nos chamar de sonhadores utópicos, mas vemos a vida assim. Achamos que só está bom se for bom para todos e não apenas para nós.
Também não entendo direito essa coisa de quem é de direita se definir em função daquilo que odeia. Eu me defino em função daquilo que eu quero. Um mundo justo, sem que ninguém tenha de pagar por ser quem é. Simplesmente isso. Que todos possam ser quem quiserem sem ter de sofrer. Aliás, foi exatamente em nome disso tudo que as melhores pessoas da geração dos meus pais (inclusive eles mesmos) arriscaram suas vidas e muitos pagaram por elas. Para que cada um de nós possa falar, escrever, comentar a idiotice que for sem ter de se explicar a ninguém. Inclusive para que quem é idiota a esse ponto ache que eles é que eram autoritários. Eles ouvem isso e não querem proibir que isso seja dito. A ditadura proibia que falassem mal dela e essas pessoas não se importam. Paciência. Isso é democracia.
Para nós, ser esquerdista é uma eterna alegria. É compartilhar o sonho de um mundo generoso. Cada um a seu modo, é o que nos une. Somos todos legais? Nem pensar. O que queremos é uma utopia? Pode ser. Mas dormimos em paz. E nossas vidas não são guiadas pelo ódio. Já é uma grande coisa.
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Ter consciência de que faz parte do grupo opressor: uma necessidade urgente
Ontem fui ao supermercado. Estava na fila do caixa. Vi que atrás de mim tinha uma mulher que ia comprar apenas um iogurte. Na minha frente um casal passava uma compra imensa. Pensei que não havia mal nenhum em deixar a mulher passar na minha frente, já que a compra dela era mínima, e a minha era mediana, uma feirinha semanal. Ela agradeceu, passou à minha frente, mas ficou nitidamente sem saber o que fazer. Não sabia se eu estava sendo gentil ou tendo segundas intenções. Me senti tão constrangido ao me dar conta disso que passei o resto do tempo olhando pra baixo, para não dar nenhuma dúvida de que só queria passar minhas compras.
Esse é o tipo de situação na qual os olavistas, os reaças e todo o lixo que temos na nossa sociedade vão culpar o feminismo por tudo o que aconteceu. Na leitura dessas pessoas eu fui oprimido naquela situação por causa de um bando de feminazis que criam um antagonismo entre homens e mulheres que está poluíndo o mundo. Culpa da maldita "teoria de gênero". Para esse tipo de bosta humana eu é que sou o sofredor da história. Eu é que sou o coitadinho oprimido. Culpa dos comunistas, das feminazis, do Jean Wyllys, vamos lá apoiar o Bolsonaro que tem coragem de nos defender dessa gente maldita que está dominando o mundo.
Essas pessoas são completamente idiotas. Não são dotadas de algo que qualquer humano deveria sentir: empatia. Como qualquer subalterno, as mulheres experimentam desvantagens cotidianas que eu sequer posso imaginar, mas que ao menos tento entender. Nós nunca vamos saber o que é. Sendo muito sincero aqui, durante muitos anos da minha vida achei divertido mexer com mulheres quando andava de carro. Pra mim era uma coisa meio infantil mas muito engraçada. Até o dia em que minhas primas me falaram que isso podia soar horrivel para quem convive diariamente com o medo do estupro. E parei.
Todos os dias homens matam mulheres. Estupram mulheres. Agridem mulheres fisicamente. Nenhum de nós homens pode saber concretamente o efeito que isso causa. Nunca vamos saber o que é não ter ideia se o próximo cara que aparecer pelo seu caminho vai querer fazer uma dessas coisas. E não adianta pensar "ah, mas eu não faço nada disso". Eu também não faço. Nunca faria. Mas a mulher da fila do supermercado tem como saber disso? Lógico que não. Eu era apenas um indivíduo do sexo masculino pra ela. Que podia estar fazendo uma pequena gentileza ou vislumbrando uma possibilidade de estupro. Não havia como ela saber.
Some-se a isso a imensa quantidade de pequenas violências cotidianas que todo subalterno conhece bem. A ideia de que uma mulher está desprotegida sem um homem por perto. O conceito de que homossexuais querem transar com todas as pessoas do mesmo sexo que eles. O pressuposto de que todo negro é pobre, favelado e sabe sambar. Nordestinos são todos pobres, moram no sertão e votam em troca de alguma coisa. E por aí vai. Nossa personalidade é formada não só pela genética: existem as experiências que moldam nossa forma de ver o mundo e o ambiente que nos cerca. E uma experiência subalterna num ambiente adverso ensina a desconfiar de todos os que fazem parte do grupo dominante. Basta ter um mínimo de empatia que isso se torna óbvio.
Nós, que estamos do lado dominante na maior parte dos temas precisamos entender minimamente isso tudo. Que por mais que nos esforcemos para ser as melhores pessoas que pudermos, nunca deixaremos de representar a opressão para os subalternos. Parar de ficar com esse papo absurdo de "tadinho de mim" sendo que está do lado privilegiado, e começar a tentar ver o mundo como o oprimido o vê a partir de sua experiência de vida. Como já disse antes: nascer num mundo assim não foi escolha de ninguém, mas ser um babaca escroto que acha que os privilegiados são coitadinhos quando não podem oprimir à vontade e quando quiserem é questão de escolha. Ninguém é obrigado a ser um completo imbecil.
Esse é o tipo de situação na qual os olavistas, os reaças e todo o lixo que temos na nossa sociedade vão culpar o feminismo por tudo o que aconteceu. Na leitura dessas pessoas eu fui oprimido naquela situação por causa de um bando de feminazis que criam um antagonismo entre homens e mulheres que está poluíndo o mundo. Culpa da maldita "teoria de gênero". Para esse tipo de bosta humana eu é que sou o sofredor da história. Eu é que sou o coitadinho oprimido. Culpa dos comunistas, das feminazis, do Jean Wyllys, vamos lá apoiar o Bolsonaro que tem coragem de nos defender dessa gente maldita que está dominando o mundo.
Essas pessoas são completamente idiotas. Não são dotadas de algo que qualquer humano deveria sentir: empatia. Como qualquer subalterno, as mulheres experimentam desvantagens cotidianas que eu sequer posso imaginar, mas que ao menos tento entender. Nós nunca vamos saber o que é. Sendo muito sincero aqui, durante muitos anos da minha vida achei divertido mexer com mulheres quando andava de carro. Pra mim era uma coisa meio infantil mas muito engraçada. Até o dia em que minhas primas me falaram que isso podia soar horrivel para quem convive diariamente com o medo do estupro. E parei.
Todos os dias homens matam mulheres. Estupram mulheres. Agridem mulheres fisicamente. Nenhum de nós homens pode saber concretamente o efeito que isso causa. Nunca vamos saber o que é não ter ideia se o próximo cara que aparecer pelo seu caminho vai querer fazer uma dessas coisas. E não adianta pensar "ah, mas eu não faço nada disso". Eu também não faço. Nunca faria. Mas a mulher da fila do supermercado tem como saber disso? Lógico que não. Eu era apenas um indivíduo do sexo masculino pra ela. Que podia estar fazendo uma pequena gentileza ou vislumbrando uma possibilidade de estupro. Não havia como ela saber.
Some-se a isso a imensa quantidade de pequenas violências cotidianas que todo subalterno conhece bem. A ideia de que uma mulher está desprotegida sem um homem por perto. O conceito de que homossexuais querem transar com todas as pessoas do mesmo sexo que eles. O pressuposto de que todo negro é pobre, favelado e sabe sambar. Nordestinos são todos pobres, moram no sertão e votam em troca de alguma coisa. E por aí vai. Nossa personalidade é formada não só pela genética: existem as experiências que moldam nossa forma de ver o mundo e o ambiente que nos cerca. E uma experiência subalterna num ambiente adverso ensina a desconfiar de todos os que fazem parte do grupo dominante. Basta ter um mínimo de empatia que isso se torna óbvio.
Nós, que estamos do lado dominante na maior parte dos temas precisamos entender minimamente isso tudo. Que por mais que nos esforcemos para ser as melhores pessoas que pudermos, nunca deixaremos de representar a opressão para os subalternos. Parar de ficar com esse papo absurdo de "tadinho de mim" sendo que está do lado privilegiado, e começar a tentar ver o mundo como o oprimido o vê a partir de sua experiência de vida. Como já disse antes: nascer num mundo assim não foi escolha de ninguém, mas ser um babaca escroto que acha que os privilegiados são coitadinhos quando não podem oprimir à vontade e quando quiserem é questão de escolha. Ninguém é obrigado a ser um completo imbecil.
domingo, 1 de novembro de 2015
O que Herzog diz sobre o Brasil de hoje
Fim de semana passado eu estava internado e não pude escrever sobre os 40 anos da morte de Vladimir Herzog. Um jornalista que não tinha nada a ver com a luta armada mas que foi assassinado pelos carniceiros da ditadura. Sua morte marcou o início do fim da ditadura. Por culpa de três pessoas: Dom Paulo Evaristo Arns, Reverendo Jaime Wright e o Rabino Henry Sobel.
A versão oficial da morte de Herzog falava em suicídio. Como suicida ele jamais poderia ser enterrado em um cemitério judeu, segundo as leis de sua religião. Mas esses três religiosos ignoraram a versão oficial. Fizeram um culto ecumênico na Catedral da Sé que era por si só um enorme ato de resistência àquela ditadura horrorosa que vivíamos.
Essa história não parou por aí. Juntos esses religiosos foram nomes centrais na luta pela redemocratização do país. Construíram o Brasil Nunca Mais, projeto essencial para que jamais sejam esquecidas as monstruosidades cometidas naquele regime nem seus culpados. E deram uma aula ao mundo de tolerância religiosa. Me lembro muito bem de ver um programa de entrevistas na TV Cultura nos anos 1990 em que perguntavam a Dom Paulo Evaristo Arns se as diferenças religiosas não tinham em algum momento tido algum papel na colaboração entre eles. A resposta foi "nunca perguntei a religião deles e eles nunca perguntaram a minha".
Seguramente essa história não foi fácil para os nomes citados. Na verdade, tanto entre católicos, como protestantes e judeus a maioria do clero não queria confusão com a ditadura. Arns, Wright e Sobel eram minoritários em suas religiões. Para essa maioria, eles estavam sendo progressistas demais e comprando brigas desnecessárias. O que nos leva à seguinte questão: sabemos perfeitamente quem são ou foram Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright e Henry Sobel. Seus nomes estão na história do Brasil. E seus oponentes? Sequer sabemos seus nomes.
Essa é uma parte muito boa de ser historiador. Saber olhar para o presente sem olhos imediatistas. No meu caso vejo essa gente histérica em relação a tudo e só consigo ver discursos descontrolados de quem quer ser eleito amanhã mas sequer será lembrado daqui a 20 anos. Não tenho a mais vaga dúvida que em um par de décadas Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Marco Feliciano serão nomes esquecidos, exatamente como a maioria dos religiosos que queria que a morte de Herzog passasse em branco há 40 anos.
Por outro lado, quando conto histórias como a de Herzog meus alunos me olham com cara de "mano, para de inventar, vai". Não por duvidarem dos meus conhecimentos, mas pela incapacidade deles em vislumbrar que o Brasil foi assim em um passado relativamente tão recente. E não tenho a menor dúvida que existirá um dia em que meus netos assistirão uma aula de história falando dessas antas que hoje nos matam de raiva e vão rir muito, achando impossível que alguém um dia tenha levado elas a sério.
Enfim, quando olho para Dom Paulo, Jaime wright e Henry Sobel sinto duas coisas. De um lado a infinita gratidão por quem teve a coragem de enfrentar aquela ditadura horrorosa, e por isso mesmo estarão para sempre entre as pessoas que mais amo no mundo. Mas por outro lado também vejo gente que escreveu seus nomes na história do nosso país por ser diferente do clero instituído. Diferente de gente que naqueles anos tinha poder, mas cujos nomes sequer sabemos hoje em dia. O fato a ser retido é esse: sabemos perfeitamente quem são eles, mas nem sabemos os nomes dos seus críticos histéricos da época.
(este post é uma homenagem a Dom Paulo Evaristo Arns, o maior ídolo que tenho nesta vida. Na minha modesta opinião, o maior brasileiro que já existiu)
A versão oficial da morte de Herzog falava em suicídio. Como suicida ele jamais poderia ser enterrado em um cemitério judeu, segundo as leis de sua religião. Mas esses três religiosos ignoraram a versão oficial. Fizeram um culto ecumênico na Catedral da Sé que era por si só um enorme ato de resistência àquela ditadura horrorosa que vivíamos.
Essa história não parou por aí. Juntos esses religiosos foram nomes centrais na luta pela redemocratização do país. Construíram o Brasil Nunca Mais, projeto essencial para que jamais sejam esquecidas as monstruosidades cometidas naquele regime nem seus culpados. E deram uma aula ao mundo de tolerância religiosa. Me lembro muito bem de ver um programa de entrevistas na TV Cultura nos anos 1990 em que perguntavam a Dom Paulo Evaristo Arns se as diferenças religiosas não tinham em algum momento tido algum papel na colaboração entre eles. A resposta foi "nunca perguntei a religião deles e eles nunca perguntaram a minha".
