quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Como viciar o debate sobre cidadania e direitos humanos

Quem enxerga um palmo à frente do nariz está plenamente ciente que essa brigalhada governo x oposição não é a questão central do momento. O que vemos é um amplo, e nem sempre explícito, debate sobre direitos humanos, cidadania e definição do que é uma sociedade democrática. Basta ver como inúmeros temas que estão discutindo tem essa questão como pano de fundo: cotas, violencia policial, direitos civis aos homossexuais, respeito á diversidade religiosa, violência de gênero, etc. No fundo todos esses debates são o mesmo.

Me parece claro que a história joga a favor dos defensores dos direitos humanos. Seus detratores têm em mente um mundo que já acabou se é que um dia existiu. E hoje todos podem falar o que querem. Não dá pra ficar tomando atitudes autoritárias e imaginar que ninguém vai perceber ou se manifestar. O mundo mudou, ainda que muitos não tenham percebido. Sei que é difícil acreditar no que estou dizendo quando se olha à volta e vê essa montoeira de lixo que nos cerca. Mas já disse antes e repito: essas pessoas estão histéricas justamente por perceber que a derrota é inevitável. Tentam ganhar no grito como último recurso.

Uma das estratégias desesperadas é criar um fantasma, utilizando um recurso conhecido no estudo da lógica como "falácia do espantalho". Um recurso argumentativo muito tosco, mas que engana os mais desatentos ou burros. No caso consiste em criar uma caricatura: o bobo alegre que acha que "bandido" é tudo gente boa (mas como são hipócritas, dizem que acham isso só que não levam um único bandido pra morar com eles, veja que absurdo), que não conhece a realidade, que quer destruir a família brasileira e sacrifica 800 animais por dia em terreiros de candomblé.

Tenho quase 43 anos. Nasci e cresci numa família esquerdista. Me formei politicamente numa cidade metalúrgica com um forte sindicato de esquerda e onde o eleitorado brizolista era franca maioria. Daqui a pouco farei um quarto de século vivendo o cotidiano dos cursos de história. Em suma, conheci trilhões de pessoas que defendem direitos humanos e cidadania para todos. Nunca ouvi uma única vez alguém defendendo ideias como as que o espantalho reaça defende. Nunca ouvi político ou intelectual de esquerda dizendo isso. Pode ser que haja quem pense essas coisas de verdade (se há quem vote no Bolsonaro, tudo pode acontecer) mas impossível dizer que são representativos do que pensamos, tanto em termos quantitativos como qualitativos.

Mas não interessa: diariamente essa caricatura aparece, podendo ou não ser associada à esquerda ou, imaginem, ao comunismo (não precisa ser de esquerda pra defender nada disso, conheço dezenas de eleitores do Aécio que pensam exatamente como eu nessas questões). Às vezes me pergunto como alguém pode ter ideias tão toscas e sem sentido ou vínculo com a realidade. Acredito que muitos são burros mesmo. Existem pessoas burras, não tem jeito. Há muitos que são apenas ignorantes. Nem conhecem gente de esquerda mas imaginam que somos como aparecemos na Veja. Essas coisas existem. Mas não é só isso.

Mas tem o tipo cínico também. Aquela pessoa que sabe perfeitamente que adora o governo carioca, pois prefere mil vezes ir a uma praia só com gente branca e dourada do que em uma com negros e pobres. A pessoa que acha o Malafaia meio desagradável mas se incomoda muito mais com um casal gay se beijando na rua que com 20 mil assassinatos homofóbicos. Aquele cidadão de bem que diz "não voto no Bolsonaro, mas ele é corajoso, fala umas coisas que ninguém diz". A pessoa que não entrou no curso que queria e bota a culpa nas cotas. E por aí vai. Só que ela não quer confessar seus reais pensamentos. Sabe que vai soar mal e faria cair sua máscara de pessoa legal, bem pensante, etc.

Aí cria esse recurso lógico em que no fim das contas ela está apenas se defendendo, quando na verdade está oprimindo quem sempre se fodeu. Mas nesse discurso ela pode evitar assumir que não gosta de pobre, que é racista, misógino e homofóbico, etc. Ela não é nada disso. Ela só é contra esse pessoalzinho de esquerda que quer entregar o mundo na mão dos bandidos, bando de hipócritas. Ele só quer garantir que o mundo não continue dominados por bichas histéricas, feminazis e coisas do tipo. Enfim, um pobre coitado sitiado por uma multidão de carniceiros, apoiados pela esquerda, pela mídia, pelo Foro de São Paulo e demais delírios do tipo.

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