sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A janela que Brilhante Ulstra nos oferece sobre o Brasil

Detesto falar sobre o período da ditadura militar. É muito difícil. Sempre é uma mistura de sensações horríveis. Pensar no que meus pais e tios passaram. No absoluto silêncio de todos eles sobre os detalhes do que houve. No que tudo aquilo significou para a criança que eu era. Tudo isso misturado com uma certa culpa de saber que tantos outros passaram por coisas infinitamente piores. Tudo isso é inominável. Nunca deveria ter acontecido. Nem conosco nem com ninguém.

Na semana que vai acabando morreu o Coronel Brilhante Ulstra. O tipo de criatura mais desprezível que essa ditadura produziu. Um torturador e assassino. Lembrei que estava em Montevidéu quando morreu o maior responsável pela ditadura uruguaia, o presidente Juan Maria Bordaberry. Um colunista de jornal disse com toda a propriedade: "morreu cercado pela família e terá enterro digno, tudo o que ele negou a suas vítimas". Racionalmente é isso. Mas quer saber? Não odeio Brilhante Ulstra nem tive grandes sentimentos ao saber de sua morte.

Com todas as dificuldades que vivemos nós acabamos superando aquilo tudo. Tanto que meus irmãos mais novos provavelmente nem saibam do que aconteceu. Meu pai e minha mãe estão vivos até hoje, e com todas as limitações muito humanas que possuem, são responsáveis por eu ser quem sou. Graças a meus méritos e algumas oportunidades únicas que tive acabei fazendo graduação, mestrado e doutorado em História na Unicamp. Tenho casa própria quitada num bairro simples, semelhante àquele em que cresci. Tenho uma filha trabalhadora e guerreira, que ama seu pai e sua mãe, acha sua avó um mito e é muito melhor que eu. Em suma, não me sinto nenhum coitado, muito pelo contrário.

Meu problema com a ditadura mora em outro lugar. E está mais em 2015 que em 1964. Na verdade não é um problema, são dois. O primeiro é ver a relativização da ditadura. A gente vê inúmeros discursos por aí em filmes, jornais, revistas, TV e internet mais ou menos assim "é, a ditadura não era legal, os opositores eram terroristas, vamos condenar todos". Não era nada disso. Quem diz isso está mentindo. Os oposicionistas nunca foram responsáveis pela morte de centenas de inocentes. Pode se discutir o que eles queriam fazer, mas na prática não fizeram nada. Eles nunca ocuparam o Estado. Foram apenas vítimas. Quem matou foram os governantes de então. É uma equiparação absurda: o que efetivamente aconteceu é igualado ao que se supõe que poderia ter acontecido caso pessoas que não fizeram nada tivessem a chance de fazer o que imaginamos que eles fariam. O nome disso é canalhice.

Na verdade essa não é minha maior irritação. Quem defende coisas assim é tão babaca e imbecil que eu nem sei como lidar. Há problemas maiores. O principal é que tem gente hoje que olha para pessoas como Brilhante Ulstra e vê honestidade, coragem, sinceridade, coisas assim. Um membro do Estado que torturou e matou pessoas desarmadas que estavam sob sua custódia vira simbolo de honestidade. Alguém que massacra indefesos vira símbolo de coragem. Quem diz que oprimidos devem ser oprimidos para sempre é simbolo da honestidade. Em suma, Brilhante Ulstra nos mostra os motivos pelos quais existe quem vote e admire um lixo humano como Bolsonaro.

Pois em nosso país não falta quem ache ainda hoje que coragem é atacar os que sempre se deram mal. Essas pessoas olham para evangélicos invadindo terreiros de candomblé e não se importam. Lêem que alguém foi morto porque alguém achou que a pessoa era homossexual e não se incomoda. Ouve histórias de mulheres agredidas e estupradas, lamenta e segue a vida. Pra gente assim, o problema do mundo é que a opressão está pouca. Acha que cristãos heteros brancos e homens têm poucos privilégios. Enquanto existir isso, Brilhante Ulstra estará muito sorridente em algum lugar do inferno.

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