Seguramente essa história não foi fácil para os nomes citados. Na verdade, tanto entre católicos, como protestantes e judeus a maioria do clero não queria confusão com a ditadura. Arns, Wright e Sobel eram minoritários em suas religiões. Para essa maioria, eles estavam sendo progressistas demais e comprando brigas desnecessárias. O que nos leva à seguinte questão: sabemos perfeitamente quem são ou foram Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright e Henry Sobel. Seus nomes estão na história do Brasil. E seus oponentes? Sequer sabemos seus nomes.
Essa é uma parte muito boa de ser historiador. Saber olhar para o presente sem olhos imediatistas. No meu caso vejo essa gente histérica em relação a tudo e só consigo ver discursos descontrolados de quem quer ser eleito amanhã mas sequer será lembrado daqui a 20 anos. Não tenho a mais vaga dúvida que em um par de décadas Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Marco Feliciano serão nomes esquecidos, exatamente como a maioria dos religiosos que queria que a morte de Herzog passasse em branco há 40 anos.
Por outro lado, quando conto histórias como a de Herzog meus alunos me olham com cara de "mano, para de inventar, vai". Não por duvidarem dos meus conhecimentos, mas pela incapacidade deles em vislumbrar que o Brasil foi assim em um passado relativamente tão recente. E não tenho a menor dúvida que existirá um dia em que meus netos assistirão uma aula de história falando dessas antas que hoje nos matam de raiva e vão rir muito, achando impossível que alguém um dia tenha levado elas a sério.
Enfim, quando olho para Dom Paulo, Jaime wright e Henry Sobel sinto duas coisas. De um lado a infinita gratidão por quem teve a coragem de enfrentar aquela ditadura horrorosa, e por isso mesmo estarão para sempre entre as pessoas que mais amo no mundo. Mas por outro lado também vejo gente que escreveu seus nomes na história do nosso país por ser diferente do clero instituído. Diferente de gente que naqueles anos tinha poder, mas cujos nomes sequer sabemos hoje em dia. O fato a ser retido é esse: sabemos perfeitamente quem são eles, mas nem sabemos os nomes dos seus críticos histéricos da época.
(este post é uma homenagem a Dom Paulo Evaristo Arns, o maior ídolo que tenho nesta vida. Na minha modesta opinião, o maior brasileiro que já existiu)
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
A janela que Brilhante Ulstra nos oferece sobre o Brasil
Detesto falar sobre o período da ditadura militar. É muito difícil. Sempre é uma mistura de sensações horríveis. Pensar no que meus pais e tios passaram. No absoluto silêncio de todos eles sobre os detalhes do que houve. No que tudo aquilo significou para a criança que eu era. Tudo isso misturado com uma certa culpa de saber que tantos outros passaram por coisas infinitamente piores. Tudo isso é inominável. Nunca deveria ter acontecido. Nem conosco nem com ninguém.
Na semana que vai acabando morreu o Coronel Brilhante Ulstra. O tipo de criatura mais desprezível que essa ditadura produziu. Um torturador e assassino. Lembrei que estava em Montevidéu quando morreu o maior responsável pela ditadura uruguaia, o presidente Juan Maria Bordaberry. Um colunista de jornal disse com toda a propriedade: "morreu cercado pela família e terá enterro digno, tudo o que ele negou a suas vítimas". Racionalmente é isso. Mas quer saber? Não odeio Brilhante Ulstra nem tive grandes sentimentos ao saber de sua morte.
Com todas as dificuldades que vivemos nós acabamos superando aquilo tudo. Tanto que meus irmãos mais novos provavelmente nem saibam do que aconteceu. Meu pai e minha mãe estão vivos até hoje, e com todas as limitações muito humanas que possuem, são responsáveis por eu ser quem sou. Graças a meus méritos e algumas oportunidades únicas que tive acabei fazendo graduação, mestrado e doutorado em História na Unicamp. Tenho casa própria quitada num bairro simples, semelhante àquele em que cresci. Tenho uma filha trabalhadora e guerreira, que ama seu pai e sua mãe, acha sua avó um mito e é muito melhor que eu. Em suma, não me sinto nenhum coitado, muito pelo contrário.
Meu problema com a ditadura mora em outro lugar. E está mais em 2015 que em 1964. Na verdade não é um problema, são dois. O primeiro é ver a relativização da ditadura. A gente vê inúmeros discursos por aí em filmes, jornais, revistas, TV e internet mais ou menos assim "é, a ditadura não era legal, os opositores eram terroristas, vamos condenar todos". Não era nada disso. Quem diz isso está mentindo. Os oposicionistas nunca foram responsáveis pela morte de centenas de inocentes. Pode se discutir o que eles queriam fazer, mas na prática não fizeram nada. Eles nunca ocuparam o Estado. Foram apenas vítimas. Quem matou foram os governantes de então. É uma equiparação absurda: o que efetivamente aconteceu é igualado ao que se supõe que poderia ter acontecido caso pessoas que não fizeram nada tivessem a chance de fazer o que imaginamos que eles fariam. O nome disso é canalhice.
Na verdade essa não é minha maior irritação. Quem defende coisas assim é tão babaca e imbecil que eu nem sei como lidar. Há problemas maiores. O principal é que tem gente hoje que olha para pessoas como Brilhante Ulstra e vê honestidade, coragem, sinceridade, coisas assim. Um membro do Estado que torturou e matou pessoas desarmadas que estavam sob sua custódia vira simbolo de honestidade. Alguém que massacra indefesos vira símbolo de coragem. Quem diz que oprimidos devem ser oprimidos para sempre é simbolo da honestidade. Em suma, Brilhante Ulstra nos mostra os motivos pelos quais existe quem vote e admire um lixo humano como Bolsonaro.
Pois em nosso país não falta quem ache ainda hoje que coragem é atacar os que sempre se deram mal. Essas pessoas olham para evangélicos invadindo terreiros de candomblé e não se importam. Lêem que alguém foi morto porque alguém achou que a pessoa era homossexual e não se incomoda. Ouve histórias de mulheres agredidas e estupradas, lamenta e segue a vida. Pra gente assim, o problema do mundo é que a opressão está pouca. Acha que cristãos heteros brancos e homens têm poucos privilégios. Enquanto existir isso, Brilhante Ulstra estará muito sorridente em algum lugar do inferno.
Na semana que vai acabando morreu o Coronel Brilhante Ulstra. O tipo de criatura mais desprezível que essa ditadura produziu. Um torturador e assassino. Lembrei que estava em Montevidéu quando morreu o maior responsável pela ditadura uruguaia, o presidente Juan Maria Bordaberry. Um colunista de jornal disse com toda a propriedade: "morreu cercado pela família e terá enterro digno, tudo o que ele negou a suas vítimas". Racionalmente é isso. Mas quer saber? Não odeio Brilhante Ulstra nem tive grandes sentimentos ao saber de sua morte.
Com todas as dificuldades que vivemos nós acabamos superando aquilo tudo. Tanto que meus irmãos mais novos provavelmente nem saibam do que aconteceu. Meu pai e minha mãe estão vivos até hoje, e com todas as limitações muito humanas que possuem, são responsáveis por eu ser quem sou. Graças a meus méritos e algumas oportunidades únicas que tive acabei fazendo graduação, mestrado e doutorado em História na Unicamp. Tenho casa própria quitada num bairro simples, semelhante àquele em que cresci. Tenho uma filha trabalhadora e guerreira, que ama seu pai e sua mãe, acha sua avó um mito e é muito melhor que eu. Em suma, não me sinto nenhum coitado, muito pelo contrário.
Meu problema com a ditadura mora em outro lugar. E está mais em 2015 que em 1964. Na verdade não é um problema, são dois. O primeiro é ver a relativização da ditadura. A gente vê inúmeros discursos por aí em filmes, jornais, revistas, TV e internet mais ou menos assim "é, a ditadura não era legal, os opositores eram terroristas, vamos condenar todos". Não era nada disso. Quem diz isso está mentindo. Os oposicionistas nunca foram responsáveis pela morte de centenas de inocentes. Pode se discutir o que eles queriam fazer, mas na prática não fizeram nada. Eles nunca ocuparam o Estado. Foram apenas vítimas. Quem matou foram os governantes de então. É uma equiparação absurda: o que efetivamente aconteceu é igualado ao que se supõe que poderia ter acontecido caso pessoas que não fizeram nada tivessem a chance de fazer o que imaginamos que eles fariam. O nome disso é canalhice.
Na verdade essa não é minha maior irritação. Quem defende coisas assim é tão babaca e imbecil que eu nem sei como lidar. Há problemas maiores. O principal é que tem gente hoje que olha para pessoas como Brilhante Ulstra e vê honestidade, coragem, sinceridade, coisas assim. Um membro do Estado que torturou e matou pessoas desarmadas que estavam sob sua custódia vira simbolo de honestidade. Alguém que massacra indefesos vira símbolo de coragem. Quem diz que oprimidos devem ser oprimidos para sempre é simbolo da honestidade. Em suma, Brilhante Ulstra nos mostra os motivos pelos quais existe quem vote e admire um lixo humano como Bolsonaro.
Pois em nosso país não falta quem ache ainda hoje que coragem é atacar os que sempre se deram mal. Essas pessoas olham para evangélicos invadindo terreiros de candomblé e não se importam. Lêem que alguém foi morto porque alguém achou que a pessoa era homossexual e não se incomoda. Ouve histórias de mulheres agredidas e estupradas, lamenta e segue a vida. Pra gente assim, o problema do mundo é que a opressão está pouca. Acha que cristãos heteros brancos e homens têm poucos privilégios. Enquanto existir isso, Brilhante Ulstra estará muito sorridente em algum lugar do inferno.
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Quando vale a pena comprar briga?
Nasci e cresci em um contexto em que se achava intolerável aceitar quieto os dominantes pisarem nos dominados. Aprendi isso em casa, e o fato de crescer numa cidade operária altamente politizada só acentuou essa característica. Some-se a isso ao ímpeto da juventude e fica fácil entender porque as pessoas que me conheceram há muito tempo pensam em mim como um jovem irritadiço, nervosinho, genioso, sempre comprando briga. Mas o tempo passou. Mês que vem faço 43 anos. Aprendi que uma coisa importante da vida é escolher as batalhas em que entrar.
Uma que eu consigo me desviar sem muito problema é a da indignação seletiva na política. Você sabe do que estou falando. Gente que não liga para a falta de água, para o segredo de justiça que Alckmin consegue para seus erros, para Beto Richa sentando porrada em professor, para o PSDB ser amigo íntimo de Eduardo Cunha mas quer o impeachment da Dilma. Que sequer é acusada de nada. Golpistas que querem derrubar um governo só porque não gostam dele. Perderam a eleição e ao invés de se comportar como qualquer oposição democrática, criticando o que consideram ruim na gestão, querem derrubar uma presidente que sequer é investigada. Pra mim é fácil ignorar isso. Quem pensa esse tipo de coisa só merece pena. Não vale a pena discutir.
Um tipo bem cretino em relação ao qual eu ainda não sei o que fazer é o racista que acredita do fundo da alma que está sitiado por um planeta em que tudo é a favor dos negros. Aquela peça que reclama que não existe o dia da consciência branca, que acha que dizer "fala aí" para o negro que toma umas no bar do lado da casa dele é um passe livre para chamar negros de macacos, já que "tenho amigos negros", e por aí vai. Tudo isso é tão sem sentido que tendo a ver problemas de cognição em quem de fato acredita nisso tendo terminado ao menos o ensino fundamental. Sinceramente, fico confuso por motivos de não entender o que se passa na mente dessas pessoas. Que geralmente usam argumentos tipo "cotas são racismo reverso". É tão ridículo que eu devo confessar que não sei como lidar.
Na linha "ausência de cognição" tem ainda as pessoas que acham que se discutir assuntos como aborto e drogas todo mundo vai abortar e viver chapado 24 horas por dia. Aí são pontos em que eu realmente não consigo entender. A pessoa acha que algo ser liberado significa que todos vão fazer aquilo 24 horas por dia? Sério: quem pode ser tão burro? Você faz todas as coisas que a lei te permite 24 horas por dia? Digamos, você acha que se as drogas forem liberadas todos os médicos estarão chapados? As bebidas alcoolicas sempre foram liberadas, você acha que todo médico está bêbado? E o que você acha do aborto: com todo o respeito, mas você acha que alguém no mundo se importa com sua opinião quando vai abortar? Abortos vão acontecer, independente do que você pense. O que se discute é como e onde, só isso. Lógica básica.
Mas tem outras que já me coçam os dedos. Tipo o homem que quer ensinar as mulheres como ser feministas. Um tipo que você conhece bem também. Começa bancando o compreensivo ("sou simpático à causa", etc.) mas aos poucos começa a resolver ditar ordens sobre como as mulheres devem ou não se manifestar. Aí segue aquele roteiro clássico, que passa pelo desejo sincero, puro e desinteressado de que as feministas parem de odiar homens e acaba desembocando na gritaria contra um tal "femismo" que é a versão do "racismo reverso" que se aplica a mulheres que dizem coisas que o senhor feminista não gosta. O engraçado desse tipo é que ele é tão acostumado a seu lugar privilegiado de poder que muitos desses discursos são sinceros. A pessoa realmente não entende como está sendo autoritária e ladra do protagonismo alheio. Se comporta como o maior babaca do universo achando que está fazendo grande coisa. Supostamente é um "fogo amigo".
