quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Como uma criança morta mostrou que alguns são mais iguais que outros

Difícil falar da criança síria morta numa praia turca. Vi a foto e na verdade quis morrer. Por muitos motivos. Meu lado individualista pensou se fosse minha filha ou um dos meus sobrinhos e quis sair por aí matando todo mundo. Sei que fui super individualista nisso, mas duvido que qualquer pai ou mãe tenham pensado diferente. Todos sabemos que nosso pior pesadelo é esse. Pensar que nossos filhos morreram e não fomos capazes de impedir é algo que tortura qualquer pessoa que tenha filhos. Ou que tenha coração.

Como tenho muitos amigos jornalistas vi discussões sobre a publicação da foto. Acho que fizeram bem em publicar. Há momentos em que é necessário mostrar como a realidade pode ser horrorosa. Sim, vivemos num mundo de merda em que crianças são mortas. Nenhuma criança jamais deveria ser morta. Quando eu era criança só fazia duas coisas: estudar e jogar futebol. Pra mim é incompreensível pensar que alguma criança faça qualquer coisa que não estudar e se divertir. Morrer, então, é pra fechar a humanidade pra balanço.

E vi muita gente aproveitando a situação para, por incrível que pareça, dar recados políticos. Uma imagem tão torturante como a de uma criança morta ser usada para montagens criticando o PT? É muito lixo. Que se critique o PT e seu governo. Oposição existe pra isso mesmo. Mas usar uma montagem de uma foto de uma criança morta? Quem faz isso perdeu qualquer senso de limite.

O que a foto realmente diz é o quanto nós nos acostumamos com o sofrimento dos subalternos. Nos preocupamos mais com porcos presos num caminhão que com negros chacinados pela polícia paulista. Vamos pra rua de branco protestar contra a violência quando morre um branco rico, mas nos fodemos para a polícia carioca detendo ônibus que vão do subúrbio para a praia para tirar de dentro deles os negros. Para evitar violência, segundo eles. Toleramos, enfim, o apartheid no nosso quintal. Se for contra pobre a gente não liga pra nada.

Na verdade não ligamos para a exclusão. Ela existe, castiga a maioria da população todo santo dia, mas achamos que está tudo horrível pra nós, mesmo sendo sempre favorecidos. Vivemos no país em que Bolsonaro é considerado um cara "corajoso" "que fala a verdade" apenas por atacar quem sempre é prejudicado. Vemos o crescimento de religiões que usam a mensagem cristã, baseada no amor, para propagar o ódio. O mundo em que vivemos é esse. Nosso país é assim, gostemos ou não. Podemos tentar nos proteger nos cercando de quem pensa como nós mas não adianta, a realidade cedo ou tarde esmurra nossa cara.

Foi nesse mundo que a pequena criança síria nasceu, viveu e morreu. A questão não é o desprezível Estado Islâmico ou qualquer outra. A única questão aqui é que a humanidade não dá a mínima para quem sofre. No papel ninguém gosta do Estado Islâmico. Mas na prática aceitamos a opressão felizes da vida. E só por isso existem coisas como a que vimos naquela foto, que esfregou a verdade na nossa cara.

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