Um tipo que já me aborrece mais em particular é o "homofóbico gente boa". Você deve conhecer alguém assim. É aquele que diz coisas tipo "não gosto do Bolsonaro, embora concorde com uma ou outra coisa que ele fala". Como se considera muito gente boa, essa pessoa não quer nem sonhar em ser identificada aos Malafaias e Felicianos, embora vibre de alegria ao ver eles falando mal de gays. É um tipo bem peculiar: detesta gays mas não quer parecer homofóbico. Aí solta umas coisas marotas, tipo "não é que eu goste do Feliciano, mas também olha o que fizeram com ele naquela situação x...". Em suma, pra eles a vítima do mundo não são os que Malafaia e Feliciano querem oprimir, mas os coitadinhos dos pastores milionários. Tem ainda o "não defendo eles, mas o Jean Wyllys, né...", que é basicamente a mesma coisa. Vocês que conhecem minha situação pessoal devem saber o quanto os tipos descritos nos dois últimos parágrafos me deixam livre para usar meus dedos livres para comprar todas as brigas possíveis e imagináveis.
Enfim, a vida está difícil para quem usa o cérebro. Mas vamos sobreviver. Enquanto isso, que tenhamos a sabedoria de escolher as batalhas a lutar.
Uma que eu consigo me desviar sem muito problema é a da indignação seletiva na política. Você sabe do que estou falando. Gente que não liga para a falta de água, para o segredo de justiça que Alckmin consegue para seus erros, para Beto Richa sentando porrada em professor, para o PSDB ser amigo íntimo de Eduardo Cunha mas quer o impeachment da Dilma. Que sequer é acusada de nada. Golpistas que querem derrubar um governo só porque não gostam dele. Perderam a eleição e ao invés de se comportar como qualquer oposição democrática, criticando o que consideram ruim na gestão, querem derrubar uma presidente que sequer é investigada. Pra mim é fácil ignorar isso. Quem pensa esse tipo de coisa só merece pena. Não vale a pena discutir.
Um tipo bem cretino em relação ao qual eu ainda não sei o que fazer é o racista que acredita do fundo da alma que está sitiado por um planeta em que tudo é a favor dos negros. Aquela peça que reclama que não existe o dia da consciência branca, que acha que dizer "fala aí" para o negro que toma umas no bar do lado da casa dele é um passe livre para chamar negros de macacos, já que "tenho amigos negros", e por aí vai. Tudo isso é tão sem sentido que tendo a ver problemas de cognição em quem de fato acredita nisso tendo terminado ao menos o ensino fundamental. Sinceramente, fico confuso por motivos de não entender o que se passa na mente dessas pessoas. Que geralmente usam argumentos tipo "cotas são racismo reverso". É tão ridículo que eu devo confessar que não sei como lidar.
Na linha "ausência de cognição" tem ainda as pessoas que acham que se discutir assuntos como aborto e drogas todo mundo vai abortar e viver chapado 24 horas por dia. Aí são pontos em que eu realmente não consigo entender. A pessoa acha que algo ser liberado significa que todos vão fazer aquilo 24 horas por dia? Sério: quem pode ser tão burro? Você faz todas as coisas que a lei te permite 24 horas por dia? Digamos, você acha que se as drogas forem liberadas todos os médicos estarão chapados? As bebidas alcoolicas sempre foram liberadas, você acha que todo médico está bêbado? E o que você acha do aborto: com todo o respeito, mas você acha que alguém no mundo se importa com sua opinião quando vai abortar? Abortos vão acontecer, independente do que você pense. O que se discute é como e onde, só isso. Lógica básica.
Mas tem outras que já me coçam os dedos. Tipo o homem que quer ensinar as mulheres como ser feministas. Um tipo que você conhece bem também. Começa bancando o compreensivo ("sou simpático à causa", etc.) mas aos poucos começa a resolver ditar ordens sobre como as mulheres devem ou não se manifestar. Aí segue aquele roteiro clássico, que passa pelo desejo sincero, puro e desinteressado de que as feministas parem de odiar homens e acaba desembocando na gritaria contra um tal "femismo" que é a versão do "racismo reverso" que se aplica a mulheres que dizem coisas que o senhor feminista não gosta. O engraçado desse tipo é que ele é tão acostumado a seu lugar privilegiado de poder que muitos desses discursos são sinceros. A pessoa realmente não entende como está sendo autoritária e ladra do protagonismo alheio. Se comporta como o maior babaca do universo achando que está fazendo grande coisa. Supostamente é um "fogo amigo".
Um tipo que já me aborrece mais em particular é o "homofóbico gente boa". Você deve conhecer alguém assim. É aquele que diz coisas tipo "não gosto do Bolsonaro, embora concorde com uma ou outra coisa que ele fala". Como se considera muito gente boa, essa pessoa não quer nem sonhar em ser identificada aos Malafaias e Felicianos, embora vibre de alegria ao ver eles falando mal de gays. É um tipo bem peculiar: detesta gays mas não quer parecer homofóbico. Aí solta umas coisas marotas, tipo "não é que eu goste do Feliciano, mas também olha o que fizeram com ele naquela situação x...". Em suma, pra eles a vítima do mundo não são os que Malafaia e Feliciano querem oprimir, mas os coitadinhos dos pastores milionários. Tem ainda o "não defendo eles, mas o Jean Wyllys, né...", que é basicamente a mesma coisa. Vocês que conhecem minha situação pessoal devem saber o quanto os tipos descritos nos dois últimos parágrafos me deixam livre para usar meus dedos livres para comprar todas as brigas possíveis e imagináveis.
Enfim, a vida está difícil para quem usa o cérebro. Mas vamos sobreviver. Enquanto isso, que tenhamos a sabedoria de escolher as batalhas a lutar.
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Uma infância na ditadura
Há quase 10 anos não tenho qualquer contato com meu pai. Por motivos que não vêm ao caso aqui. Mas mês passado teve o dia dos pais, eu quis de alguma forma lembrar a data. Me ocorreu essa foto aí, dele comigo logo após eu nascer, em 1972. Nunca tinha visto a foto, minha mãe tinha me mostrado uns dias antes. Postei no facebook. Meu tio, colega de trabalho dele na Companhia Siderúrgica Nacional, irmão da minha mãe, fez um comentário sobre como aqueles tempos foram duros pra nós. Arrematou com um "sobrevivemos". Que me doeu no fundo da alma, pois eu sabia exatamente do que ele falava.
Ninguém da minha família nunca deu um tiro na vida. Nunca foram de nenhuma organização. Naqueles anos duros eles eram apenas uma família operária tentando reconstruir a vida após a morte prematura do meu avô. Eram, e continuam sendo, uma gente com aquele senso de dignidade que quem nasceu na classe trabalhadora conhece perfeitamente. Uma coisa meio "temos de enfrentar o mundo. que sejamos honestos e corretos ao menos. Se perdermos, ao menos teremos a consciência tranquila". Em suma, pessoas absolutamente inofensivas que só queriam uma vida melhor.
Mas eles todos cometeram um crime monstruoso: não gostavam de ditadura. Queriam um país democrático. E no auge do regime, aproximadamente entre 1968 e 1974, isso era uma coisa intolerável. A ditadura naquele momento não tolerava ninguém, absolutamente ninguém, que estivesse em seu caminho. Sem entrar em muitos detalhes, meu pai e meu tio foram presos. Meu pai nunca falou sobre isso, com duas exceções. Uma vez me disse que após ser preso o apartamento foi revirado pelos militares, que mexeram em todos os seus livros. Acrescentou: "nunca vi ter tanto medo de livro como aquele pessoal da ditadura". Na outra, disse que chegou a pegar o formulário para solicitar indenização pelo que passou, mas simplesmente não conseguiu dar conta das lembranças dolorosas e desistiu. Achou melhor deixar pra lá.
Um par de anos atrás eu estava com um problema pessoal que não vem ao caso. Minha prima me levou a um tratamento alternativo. Não lembro o nome do tratamento, nem da pessoa, só lembro que funcionou perfeitamente. Mas em um certo momento a terapeuta falou assim: "senti algo muito forte aqui. sua família teve problemas com a ditadura, não foi? eles tinham muito medo. você cresceu num ambiente de medo por causa da ditadura. Seus pais tinham medo que você sofresse por isso. E esse clima te afetou". Detalhe: eu nunca tinha visto a pessoa antes desse dia, e não tinha mencionado vagamente o assunto.
O tempo passou, a ditadura acabou sem deixar saudades em ninguém. Aí de repente vemos pessoas em 2015, muitas das quais sequer eram nascidas na época, culpando os presos, torturados e mortos pelos que sofreram. O que não tem nenhuma diferença para quem diz que a mulher tal pediu para ser estuprada, já que estava de minissaia. Nos dois casos se culpa a vítima. Pessoas burras, mal intencionadas, ou apenas ignorantes mesmo, olham para os que sofreram com aquilo tudo, vêem todos como versões nacionais do Stalin e concluem que elas passaram um período difícil por culpa delas. Na melhor das hipóteses eram idiotas. Na pior, eram terroristas que queriam impor uma ditadura terrível no país.
A parte que talvez seja mais dolorosa é que muita gente que diz isso são jovens que não viveram a época. Não sabem que era um regime ditatorial assassino apoiado por empresários e pelos EUA. Por desinformação e burrice acreditam em gente mal intencionada que pinta a ditadura como salvadora da liberdade contra uma horda de comunistas que matavam inocentes. Ainda não consegui decidir se tenho raiva ou pena dessas pessoas. Não consigo imaginar como alguém com um sistema cognitivo saudável possa achar coisas assim.
A parte que me irrita em particular é essas pessoas serem assim porque o PT está no governo. Não porque eu seja eleitor da Dilma, mas porque mostra o quanto de oportunismo há nisso. Quem gera esses discursos no fundo só quer caracterizar a Dilma como uma comunista terrorista, e para isso joga no lixo a reputação de incontáveis pessoas que sofreram barbaramente tentando construir um país melhor para seus filhos. E mesmo que você olhe a coisa sob o ângulo do "eles queriam implantar uma ditadura" o argumento não fica em pé 2 segundos. Afinal você já viu alguém ser condenado por algo que quis fazer? Claro que não. O que essas pessoas queriam fazer não importa. Não aconteceu. Não foram elas que mataram centenas de pessoas. Foi a ditadura.
Na verdade a parte mais deprimente é que eu tenha ainda de falar sobre isso em pleno 2015. Não devemos esquecer a ditadura, mas ela só deveria aparecer quando formos punir seus assassinos ou lembrar de algo para que nunca mais se repita. É inacreditável ter de lidar com pessoas que acham que o grande problema da ditadura eram os comunistas terroristas, e não termos tido um Estado que matava seus cidadãos. Mas nosso desprezo da história misturado com a total insanidade do nosso debate político nos levou ao ponto de ver gente culpando as pessoas assassinadas e agredidas pelo Estado por terem passado por isso.
sexta-feira, 2 de outubro de 2015
Notas sobre o sofrimento alheio
"tudo bem ser chamada de sapatão na rua. não apanhando tudo ok".
Ouvi essa frase ontem, de alguém que eu gosto muito. No fim da conversa ela acabou ficando brava comigo. Pela primeira vez em anos e anos de amizade ela ficou puta comigo. Pois me deixei levar pelo primeiro impulso, que foi dizer "caralho, tudo bem ser chamada de sapatão é teu cu, que absurdo". Hoje não conseguia pensar em outra coisa. Um pouco por estar chateado com alguém que gosto muito estar zebrada comigo. Mas principalmente por outra coisa.
Meu discurso era o discurso acadêmico de quem vive no ar condicionado. Mais que isso, era o discurso de quem não sabe o que é a experiência concreta de viver o que ela vive. E querendo ainda por cima normatizar suas atitudes e decidir como ela deveria agir. Não sei se ela se deu conta, mas a raiva dela passou muito por aí. Por "mano, quem você pensa que é pra querer me dar aula de como combater o preconceito contra lésbicas? Chegou atrasado e quer sentar na janela?".
Pior que esse foi daqueles momentos horríveis em que você se vê fazendo algo que teoricamente detesta. Como homem branco hetero jamais me identificaria como membro dos movimentos feminista, negro e LGBT. Simpatizo sim, até o fundo da alma. Mas me recuso a qualquer sugestão de que eu possa falar em nome dessas pessoas. Sei o quanto isso é autoritário e mantenedor do eterno roubo de protagonismo dos subalternos. Sei perfeitamente que meu papel nisso é tentar entender melhor a experiência desses grupos. Sabendo que nunca chegarei lá, mas fazendo o possível para tentar avançar nisso.
Aí ontem dei aula sobre Edward Palmer Thompson. Meu ídolo supremo entre os historiadores. O cara que enxotou a todos nós do mundo dos modelos e nos mandou entender a experiência concreta da subalternidade. Tudo lindo. Mas duas taças de vinho e 15 minutos de papo depois tava lá eu tentando ensinar a uma lésbica como uma lésbica deve lutar contra a opressão. Supostamente eu sabia melhor que ela. Não acho isso, mas me comportei como se achasse, ela entendeu assim e tem toda a razão.
Quando escrevi o primeiro post na volta do blog argumentei que todos nós somos racistas, machistas e homofóbicos. Somos mesmo. Fomos criados em um mundo assim, com esses valores. Mas mantenho o que disse naquela ocasião. Termos nascido e crescido num mundo assim é um dado. Nada vai mudar o passado. A escolha é em relação ao futuro. Podemos julgar o sofrimento alheio, minimizando e chamando de mimimi. Ou podemos tentar aprender com a experiência dos que sofrem como é viver um cotidiano opressor. Essa parte é nossa escolha. E não há desculpa para escolher o lado opressor nesse caso.
Ouvi essa frase ontem, de alguém que eu gosto muito. No fim da conversa ela acabou ficando brava comigo. Pela primeira vez em anos e anos de amizade ela ficou puta comigo. Pois me deixei levar pelo primeiro impulso, que foi dizer "caralho, tudo bem ser chamada de sapatão é teu cu, que absurdo". Hoje não conseguia pensar em outra coisa. Um pouco por estar chateado com alguém que gosto muito estar zebrada comigo. Mas principalmente por outra coisa.
Meu discurso era o discurso acadêmico de quem vive no ar condicionado. Mais que isso, era o discurso de quem não sabe o que é a experiência concreta de viver o que ela vive. E querendo ainda por cima normatizar suas atitudes e decidir como ela deveria agir. Não sei se ela se deu conta, mas a raiva dela passou muito por aí. Por "mano, quem você pensa que é pra querer me dar aula de como combater o preconceito contra lésbicas? Chegou atrasado e quer sentar na janela?".
Pior que esse foi daqueles momentos horríveis em que você se vê fazendo algo que teoricamente detesta. Como homem branco hetero jamais me identificaria como membro dos movimentos feminista, negro e LGBT. Simpatizo sim, até o fundo da alma. Mas me recuso a qualquer sugestão de que eu possa falar em nome dessas pessoas. Sei o quanto isso é autoritário e mantenedor do eterno roubo de protagonismo dos subalternos. Sei perfeitamente que meu papel nisso é tentar entender melhor a experiência desses grupos. Sabendo que nunca chegarei lá, mas fazendo o possível para tentar avançar nisso.
Aí ontem dei aula sobre Edward Palmer Thompson. Meu ídolo supremo entre os historiadores. O cara que enxotou a todos nós do mundo dos modelos e nos mandou entender a experiência concreta da subalternidade. Tudo lindo. Mas duas taças de vinho e 15 minutos de papo depois tava lá eu tentando ensinar a uma lésbica como uma lésbica deve lutar contra a opressão. Supostamente eu sabia melhor que ela. Não acho isso, mas me comportei como se achasse, ela entendeu assim e tem toda a razão.
Quando escrevi o primeiro post na volta do blog argumentei que todos nós somos racistas, machistas e homofóbicos. Somos mesmo. Fomos criados em um mundo assim, com esses valores. Mas mantenho o que disse naquela ocasião. Termos nascido e crescido num mundo assim é um dado. Nada vai mudar o passado. A escolha é em relação ao futuro. Podemos julgar o sofrimento alheio, minimizando e chamando de mimimi. Ou podemos tentar aprender com a experiência dos que sofrem como é viver um cotidiano opressor. Essa parte é nossa escolha. E não há desculpa para escolher o lado opressor nesse caso.
sábado, 26 de setembro de 2015
Por que existem historiadores?
Antes de responder à pergunta proposta no título, vou dizer algumas coisas para as quais não servimos. Não damos lições para o futuro. O nome disso é cartomante. Não damos exemplos para a juventude se espelhar. O nome disso é família. Não somos juízes do passado. O nome disso é burro, idiota, ignorante ou débil mental. Pode escolher qualquer um que está valendo. Quem diz essas coisas não sou eu. São historiadores muito melhores que eu jamais serei, e que qualquer aspirante a historiador lê no primeiro semestre de graduação.
Uma das nossas principais funções é saber que as coisas não acontecem no vazio. Todas elas têm seu contexto. Por isso, e não por sermos comunistas é que abominamos o que uma certa direita anda fazendo com nossa profissão. Pegam coisas que aconteceram décadas atrás e as analisam como se elas tivessem acontecido hoje. Aí acham que Hitler era socialista, Dilma terrorista sem nunca ter participado de qualquer ação armada (mas por algum motivo Aloysio Nunes Ferreira, braço direito de Marighella e participante de várias ações não era), só o comunismo matou, enquanto o capitalismo sempre foi gente boa, e por aí vai.
Uma coisa muito difícil é saber até onde vão a burrice e a ignorância e onde começa a má fé. As duas coisas estão tão mescladas nesse combo de imbecilidade que é difícil discernir. E honestamente eu nem tenho interesse em fazer isso. Só estava pensando aqui em alguns contra-exemplos relacionados aos liberais. Sim, pois quem fala isso tudo aí se define como liberal, defensor da liberdade e da ausência do Estado na economia. Vamos então olhar para o passado liberal com os mesmos olhos deles.
Ao longo de todo o século XIX os liberais não queriam ouvir falar em povo votando. Fizeram tudo o que puderam para evitar o voto universal. Nos EUA e no Brasil defenderam a escravidão. Foram os esteios ideológicos da Primeira República, dominada por coronéis e voto de cabresto, em que o Estado usava todos os recursos que tinha para garantir artificialmente o preço do café. Apoiaram o golpe de 64 assim como inúmeras outras ditaduras latino americanas. Sabe quem era ministro do governo Castello Branco? ele mesmo, Roberto Campos, ídolo dos economistas liberais brasileiros.
Não julgo o liberalismo enquanto visão de mundo por nada disso. Primeiro pelo simples fato de saber que conceitos se materializam na ação de pessoas, necessariamente imperfeitas. Mais importante, porque sei que visões de mundo significam coisas diferentes ao longo do tempo. Não acho que o PSDB defende a escravidão porque sei que ser liberal no Brasil do século XIX não é a mesma coisa que ser liberal no Brasil de hoje. E finalmente, porque estudei. E não foi pouco. Caminho para um quarto de século dedicado à história. Não sou simplesmente um canalha ignorante que pensa que a história é apenas um meio para agredir seus adversários políticos. A história é minha vida.
Mas tem algo mais que eu aprendi com a história. E logo no primeiro semestre de graduação. Ela não é o estudo do passado, mas da mudança. Pois as coisas sempre mudam. Pior pior que as coisas pareçam, por mais negro que seja o cenário, por mais que pareçamos estar prestes a ser engolidos pela ignorância, a burrice e o mau caratismo, tudo é temporário. O sol nasce todo dia para todos. Fiquem atentos e fortes e se aguentem aí.
Uma das nossas principais funções é saber que as coisas não acontecem no vazio. Todas elas têm seu contexto. Por isso, e não por sermos comunistas é que abominamos o que uma certa direita anda fazendo com nossa profissão. Pegam coisas que aconteceram décadas atrás e as analisam como se elas tivessem acontecido hoje. Aí acham que Hitler era socialista, Dilma terrorista sem nunca ter participado de qualquer ação armada (mas por algum motivo Aloysio Nunes Ferreira, braço direito de Marighella e participante de várias ações não era), só o comunismo matou, enquanto o capitalismo sempre foi gente boa, e por aí vai.
Uma coisa muito difícil é saber até onde vão a burrice e a ignorância e onde começa a má fé. As duas coisas estão tão mescladas nesse combo de imbecilidade que é difícil discernir. E honestamente eu nem tenho interesse em fazer isso. Só estava pensando aqui em alguns contra-exemplos relacionados aos liberais. Sim, pois quem fala isso tudo aí se define como liberal, defensor da liberdade e da ausência do Estado na economia. Vamos então olhar para o passado liberal com os mesmos olhos deles.
Ao longo de todo o século XIX os liberais não queriam ouvir falar em povo votando. Fizeram tudo o que puderam para evitar o voto universal. Nos EUA e no Brasil defenderam a escravidão. Foram os esteios ideológicos da Primeira República, dominada por coronéis e voto de cabresto, em que o Estado usava todos os recursos que tinha para garantir artificialmente o preço do café. Apoiaram o golpe de 64 assim como inúmeras outras ditaduras latino americanas. Sabe quem era ministro do governo Castello Branco? ele mesmo, Roberto Campos, ídolo dos economistas liberais brasileiros.
Não julgo o liberalismo enquanto visão de mundo por nada disso. Primeiro pelo simples fato de saber que conceitos se materializam na ação de pessoas, necessariamente imperfeitas. Mais importante, porque sei que visões de mundo significam coisas diferentes ao longo do tempo. Não acho que o PSDB defende a escravidão porque sei que ser liberal no Brasil do século XIX não é a mesma coisa que ser liberal no Brasil de hoje. E finalmente, porque estudei. E não foi pouco. Caminho para um quarto de século dedicado à história. Não sou simplesmente um canalha ignorante que pensa que a história é apenas um meio para agredir seus adversários políticos. A história é minha vida.
Mas tem algo mais que eu aprendi com a história. E logo no primeiro semestre de graduação. Ela não é o estudo do passado, mas da mudança. Pois as coisas sempre mudam. Pior pior que as coisas pareçam, por mais negro que seja o cenário, por mais que pareçamos estar prestes a ser engolidos pela ignorância, a burrice e o mau caratismo, tudo é temporário. O sol nasce todo dia para todos. Fiquem atentos e fortes e se aguentem aí.
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
Como viciar o debate sobre cidadania e direitos humanos
Quem enxerga um palmo à frente do nariz está plenamente ciente que essa brigalhada governo x oposição não é a questão central do momento. O que vemos é um amplo, e nem sempre explícito, debate sobre direitos humanos, cidadania e definição do que é uma sociedade democrática. Basta ver como inúmeros temas que estão discutindo tem essa questão como pano de fundo: cotas, violencia policial, direitos civis aos homossexuais, respeito á diversidade religiosa, violência de gênero, etc. No fundo todos esses debates são o mesmo.
Me parece claro que a história joga a favor dos defensores dos direitos humanos. Seus detratores têm em mente um mundo que já acabou se é que um dia existiu. E hoje todos podem falar o que querem. Não dá pra ficar tomando atitudes autoritárias e imaginar que ninguém vai perceber ou se manifestar. O mundo mudou, ainda que muitos não tenham percebido. Sei que é difícil acreditar no que estou dizendo quando se olha à volta e vê essa montoeira de lixo que nos cerca. Mas já disse antes e repito: essas pessoas estão histéricas justamente por perceber que a derrota é inevitável. Tentam ganhar no grito como último recurso.
Uma das estratégias desesperadas é criar um fantasma, utilizando um recurso conhecido no estudo da lógica como "falácia do espantalho". Um recurso argumentativo muito tosco, mas que engana os mais desatentos ou burros. No caso consiste em criar uma caricatura: o bobo alegre que acha que "bandido" é tudo gente boa (mas como são hipócritas, dizem que acham isso só que não levam um único bandido pra morar com eles, veja que absurdo), que não conhece a realidade, que quer destruir a família brasileira e sacrifica 800 animais por dia em terreiros de candomblé.
Tenho quase 43 anos. Nasci e cresci numa família esquerdista. Me formei politicamente numa cidade metalúrgica com um forte sindicato de esquerda e onde o eleitorado brizolista era franca maioria. Daqui a pouco farei um quarto de século vivendo o cotidiano dos cursos de história. Em suma, conheci trilhões de pessoas que defendem direitos humanos e cidadania para todos. Nunca ouvi uma única vez alguém defendendo ideias como as que o espantalho reaça defende. Nunca ouvi político ou intelectual de esquerda dizendo isso. Pode ser que haja quem pense essas coisas de verdade (se há quem vote no Bolsonaro, tudo pode acontecer) mas impossível dizer que são representativos do que pensamos, tanto em termos quantitativos como qualitativos.
Mas não interessa: diariamente essa caricatura aparece, podendo ou não ser associada à esquerda ou, imaginem, ao comunismo (não precisa ser de esquerda pra defender nada disso, conheço dezenas de eleitores do Aécio que pensam exatamente como eu nessas questões). Às vezes me pergunto como alguém pode ter ideias tão toscas e sem sentido ou vínculo com a realidade. Acredito que muitos são burros mesmo. Existem pessoas burras, não tem jeito. Há muitos que são apenas ignorantes. Nem conhecem gente de esquerda mas imaginam que somos como aparecemos na Veja. Essas coisas existem. Mas não é só isso.
Mas tem o tipo cínico também. Aquela pessoa que sabe perfeitamente que adora o governo carioca, pois prefere mil vezes ir a uma praia só com gente branca e dourada do que em uma com negros e pobres. A pessoa que acha o Malafaia meio desagradável mas se incomoda muito mais com um casal gay se beijando na rua que com 20 mil assassinatos homofóbicos. Aquele cidadão de bem que diz "não voto no Bolsonaro, mas ele é corajoso, fala umas coisas que ninguém diz". A pessoa que não entrou no curso que queria e bota a culpa nas cotas. E por aí vai. Só que ela não quer confessar seus reais pensamentos. Sabe que vai soar mal e faria cair sua máscara de pessoa legal, bem pensante, etc.
Aí cria esse recurso lógico em que no fim das contas ela está apenas se defendendo, quando na verdade está oprimindo quem sempre se fodeu. Mas nesse discurso ela pode evitar assumir que não gosta de pobre, que é racista, misógino e homofóbico, etc. Ela não é nada disso. Ela só é contra esse pessoalzinho de esquerda que quer entregar o mundo na mão dos bandidos, bando de hipócritas. Ele só quer garantir que o mundo não continue dominados por bichas histéricas, feminazis e coisas do tipo. Enfim, um pobre coitado sitiado por uma multidão de carniceiros, apoiados pela esquerda, pela mídia, pelo Foro de São Paulo e demais delírios do tipo.
Me parece claro que a história joga a favor dos defensores dos direitos humanos. Seus detratores têm em mente um mundo que já acabou se é que um dia existiu. E hoje todos podem falar o que querem. Não dá pra ficar tomando atitudes autoritárias e imaginar que ninguém vai perceber ou se manifestar. O mundo mudou, ainda que muitos não tenham percebido. Sei que é difícil acreditar no que estou dizendo quando se olha à volta e vê essa montoeira de lixo que nos cerca. Mas já disse antes e repito: essas pessoas estão histéricas justamente por perceber que a derrota é inevitável. Tentam ganhar no grito como último recurso.
Uma das estratégias desesperadas é criar um fantasma, utilizando um recurso conhecido no estudo da lógica como "falácia do espantalho". Um recurso argumentativo muito tosco, mas que engana os mais desatentos ou burros. No caso consiste em criar uma caricatura: o bobo alegre que acha que "bandido" é tudo gente boa (mas como são hipócritas, dizem que acham isso só que não levam um único bandido pra morar com eles, veja que absurdo), que não conhece a realidade, que quer destruir a família brasileira e sacrifica 800 animais por dia em terreiros de candomblé.
Tenho quase 43 anos. Nasci e cresci numa família esquerdista. Me formei politicamente numa cidade metalúrgica com um forte sindicato de esquerda e onde o eleitorado brizolista era franca maioria. Daqui a pouco farei um quarto de século vivendo o cotidiano dos cursos de história. Em suma, conheci trilhões de pessoas que defendem direitos humanos e cidadania para todos. Nunca ouvi uma única vez alguém defendendo ideias como as que o espantalho reaça defende. Nunca ouvi político ou intelectual de esquerda dizendo isso. Pode ser que haja quem pense essas coisas de verdade (se há quem vote no Bolsonaro, tudo pode acontecer) mas impossível dizer que são representativos do que pensamos, tanto em termos quantitativos como qualitativos.
Mas não interessa: diariamente essa caricatura aparece, podendo ou não ser associada à esquerda ou, imaginem, ao comunismo (não precisa ser de esquerda pra defender nada disso, conheço dezenas de eleitores do Aécio que pensam exatamente como eu nessas questões). Às vezes me pergunto como alguém pode ter ideias tão toscas e sem sentido ou vínculo com a realidade. Acredito que muitos são burros mesmo. Existem pessoas burras, não tem jeito. Há muitos que são apenas ignorantes. Nem conhecem gente de esquerda mas imaginam que somos como aparecemos na Veja. Essas coisas existem. Mas não é só isso.
Mas tem o tipo cínico também. Aquela pessoa que sabe perfeitamente que adora o governo carioca, pois prefere mil vezes ir a uma praia só com gente branca e dourada do que em uma com negros e pobres. A pessoa que acha o Malafaia meio desagradável mas se incomoda muito mais com um casal gay se beijando na rua que com 20 mil assassinatos homofóbicos. Aquele cidadão de bem que diz "não voto no Bolsonaro, mas ele é corajoso, fala umas coisas que ninguém diz". A pessoa que não entrou no curso que queria e bota a culpa nas cotas. E por aí vai. Só que ela não quer confessar seus reais pensamentos. Sabe que vai soar mal e faria cair sua máscara de pessoa legal, bem pensante, etc.
Aí cria esse recurso lógico em que no fim das contas ela está apenas se defendendo, quando na verdade está oprimindo quem sempre se fodeu. Mas nesse discurso ela pode evitar assumir que não gosta de pobre, que é racista, misógino e homofóbico, etc. Ela não é nada disso. Ela só é contra esse pessoalzinho de esquerda que quer entregar o mundo na mão dos bandidos, bando de hipócritas. Ele só quer garantir que o mundo não continue dominados por bichas histéricas, feminazis e coisas do tipo. Enfim, um pobre coitado sitiado por uma multidão de carniceiros, apoiados pela esquerda, pela mídia, pelo Foro de São Paulo e demais delírios do tipo.
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Rumo ao fascismo
Não gosto nem um pouco de uma coisa que apareceu nos últimos anos, de chamar tudo o que não gostamos de "fascismo". E não é só frescura de historiador: o nazi-fascismo foi algo muito específico e sempre achei, e continuo achando, que sair por aí usando esse nome pra tudo é banalizar uma experiência horrível que espero que nunca mais aconteça.
Mas hoje dei uma aula sobre o assunto. Enquanto falava não conseguia parar de ver paralelismos com certas coisas que vemos todo dia. Aquele mesmo amor por um passado idealizado que nunca existiu em que não existiam homossexuais, em que todos eram brancos lindos, em que não havia trânsito ou violência, em que as mulheres eram submissas. Enfim, um mundo em que os subalternos aceitavam passivamente seu papel secundário. Isso NUNCA existiu. Mas era o modelo desse regime, assim como é o dos eleitores dos Bolsonaros da vida (assim como o dos que dizem coisas tipo "não voto nele, mas concordo com umas coisas", enfim, o bolsonarismo travestido de "sou um cara legal, pago meus impostos", blablabla).
E o choque foi ainda mais brutal por causa do público que me ouvia. Meus alunos são nordestinos, a maioria de origem humilde, muitos não são brancos, não poucos são homossexuais, a maioria é eleitora do PT. Ou seja, eles são os típicos alvos das versões repaginadas dos amantes do Mussolini. Simplesmente por existir e serem quem são. São meninos e meninas lutando para ter uma vida melhor que a de seus pais, algo que eu sei exatamente como é, e que são demonizados pelo simples fato de não se encaixarem num modelo absolutamente escroto e excludente em que só é legal quem é homem branco hetero e reaça.
Nem preciso dizer o quanto não me identifico com nada disso. Nasci e cresci com todo o orgulho do mundo numa família operária, neto de camponeses analfabetos. À minha volta todo mundo era assim. Pessoas que vieram lá de baixo e tentavam dar a seus filhos uma vida que eles nunca puderam ter. Minha experiência de vida foi ver aquele monte de operários de mãos grossas indo votar no Brizola. Então esse mundo de tons fascistas não me pertence. O que não quer dizer que eu não conviva com ele. Afinal, ser de um país neutro não te impede de ser baleado numa guerra.
Pois essas coisas nos cercam diariamente. Nos comentários de notícias, nos ônibus, no comércio, não há um dia em que você não se sinta violentado por pessoas que querem que os subalternos se fodam. E a maior loucura de todas é que os autores são subalternos também. Que o cara que mora nos Jardins ou no Leblon se sinta incomodado pela ascensão de grupos que historicamente nunca tiveram voz é algo que seria de se esperar. É o papel deles, é o ponto de vista classista, egoísta e babaca deles. Não me incomoda ver essas pessoas odiando ciclofaixa, faixa exclusiva para ônibus, redução da velocidade máxima no trânsito. Todos eles tem carrões. Pra eles tudo isso são incômodos. Ok.
Foda mesmo é ver gente classe média ou pobre concordando com isso tudo. Pobre imbecil achando que as pessoas deveriam se armar, sendo que ele é um alvo em potencial. Classe média idiota que não quer pagar impostos mas reclama do governo por não proporcionar serviços de nível escandinavo. Pior: toda essa gente acaba achando que a vida é uma droga e a culpa é de quem vota no PT. Em sua insanidade misturam PT, movimento LGBT, feminismo, cotas, ciclofaixa e tudo o que eles não gostam. Chamam isso de comunismo. Se sentem oprimidos que precisam de um libertador que os salve.
O que descrevi no último parágrafo foi o sentimento que gerou Hitler e Mussolini. Não estou dizendo que o que vivemos levará a isso. Mas quem estuda história sabe: o que vivemos hoje é um convite ao aparecimento de alguém desse tipo. Você conhece gente assim. E sabe que não são poucos. Não acho que teremos fascismo por aqui. Mas que o clima é muito favorável ao surgimento de um Mussolini da vida, isso é.
Mas hoje dei uma aula sobre o assunto. Enquanto falava não conseguia parar de ver paralelismos com certas coisas que vemos todo dia. Aquele mesmo amor por um passado idealizado que nunca existiu em que não existiam homossexuais, em que todos eram brancos lindos, em que não havia trânsito ou violência, em que as mulheres eram submissas. Enfim, um mundo em que os subalternos aceitavam passivamente seu papel secundário. Isso NUNCA existiu. Mas era o modelo desse regime, assim como é o dos eleitores dos Bolsonaros da vida (assim como o dos que dizem coisas tipo "não voto nele, mas concordo com umas coisas", enfim, o bolsonarismo travestido de "sou um cara legal, pago meus impostos", blablabla).
E o choque foi ainda mais brutal por causa do público que me ouvia. Meus alunos são nordestinos, a maioria de origem humilde, muitos não são brancos, não poucos são homossexuais, a maioria é eleitora do PT. Ou seja, eles são os típicos alvos das versões repaginadas dos amantes do Mussolini. Simplesmente por existir e serem quem são. São meninos e meninas lutando para ter uma vida melhor que a de seus pais, algo que eu sei exatamente como é, e que são demonizados pelo simples fato de não se encaixarem num modelo absolutamente escroto e excludente em que só é legal quem é homem branco hetero e reaça.
Nem preciso dizer o quanto não me identifico com nada disso. Nasci e cresci com todo o orgulho do mundo numa família operária, neto de camponeses analfabetos. À minha volta todo mundo era assim. Pessoas que vieram lá de baixo e tentavam dar a seus filhos uma vida que eles nunca puderam ter. Minha experiência de vida foi ver aquele monte de operários de mãos grossas indo votar no Brizola. Então esse mundo de tons fascistas não me pertence. O que não quer dizer que eu não conviva com ele. Afinal, ser de um país neutro não te impede de ser baleado numa guerra.
Pois essas coisas nos cercam diariamente. Nos comentários de notícias, nos ônibus, no comércio, não há um dia em que você não se sinta violentado por pessoas que querem que os subalternos se fodam. E a maior loucura de todas é que os autores são subalternos também. Que o cara que mora nos Jardins ou no Leblon se sinta incomodado pela ascensão de grupos que historicamente nunca tiveram voz é algo que seria de se esperar. É o papel deles, é o ponto de vista classista, egoísta e babaca deles. Não me incomoda ver essas pessoas odiando ciclofaixa, faixa exclusiva para ônibus, redução da velocidade máxima no trânsito. Todos eles tem carrões. Pra eles tudo isso são incômodos. Ok.
Foda mesmo é ver gente classe média ou pobre concordando com isso tudo. Pobre imbecil achando que as pessoas deveriam se armar, sendo que ele é um alvo em potencial. Classe média idiota que não quer pagar impostos mas reclama do governo por não proporcionar serviços de nível escandinavo. Pior: toda essa gente acaba achando que a vida é uma droga e a culpa é de quem vota no PT. Em sua insanidade misturam PT, movimento LGBT, feminismo, cotas, ciclofaixa e tudo o que eles não gostam. Chamam isso de comunismo. Se sentem oprimidos que precisam de um libertador que os salve.
O que descrevi no último parágrafo foi o sentimento que gerou Hitler e Mussolini. Não estou dizendo que o que vivemos levará a isso. Mas quem estuda história sabe: o que vivemos hoje é um convite ao aparecimento de alguém desse tipo. Você conhece gente assim. E sabe que não são poucos. Não acho que teremos fascismo por aqui. Mas que o clima é muito favorável ao surgimento de um Mussolini da vida, isso é.
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Crise e histeria: quando gente boa opta por se tornar massa de manobra
Tenho falado bem menos de política do que normalmente faço, e por dois motivos. O primeiro é que o cenário deste momento é tão deprimente que sequer dá vontade de falar alguma coisa. O segundo é que nesse contexto eu percebo que 99% dos textos que leio, quase todos escritos por pessoas com alto nível educacional e muito politizadas, lêem a situação pelo ângulo de um militante secundarista. Os governistas olham para o outro lado e só vêem uma coisa: golpismo. Os oposicionistas quando fazem o mesmo só enxergam uma coisa: corrupção. Triste ver gente lida por vezes por milhares de pessoas olhando para um cenário tão complexo com um olhar tão rasteiro.
O governo se beneficia da existência desses blogs todos fazendo parecer que qualquer pessoa que critica o governo quer um golpe. Claro: pregar "golpista" na testa de QUALQUER pessoa que faz QUALQUER crítica ao governo é um jeito de desqualificar qualquer uma dessas críticas. Para quem está no poder sempre é bom que não falte quem acredite que o governo não tem culpa de nada, que tudo é a crise de 2008, que Zé Dirceu é um mártir, que estão querendo derrubar Dilma porque ela investiga a corrupção, etc. Enfim, o governo não erra e quem não gosta é golpista.
Por outro lado, a oposição também se beneficia dessa visão extremamente primária de que todos os problemas do Brasil derivam de termos um governo corrupto (ou, numa versão menos péssima, mal administrado). Aí é o contrário: a oposição é honesta, nunca existiu crise em 2008, de forma que os problemas atuais são todos do governo, o PT é uma quadrilha assaltando os cofres públicos, e por isso estamos com problemas econômicos, etc. Em suma, para a oposição é excelente esse clima de histeria. E a grande mídia, naturalmente, cumpre seu papel histórico ao fomentar esse clima.
Me impressiona particularmente ver quanta gente se dispõe voluntariamente a ser otário a ponto de ser massa de manobra desse pessoal. Pois é exatamente disso que se trata. Ao aceitar alegremente o convite de olhar para um contexto altamente complexo com o olhar de um militante secundarista, essas pessoas todas nada mais fazem que se tornar fantoches a serviços do interesse alheio. Interesses que, em sua histeria, eles nem percebem quais são. Como diria um professor que tive na faculdade, nem sabem em que molho estão sendo comidos.
Os que abraçam a ideia pífia de que todos os que criticam Dilma são golpistas estão avalizando os cortes absurdos feitos pelo governo em áreas como a educação. As pessoas que trabalham em universidade federal já estão plenamente cientes que devem estar satisfeitos se tiverem calças para vestir em 2018. Alunos estão perdendo bolsas, pagamentos estão atrasando, verbas cortadas por todos os lados... mas vá falar isso: sempre aparece alguém para te lembrar que você está repetindo o discurso da "mídia golpista". A histeria antigolpista legitima qualquer ação do governo.
Do lado oposicionista o mais inacreditável é ver como há gente de classe média comprando insanamente um discurso que só beneficia a elite e posando de politizada por causa disso. Pelo que me contam, hoje um editorial da Folha sugere duas alternativas a Dilma: renúncia ou cortes na educação, saúde e previdência como forma de combater a crise. Claro que isso foi lido como "golpismo" pelos governistas, mas não é nada disso. É apenas chantagem. Estão dizendo: se você quer sobreviver no poder, faça os pobres pagarem pela crise e não mexa com o empresariado. É luta de classes, não é golpismo.
Pois essa sim é a grande questão do momento, algo que surpreendentemente muita gente não percebeu: quem vai pagar pela crise. Até agora Dilma, muito enfraquecida, cedeu a todas as pressões e vem fazendo com que os mais necessitados paguem sozinhos. A CPMF foi uma tentativa de mudar um pouco isso. Ela é uma forma mais justa de minimizar os efeitos da crise do que os cortes feitos até agora em programas voltados para os que mais precisam. Embora não seja o ideal, ao menos ela incide na mesma proporção para todos (o ideal seria um tributo que incidisse mais sobre os que podem mais, mas já é uma melhora). Pois não é que muitas pessoas que criticavam cortes na educação ficaram histéricas? Claro, em sua lógica seletiva, serão contra tudo o que o governo fizer. Em sua histeria, não vêem como estão fazendo papel de trouxa.
Para efeito ilustrativo. Suponhamos uma família de classe média com uma receita de 10 mil reais. O máximo que essa família vai pagar por mês será 20 reais de CPMF. Dinheiro que essa família deve gastar todo dia com o lanche dos filhos na escola. Nada. Mas imbecilmente repetem que nem papagaios que o governo roubou e agora a população é que paga a conta. Não, seu trouxa. A CPMF era uma primeira tentativa de colocar a elite para arcar com alguma parte que seja do ajuste. Justamente por não querer pagar, essa elite botou na rua o discurso citado acima e a classe média comprou como sempre.
Tudo o que essa elite não quer é pagar pela crise. Quer que o morador da periferia que chegou à universidade pública e que o aposentado pague. Então tudo o que importa para eles, muito mais do que quem é o presidente, é garantir que não vão pagar nada no ajuste. Pobre de quem acha que a elite está preocupada com Dilma ou Aécio. No momento a prioridade deles é uma só: manter coisas como imposto sobre grandes fortunas muito longe da pauta política. Interessa manter o governo Dilma pressionado e encurralado para que ceda fácil às demandas dessa gente. E os otários de classe média, que nada têm a ganhar com nada disso, ficam aí berrando que o governo é corrupto, achando que são super politizados, quando apenas estão sendo fantoches de banqueiros e empresários.
Tem gente que gosta de falar que não tem mais bobo no futebol. Tem sim, e bastante. Onde não tem bobo é na política. Nesse debate atual há muitas pautas diferentes, muitos interesses, muitos conflitos, cada grupo com sua própria agenda. Nada mais natural que tentem mobilizar o público para o seu lado, preferencialmente fazendo parecer que são movidos por causas nobres. Trouxa é quem acha que tudo o que está acontecendo agora é uma luta entre bem e mal, seja governistas x golpistas, seja honestos x corruptos. A pessoa que tem estudo, acompanha política há tempos e mesmo assim opta por ser massa de manobra sem ganhar nada com isso é só isso mesmo: trouxa.
O governo se beneficia da existência desses blogs todos fazendo parecer que qualquer pessoa que critica o governo quer um golpe. Claro: pregar "golpista" na testa de QUALQUER pessoa que faz QUALQUER crítica ao governo é um jeito de desqualificar qualquer uma dessas críticas. Para quem está no poder sempre é bom que não falte quem acredite que o governo não tem culpa de nada, que tudo é a crise de 2008, que Zé Dirceu é um mártir, que estão querendo derrubar Dilma porque ela investiga a corrupção, etc. Enfim, o governo não erra e quem não gosta é golpista.
Por outro lado, a oposição também se beneficia dessa visão extremamente primária de que todos os problemas do Brasil derivam de termos um governo corrupto (ou, numa versão menos péssima, mal administrado). Aí é o contrário: a oposição é honesta, nunca existiu crise em 2008, de forma que os problemas atuais são todos do governo, o PT é uma quadrilha assaltando os cofres públicos, e por isso estamos com problemas econômicos, etc. Em suma, para a oposição é excelente esse clima de histeria. E a grande mídia, naturalmente, cumpre seu papel histórico ao fomentar esse clima.
Me impressiona particularmente ver quanta gente se dispõe voluntariamente a ser otário a ponto de ser massa de manobra desse pessoal. Pois é exatamente disso que se trata. Ao aceitar alegremente o convite de olhar para um contexto altamente complexo com o olhar de um militante secundarista, essas pessoas todas nada mais fazem que se tornar fantoches a serviços do interesse alheio. Interesses que, em sua histeria, eles nem percebem quais são. Como diria um professor que tive na faculdade, nem sabem em que molho estão sendo comidos.
Os que abraçam a ideia pífia de que todos os que criticam Dilma são golpistas estão avalizando os cortes absurdos feitos pelo governo em áreas como a educação. As pessoas que trabalham em universidade federal já estão plenamente cientes que devem estar satisfeitos se tiverem calças para vestir em 2018. Alunos estão perdendo bolsas, pagamentos estão atrasando, verbas cortadas por todos os lados... mas vá falar isso: sempre aparece alguém para te lembrar que você está repetindo o discurso da "mídia golpista". A histeria antigolpista legitima qualquer ação do governo.
Do lado oposicionista o mais inacreditável é ver como há gente de classe média comprando insanamente um discurso que só beneficia a elite e posando de politizada por causa disso. Pelo que me contam, hoje um editorial da Folha sugere duas alternativas a Dilma: renúncia ou cortes na educação, saúde e previdência como forma de combater a crise. Claro que isso foi lido como "golpismo" pelos governistas, mas não é nada disso. É apenas chantagem. Estão dizendo: se você quer sobreviver no poder, faça os pobres pagarem pela crise e não mexa com o empresariado. É luta de classes, não é golpismo.
Pois essa sim é a grande questão do momento, algo que surpreendentemente muita gente não percebeu: quem vai pagar pela crise. Até agora Dilma, muito enfraquecida, cedeu a todas as pressões e vem fazendo com que os mais necessitados paguem sozinhos. A CPMF foi uma tentativa de mudar um pouco isso. Ela é uma forma mais justa de minimizar os efeitos da crise do que os cortes feitos até agora em programas voltados para os que mais precisam. Embora não seja o ideal, ao menos ela incide na mesma proporção para todos (o ideal seria um tributo que incidisse mais sobre os que podem mais, mas já é uma melhora). Pois não é que muitas pessoas que criticavam cortes na educação ficaram histéricas? Claro, em sua lógica seletiva, serão contra tudo o que o governo fizer. Em sua histeria, não vêem como estão fazendo papel de trouxa.
Para efeito ilustrativo. Suponhamos uma família de classe média com uma receita de 10 mil reais. O máximo que essa família vai pagar por mês será 20 reais de CPMF. Dinheiro que essa família deve gastar todo dia com o lanche dos filhos na escola. Nada. Mas imbecilmente repetem que nem papagaios que o governo roubou e agora a população é que paga a conta. Não, seu trouxa. A CPMF era uma primeira tentativa de colocar a elite para arcar com alguma parte que seja do ajuste. Justamente por não querer pagar, essa elite botou na rua o discurso citado acima e a classe média comprou como sempre.
Tudo o que essa elite não quer é pagar pela crise. Quer que o morador da periferia que chegou à universidade pública e que o aposentado pague. Então tudo o que importa para eles, muito mais do que quem é o presidente, é garantir que não vão pagar nada no ajuste. Pobre de quem acha que a elite está preocupada com Dilma ou Aécio. No momento a prioridade deles é uma só: manter coisas como imposto sobre grandes fortunas muito longe da pauta política. Interessa manter o governo Dilma pressionado e encurralado para que ceda fácil às demandas dessa gente. E os otários de classe média, que nada têm a ganhar com nada disso, ficam aí berrando que o governo é corrupto, achando que são super politizados, quando apenas estão sendo fantoches de banqueiros e empresários.
Tem gente que gosta de falar que não tem mais bobo no futebol. Tem sim, e bastante. Onde não tem bobo é na política. Nesse debate atual há muitas pautas diferentes, muitos interesses, muitos conflitos, cada grupo com sua própria agenda. Nada mais natural que tentem mobilizar o público para o seu lado, preferencialmente fazendo parecer que são movidos por causas nobres. Trouxa é quem acha que tudo o que está acontecendo agora é uma luta entre bem e mal, seja governistas x golpistas, seja honestos x corruptos. A pessoa que tem estudo, acompanha política há tempos e mesmo assim opta por ser massa de manobra sem ganhar nada com isso é só isso mesmo: trouxa.
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
CPMF e a indignação seletiva
Vi algumas pessoas falando coisas tipo "os eleitores da Dilma deviam pagar pelo ajuste fiscal". O tipo de argumento que é tão coisa de débil mental que fica até difícil argumentar. A mesma lógica deveria significar que só os eleitores do PT poderiam fazer os concursos abertos nos últimos 12 anos, por exemplo. Que nos anos FHC deveria haver dois tipos de preços: uns para os eleitores do PSDB e outros, ainda com inflação, para quem não votou nele. Ah, claro, FHC também arranjou uma dívida externa enorme, que deveria ser integralmente paga por seus eleitores. E só quem votou nele deveria pagar os 26% de juros, que eram a taxa quando ele entregou o governo a Lula.
Sobretudo é um argumento de quem não entendeu o que é democracia. Não ouvi nenhum deles dizendo que só eleitores do Alckmin deveriam ter racionamento de água. Que só eleitores do Sartori deveriam ter parcelamento de salário. Que apenas eleitores de Sérgio Cabral e Eduardo Paes deveriam pagar pelos imensos gastos da Olimpíada. São simplesmente pessoas que não sabem perder. Não entendem que o jogo democrático é esse mesmo. Todo mundo vota em quem acha que deve, quem tem mais votos governa. Achar que o governo é horrível é direito de todos, pois graças a Deus e à luta de gerações de pessoas hoje vivemos uma democracia. E é ótimo que exista uma oposição crítica. Não me importo minimamente com a oposição tanto à direita como à esquerda fazer seu papel, que é criticar o governo.
Mas existe uma diferença. A oposição à esquerda critica muito. Às vezes concordo, às vezes discordo, mas eles respeitam o resultado das urnas. Nunca desqualificam os 54 milhões de eleitores que reconduziram Dilma à presidência. Em suma, fazem seu papel. O eleitor médio da oposição à direita não é assim. Acha que tem o direito de chamar a maioria de idiota, burra, vendida e ladra. Comparam o ato totalmente cidadão de votar naquilo que se acredita a ser um criminoso, só por a opção da maioria ter sido diferente da sua. Se comportam como crianças mimadas que querem levar a bola embora quando seu time leva gol. Quem não pensa como eles é um idiota vendido.
E aqui vale um parêntesis sobre o quanto nossas classes médias e altas são mimadas, verdadeiras crianças egocêntricas, quando falam de política. Desconhecem o conceito de bem comum, elemento chave da democracia. Só querem tudo para si. Quando não têm, ficam indignadas. Vou dar apenas um exemplo, as medidas de Fernando Haddad sobre o trânsito paulistano. Não moro lá, não sou especialista no assunto, não tenho capacidade para analisar se as medidas são corretas. Mas uma coisa eu sei. Xingar a "indústria da multa" quando você é pego por um radar andando acima da velocidade permitida não justifica. Você não sabia a velocidade máxima permitida? Não escolheu andar acima dela? Amigo, você escolheu correr o risco. Mas como são apenas crianças mimadas, botam a culpa nos outros. Claro. Nunca é culpa delas.
Bem, então vamos a CPMF. Mais um enorme erro político do governo, que a cada dia parece mais perdido que no anterior, se é que isso é possível. Num país em que há a percepção generalizada (correta ou equivocada, pouco importa aqui) de que se paga impostos demais para sustentar corrupção e privilégios, um governo no auge da impopularidade elege recriar um imposto como solução. Convenhamos, é implorar para ser criticado. Ainda mais com uma oposição tão raivosa que reclama de coisas absolutamente irrelevantes. Dilma deu a eles um prato cheio e eles não desperdiçaram.
No fim das contas a minha impressão é que a CPMF não volta, o governo não tem a menor condição de aprovar isso. Será apenas um desgaste político absolutamente idiota e desnecessário. O que chama muito minha atenção na verdade é ver mais uma vez como a indignação pode ser seletiva e violenta. Pessoas que pagaram CPMF sem reclamar durante os 8 anos de governo FHC e são simpatizantes do PSDB se pronunciando com ódio frente à possibilidade de o imposto voltar. São pessoas que achavam tudo bem termos juros de 26% ao ano, desemprego de 20% e inflação nos 10%, desde que seja no governo do partido em que votaram. O que me dá nojo nessa história toda é a indignação seletiva. A falta de espelho em casa. A total ausência de escrúpulos disfarçada de luta ética. O clima de "posso falar o que quiser desde que tenha tom de indignação contra o governo".
Fui contra a CPMF no governo FHC e sou contra agora. Fui contra o governo FHC se aliar com todo o lixo político do país e sinto o mesmo em relação à Dilma. Minha indignação contra a corrupção é rigorosamente a mesma quando se trata de Zé Dirceu ou Aécio. Se as pessoas que conheço e não gostam do governo fossem assim eu conversaria com eles, e certamente teríamos muito mais em comum do que de discordância. Mas eles não são assim. Ali só vejo indignação seletiva. Não têm água para tomar banho, não tem metrô, cuja entrega já foi adiada mil vezes, mas acham que só o PT não sabe administrar. Com gente assim não dá pra conversar.
Sobretudo é um argumento de quem não entendeu o que é democracia. Não ouvi nenhum deles dizendo que só eleitores do Alckmin deveriam ter racionamento de água. Que só eleitores do Sartori deveriam ter parcelamento de salário. Que apenas eleitores de Sérgio Cabral e Eduardo Paes deveriam pagar pelos imensos gastos da Olimpíada. São simplesmente pessoas que não sabem perder. Não entendem que o jogo democrático é esse mesmo. Todo mundo vota em quem acha que deve, quem tem mais votos governa. Achar que o governo é horrível é direito de todos, pois graças a Deus e à luta de gerações de pessoas hoje vivemos uma democracia. E é ótimo que exista uma oposição crítica. Não me importo minimamente com a oposição tanto à direita como à esquerda fazer seu papel, que é criticar o governo.
Mas existe uma diferença. A oposição à esquerda critica muito. Às vezes concordo, às vezes discordo, mas eles respeitam o resultado das urnas. Nunca desqualificam os 54 milhões de eleitores que reconduziram Dilma à presidência. Em suma, fazem seu papel. O eleitor médio da oposição à direita não é assim. Acha que tem o direito de chamar a maioria de idiota, burra, vendida e ladra. Comparam o ato totalmente cidadão de votar naquilo que se acredita a ser um criminoso, só por a opção da maioria ter sido diferente da sua. Se comportam como crianças mimadas que querem levar a bola embora quando seu time leva gol. Quem não pensa como eles é um idiota vendido.
E aqui vale um parêntesis sobre o quanto nossas classes médias e altas são mimadas, verdadeiras crianças egocêntricas, quando falam de política. Desconhecem o conceito de bem comum, elemento chave da democracia. Só querem tudo para si. Quando não têm, ficam indignadas. Vou dar apenas um exemplo, as medidas de Fernando Haddad sobre o trânsito paulistano. Não moro lá, não sou especialista no assunto, não tenho capacidade para analisar se as medidas são corretas. Mas uma coisa eu sei. Xingar a "indústria da multa" quando você é pego por um radar andando acima da velocidade permitida não justifica. Você não sabia a velocidade máxima permitida? Não escolheu andar acima dela? Amigo, você escolheu correr o risco. Mas como são apenas crianças mimadas, botam a culpa nos outros. Claro. Nunca é culpa delas.
Bem, então vamos a CPMF. Mais um enorme erro político do governo, que a cada dia parece mais perdido que no anterior, se é que isso é possível. Num país em que há a percepção generalizada (correta ou equivocada, pouco importa aqui) de que se paga impostos demais para sustentar corrupção e privilégios, um governo no auge da impopularidade elege recriar um imposto como solução. Convenhamos, é implorar para ser criticado. Ainda mais com uma oposição tão raivosa que reclama de coisas absolutamente irrelevantes. Dilma deu a eles um prato cheio e eles não desperdiçaram.
No fim das contas a minha impressão é que a CPMF não volta, o governo não tem a menor condição de aprovar isso. Será apenas um desgaste político absolutamente idiota e desnecessário. O que chama muito minha atenção na verdade é ver mais uma vez como a indignação pode ser seletiva e violenta. Pessoas que pagaram CPMF sem reclamar durante os 8 anos de governo FHC e são simpatizantes do PSDB se pronunciando com ódio frente à possibilidade de o imposto voltar. São pessoas que achavam tudo bem termos juros de 26% ao ano, desemprego de 20% e inflação nos 10%, desde que seja no governo do partido em que votaram. O que me dá nojo nessa história toda é a indignação seletiva. A falta de espelho em casa. A total ausência de escrúpulos disfarçada de luta ética. O clima de "posso falar o que quiser desde que tenha tom de indignação contra o governo".
Fui contra a CPMF no governo FHC e sou contra agora. Fui contra o governo FHC se aliar com todo o lixo político do país e sinto o mesmo em relação à Dilma. Minha indignação contra a corrupção é rigorosamente a mesma quando se trata de Zé Dirceu ou Aécio. Se as pessoas que conheço e não gostam do governo fossem assim eu conversaria com eles, e certamente teríamos muito mais em comum do que de discordância. Mas eles não são assim. Ali só vejo indignação seletiva. Não têm água para tomar banho, não tem metrô, cuja entrega já foi adiada mil vezes, mas acham que só o PT não sabe administrar. Com gente assim não dá pra conversar.
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
As delícias de ser privilegiado...
"A Europa deve aceitar os novos refugiados filhos do capitalismo global e herdeiros do colonialismo mas em troca deve fixar regras claras que privilegiem o estilo de vida europeu"
O que vai aí em cima é uma citação de Slavoj Zizek, darling da esquerda mundial nos últimos anos. Que elabora todo um discurso baseado em clássicos da esquerda ("capitalismo global", "colonialismo) para no fim deixar clara sua real preocupação. Gostamos dessas pobres vítimas, precisamos acolher todas elas, desde que não mexam com nosso maravilhoso mundinho.
Gozado é ver gente de esquerda defendendo isso, dizendo que ele se preocupa com o avanço de ideias racistas, sexistas e homofóbicas com a chegada desses imigrantes. Amigos, quem no mundo pode achar que europeus precisam de imigrantes para ensiná-los a serem racistas, sexistas e homofóbicos? Eles sempre foram assim. E quem, em sã consciência, acha que a principal bagagem desses imigrantes miseráveis, fodidos por uma guerra absurda, é essa? Baseado em que? Só no preconceito mesmo? Aparentemente sim.
Pois sentir empatia com os que sofrem é ter humanidade. Sendo homem branco hetero de classe média tenho o maior apreço por causas como o feminismo, o movimento negro, o movimento anti homofobia e outros que tais. Até aí tudo bem. Isso apenas significa que não sou um completo imbecil. Olhar no espelho e se ver como privilegiado, alguém que não chegou onde chegou apenas por seus méritos, mas por viver numa sociedade em que tudo te favorece, aí é outra coisa.
Vejo por aí um bando de homem privilegiado, principalmente caras que nunca tiveram com o que se preocupar na vida, se dizendo "feministas". E, tão acostumados estão com seu lugar privilegiado, que sequer conseguem entender como isso é ofensivo, como isso é pretender ser um dominante falando em nome de um subalterno que nessa visão não sabe se expressar sozinho. E há coisa ainda pior, homem querendo ensinar mulher a ser feminista, mas aí eu prefiro nem comentar. O tema aqui é "dominantes bem intencionados que não conseguem ver como sua posição é a posição dos dominantes".
Europeus causaram as maiores guerras da história da humanidade. Inventaram o racismo. Foi lá que fui chamado de "macaco" por gente que achou que eu não entendia a língua deles (claro, sul americano é tudo burro). Também foi lá que vi uma amiga me contando ter sido chamada de prostituta pela professora do mestrado por ser brasileira. Não me venham com essa de que europeus são menos preconceituosos e mais abertos não. Vão lá e vocês vão descobrir que não é por aí não. Europeus são mais ricos que nós, terceiro mundistas, e isso é fato. Mas não me venham com esse papo de que são mais abertos. Quem vota em Berlusconi, Le Pen e coisas do tipo são eles, não nós.
Mas um lado de mim entende o Zizek. Não passa dia que não ouça revolucionários desse tipo. A universidade tem milhões deles. Gente que se compadece genuinamente dos que vieram de baixo mas os olham com olhar superior. Não é por mal. Sei que não é. Estamos falando de perspectiva de classe. É disso que se trata. Quem é privilegiado nunca vai olhar o subalterno como igual. Porque não é mesmo. O professor universitário que sempre teve a barriga cheia e nunca se preocupou com nada nunca vai olhar o aluno favelado e ver um igual. E nem pode. Pois não é mesmo.
Do seu ponto de vista privilegiado, Zizek acha que imigrantes são todos mutiladores genitais com turbantes que adoram um Deus estranho e é preciso salvar o "estilo de vida europeu" desses bárbaros. Claro. Ele é um europeu. Foi treinado desde sempre para pensar assim. E mesmo um historiador não particularmente marxista como Carlo Ginzburg já colocou esse tipo de coisa em termos de "não se escapa de sua experiência de classe". Ele está apenas sendo o que é: um europeu privilegiado. Já não tenho a mesma compaixão de gente subalterna que vê o mundo com esses olhos. Aí já acho coisa de otário mesmo.
O que vai aí em cima é uma citação de Slavoj Zizek, darling da esquerda mundial nos últimos anos. Que elabora todo um discurso baseado em clássicos da esquerda ("capitalismo global", "colonialismo) para no fim deixar clara sua real preocupação. Gostamos dessas pobres vítimas, precisamos acolher todas elas, desde que não mexam com nosso maravilhoso mundinho.
Gozado é ver gente de esquerda defendendo isso, dizendo que ele se preocupa com o avanço de ideias racistas, sexistas e homofóbicas com a chegada desses imigrantes. Amigos, quem no mundo pode achar que europeus precisam de imigrantes para ensiná-los a serem racistas, sexistas e homofóbicos? Eles sempre foram assim. E quem, em sã consciência, acha que a principal bagagem desses imigrantes miseráveis, fodidos por uma guerra absurda, é essa? Baseado em que? Só no preconceito mesmo? Aparentemente sim.
Pois sentir empatia com os que sofrem é ter humanidade. Sendo homem branco hetero de classe média tenho o maior apreço por causas como o feminismo, o movimento negro, o movimento anti homofobia e outros que tais. Até aí tudo bem. Isso apenas significa que não sou um completo imbecil. Olhar no espelho e se ver como privilegiado, alguém que não chegou onde chegou apenas por seus méritos, mas por viver numa sociedade em que tudo te favorece, aí é outra coisa.
Vejo por aí um bando de homem privilegiado, principalmente caras que nunca tiveram com o que se preocupar na vida, se dizendo "feministas". E, tão acostumados estão com seu lugar privilegiado, que sequer conseguem entender como isso é ofensivo, como isso é pretender ser um dominante falando em nome de um subalterno que nessa visão não sabe se expressar sozinho. E há coisa ainda pior, homem querendo ensinar mulher a ser feminista, mas aí eu prefiro nem comentar. O tema aqui é "dominantes bem intencionados que não conseguem ver como sua posição é a posição dos dominantes".
Europeus causaram as maiores guerras da história da humanidade. Inventaram o racismo. Foi lá que fui chamado de "macaco" por gente que achou que eu não entendia a língua deles (claro, sul americano é tudo burro). Também foi lá que vi uma amiga me contando ter sido chamada de prostituta pela professora do mestrado por ser brasileira. Não me venham com essa de que europeus são menos preconceituosos e mais abertos não. Vão lá e vocês vão descobrir que não é por aí não. Europeus são mais ricos que nós, terceiro mundistas, e isso é fato. Mas não me venham com esse papo de que são mais abertos. Quem vota em Berlusconi, Le Pen e coisas do tipo são eles, não nós.
Mas um lado de mim entende o Zizek. Não passa dia que não ouça revolucionários desse tipo. A universidade tem milhões deles. Gente que se compadece genuinamente dos que vieram de baixo mas os olham com olhar superior. Não é por mal. Sei que não é. Estamos falando de perspectiva de classe. É disso que se trata. Quem é privilegiado nunca vai olhar o subalterno como igual. Porque não é mesmo. O professor universitário que sempre teve a barriga cheia e nunca se preocupou com nada nunca vai olhar o aluno favelado e ver um igual. E nem pode. Pois não é mesmo.
Do seu ponto de vista privilegiado, Zizek acha que imigrantes são todos mutiladores genitais com turbantes que adoram um Deus estranho e é preciso salvar o "estilo de vida europeu" desses bárbaros. Claro. Ele é um europeu. Foi treinado desde sempre para pensar assim. E mesmo um historiador não particularmente marxista como Carlo Ginzburg já colocou esse tipo de coisa em termos de "não se escapa de sua experiência de classe". Ele está apenas sendo o que é: um europeu privilegiado. Já não tenho a mesma compaixão de gente subalterna que vê o mundo com esses olhos. Aí já acho coisa de otário mesmo.
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
Patriarcalismo e proteção aos poderosos: homenagem à minha avó
Hoje faz 97 anos que nasceu minha avó Francisca Maciel, posteriormente Francisca Maciel Gomes. Sempre houve uma situação meio silenciada na família envolvendo ela. Aproveitei o fato de ser historiador e pesquisei sobre o assunto. E o que achei me pareceu absolutamente ilustrativo sobre o país em que vivemos.
A questão é que na certidão de nascimento dela não existia um pai. Só o nome da mãe. Historiador em germe, fiz perguntas sobre isso, e soube que minha bisavó era doméstica na casa de uma família poderosa. Um dia, depois de forçar muito, consegui o nome do pai dela. Não vou citar aqui, por não achar que ele merece ser lembrado, por motivos que ficarão claros adiante. Mas eram três sobrenomes ilustres da elite quatrocentona paulista. Sobrinho de presidente da República.
Com o nome do bisavô em mãos pesquisei. Vi que um mês antes da minha avó nascer ele foi nomeado professor numa cidade paulista bem distante de Guaratinguetá, onde minha avó, filha dele, nasceria logo depois. Indício óbvio de que a familia poderosa identificou um problema: um filho deles havia engravidado uma serviçal e era preciso encobrir o fato desagradável. Mandaram o filho pra longe, em um posto respeitável, e cuidaram da serviçal, que milagrosamente aparece logo em seguida em São Paulo, sendo empregada de outro membro da alta elite paulista, filho de gente com título de nobreza. O processo de silenciamento se completa.
Tudo isso foi em 1918, quando minha avó nasceu. Reencontro meu bisavô nos anos 30. Fazendeiro, rico e processado por ser ligado ao partido nazista brasileiro. Inocentado ao fim do processo, provavelmente por intercessão de parentes poderosos. Não muito tempo depois aparece nos jornais da cidade ciceroneando Ademar de Barros e fazendo discursos em homenagem a ele. Não consegui descobrir quando morreu, mas teve uma filha poetisa de idade próxima à da minha avó o homenageando como "pai exemplar".
Essa história me enoja do início ao fim. Nela está contido tudo o que eu odeio nesta vida. Machismo, sentimento de superioridade natural, as vantagens que os bem nascidos tem sobre os da "ralé", a tranquila sensação de felicidade daqueles que exploram quem não tem nada. Tudo isso é o Brasil que conhecemos. Essa história mostra bem como funciona a mente de quem está insatisfeito. Pra eles o mundo só existe para que eles possam fazer o que quiserem. Se não é assim, se sentem tristinhos e oprimidos. Cambada de filhos da puta. As coisas têm nome e esses nomes precisam ser ditos. São filhos da puta.
Da minha parte acho que foi ótimo nunca ter conhecido esse senhor nem fazer parte da sua família privilegiada, ainda que compartilhemos genes e façamos parte da mesma árvore genealógica. Dona Francisca foi uma avó e tanto, a despeito das diferenças que tivemos por conta de questões familiares. Se divertia comigo, foi muito generosa, impunha aquela rígida disciplina de quem vem de baixo (aquela que o pai dela jamais teve, riquinho mimado que sempre foi). E fazia os melhores doces de todos os tempos. Isso tudo vale 950 trilhões de títulos de nobreza.
A questão é que na certidão de nascimento dela não existia um pai. Só o nome da mãe. Historiador em germe, fiz perguntas sobre isso, e soube que minha bisavó era doméstica na casa de uma família poderosa. Um dia, depois de forçar muito, consegui o nome do pai dela. Não vou citar aqui, por não achar que ele merece ser lembrado, por motivos que ficarão claros adiante. Mas eram três sobrenomes ilustres da elite quatrocentona paulista. Sobrinho de presidente da República.
Com o nome do bisavô em mãos pesquisei. Vi que um mês antes da minha avó nascer ele foi nomeado professor numa cidade paulista bem distante de Guaratinguetá, onde minha avó, filha dele, nasceria logo depois. Indício óbvio de que a familia poderosa identificou um problema: um filho deles havia engravidado uma serviçal e era preciso encobrir o fato desagradável. Mandaram o filho pra longe, em um posto respeitável, e cuidaram da serviçal, que milagrosamente aparece logo em seguida em São Paulo, sendo empregada de outro membro da alta elite paulista, filho de gente com título de nobreza. O processo de silenciamento se completa.
Tudo isso foi em 1918, quando minha avó nasceu. Reencontro meu bisavô nos anos 30. Fazendeiro, rico e processado por ser ligado ao partido nazista brasileiro. Inocentado ao fim do processo, provavelmente por intercessão de parentes poderosos. Não muito tempo depois aparece nos jornais da cidade ciceroneando Ademar de Barros e fazendo discursos em homenagem a ele. Não consegui descobrir quando morreu, mas teve uma filha poetisa de idade próxima à da minha avó o homenageando como "pai exemplar".
Essa história me enoja do início ao fim. Nela está contido tudo o que eu odeio nesta vida. Machismo, sentimento de superioridade natural, as vantagens que os bem nascidos tem sobre os da "ralé", a tranquila sensação de felicidade daqueles que exploram quem não tem nada. Tudo isso é o Brasil que conhecemos. Essa história mostra bem como funciona a mente de quem está insatisfeito. Pra eles o mundo só existe para que eles possam fazer o que quiserem. Se não é assim, se sentem tristinhos e oprimidos. Cambada de filhos da puta. As coisas têm nome e esses nomes precisam ser ditos. São filhos da puta.
Da minha parte acho que foi ótimo nunca ter conhecido esse senhor nem fazer parte da sua família privilegiada, ainda que compartilhemos genes e façamos parte da mesma árvore genealógica. Dona Francisca foi uma avó e tanto, a despeito das diferenças que tivemos por conta de questões familiares. Se divertia comigo, foi muito generosa, impunha aquela rígida disciplina de quem vem de baixo (aquela que o pai dela jamais teve, riquinho mimado que sempre foi). E fazia os melhores doces de todos os tempos. Isso tudo vale 950 trilhões de títulos de nobreza.
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
Como uma criança morta mostrou que alguns são mais iguais que outros
Difícil falar da criança síria morta numa praia turca. Vi a foto e na verdade quis morrer. Por muitos motivos. Meu lado individualista pensou se fosse minha filha ou um dos meus sobrinhos e quis sair por aí matando todo mundo. Sei que fui super individualista nisso, mas duvido que qualquer pai ou mãe tenham pensado diferente. Todos sabemos que nosso pior pesadelo é esse. Pensar que nossos filhos morreram e não fomos capazes de impedir é algo que tortura qualquer pessoa que tenha filhos. Ou que tenha coração.
Como tenho muitos amigos jornalistas vi discussões sobre a publicação da foto. Acho que fizeram bem em publicar. Há momentos em que é necessário mostrar como a realidade pode ser horrorosa. Sim, vivemos num mundo de merda em que crianças são mortas. Nenhuma criança jamais deveria ser morta. Quando eu era criança só fazia duas coisas: estudar e jogar futebol. Pra mim é incompreensível pensar que alguma criança faça qualquer coisa que não estudar e se divertir. Morrer, então, é pra fechar a humanidade pra balanço.
E vi muita gente aproveitando a situação para, por incrível que pareça, dar recados políticos. Uma imagem tão torturante como a de uma criança morta ser usada para montagens criticando o PT? É muito lixo. Que se critique o PT e seu governo. Oposição existe pra isso mesmo. Mas usar uma montagem de uma foto de uma criança morta? Quem faz isso perdeu qualquer senso de limite.
O que a foto realmente diz é o quanto nós nos acostumamos com o sofrimento dos subalternos. Nos preocupamos mais com porcos presos num caminhão que com negros chacinados pela polícia paulista. Vamos pra rua de branco protestar contra a violência quando morre um branco rico, mas nos fodemos para a polícia carioca detendo ônibus que vão do subúrbio para a praia para tirar de dentro deles os negros. Para evitar violência, segundo eles. Toleramos, enfim, o apartheid no nosso quintal. Se for contra pobre a gente não liga pra nada.
Na verdade não ligamos para a exclusão. Ela existe, castiga a maioria da população todo santo dia, mas achamos que está tudo horrível pra nós, mesmo sendo sempre favorecidos. Vivemos no país em que Bolsonaro é considerado um cara "corajoso" "que fala a verdade" apenas por atacar quem sempre é prejudicado. Vemos o crescimento de religiões que usam a mensagem cristã, baseada no amor, para propagar o ódio. O mundo em que vivemos é esse. Nosso país é assim, gostemos ou não. Podemos tentar nos proteger nos cercando de quem pensa como nós mas não adianta, a realidade cedo ou tarde esmurra nossa cara.
Foi nesse mundo que a pequena criança síria nasceu, viveu e morreu. A questão não é o desprezível Estado Islâmico ou qualquer outra. A única questão aqui é que a humanidade não dá a mínima para quem sofre. No papel ninguém gosta do Estado Islâmico. Mas na prática aceitamos a opressão felizes da vida. E só por isso existem coisas como a que vimos naquela foto, que esfregou a verdade na nossa cara.
Como tenho muitos amigos jornalistas vi discussões sobre a publicação da foto. Acho que fizeram bem em publicar. Há momentos em que é necessário mostrar como a realidade pode ser horrorosa. Sim, vivemos num mundo de merda em que crianças são mortas. Nenhuma criança jamais deveria ser morta. Quando eu era criança só fazia duas coisas: estudar e jogar futebol. Pra mim é incompreensível pensar que alguma criança faça qualquer coisa que não estudar e se divertir. Morrer, então, é pra fechar a humanidade pra balanço.
E vi muita gente aproveitando a situação para, por incrível que pareça, dar recados políticos. Uma imagem tão torturante como a de uma criança morta ser usada para montagens criticando o PT? É muito lixo. Que se critique o PT e seu governo. Oposição existe pra isso mesmo. Mas usar uma montagem de uma foto de uma criança morta? Quem faz isso perdeu qualquer senso de limite.
O que a foto realmente diz é o quanto nós nos acostumamos com o sofrimento dos subalternos. Nos preocupamos mais com porcos presos num caminhão que com negros chacinados pela polícia paulista. Vamos pra rua de branco protestar contra a violência quando morre um branco rico, mas nos fodemos para a polícia carioca detendo ônibus que vão do subúrbio para a praia para tirar de dentro deles os negros. Para evitar violência, segundo eles. Toleramos, enfim, o apartheid no nosso quintal. Se for contra pobre a gente não liga pra nada.
Na verdade não ligamos para a exclusão. Ela existe, castiga a maioria da população todo santo dia, mas achamos que está tudo horrível pra nós, mesmo sendo sempre favorecidos. Vivemos no país em que Bolsonaro é considerado um cara "corajoso" "que fala a verdade" apenas por atacar quem sempre é prejudicado. Vemos o crescimento de religiões que usam a mensagem cristã, baseada no amor, para propagar o ódio. O mundo em que vivemos é esse. Nosso país é assim, gostemos ou não. Podemos tentar nos proteger nos cercando de quem pensa como nós mas não adianta, a realidade cedo ou tarde esmurra nossa cara.
Foi nesse mundo que a pequena criança síria nasceu, viveu e morreu. A questão não é o desprezível Estado Islâmico ou qualquer outra. A única questão aqui é que a humanidade não dá a mínima para quem sofre. No papel ninguém gosta do Estado Islâmico. Mas na prática aceitamos a opressão felizes da vida. E só por isso existem coisas como a que vimos naquela foto, que esfregou a verdade na nossa cara.
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