sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Notas sobre o sofrimento alheio

"tudo bem ser chamada de sapatão na rua. não apanhando tudo ok".

Ouvi essa frase ontem, de alguém que eu gosto muito. No fim da conversa ela acabou ficando brava comigo. Pela primeira vez em anos e anos de amizade ela ficou puta comigo. Pois me deixei levar pelo primeiro impulso, que foi dizer "caralho, tudo bem ser chamada de sapatão é teu cu, que absurdo". Hoje não conseguia pensar em outra coisa. Um pouco por estar chateado com alguém que gosto muito estar zebrada comigo. Mas principalmente por outra coisa.

Meu discurso era o discurso acadêmico de quem vive no ar condicionado. Mais que isso, era o discurso de quem não sabe o que é a experiência concreta de viver o que ela vive. E querendo ainda por cima normatizar suas atitudes e decidir como ela deveria agir. Não sei se ela se deu conta, mas a raiva dela passou muito por aí. Por "mano, quem você pensa que é pra querer me dar aula de como combater o preconceito contra lésbicas? Chegou atrasado e quer sentar na janela?".

Pior que esse foi daqueles momentos horríveis em que você se vê fazendo algo que teoricamente detesta. Como homem branco hetero jamais me identificaria como membro dos movimentos feminista, negro e LGBT. Simpatizo sim, até o fundo da alma. Mas me recuso a qualquer sugestão de que eu possa falar em nome dessas pessoas. Sei o quanto isso é autoritário e mantenedor do eterno roubo de protagonismo dos subalternos. Sei perfeitamente que meu papel nisso é tentar entender melhor a experiência desses grupos. Sabendo que nunca chegarei lá, mas fazendo o possível para tentar avançar nisso.

Aí ontem dei aula sobre Edward Palmer Thompson. Meu ídolo supremo entre os historiadores. O cara que enxotou a todos nós do mundo dos modelos e nos mandou entender a experiência concreta da subalternidade. Tudo lindo. Mas duas taças de vinho e 15 minutos de papo depois tava lá eu tentando ensinar a uma lésbica como uma lésbica deve lutar contra a opressão. Supostamente eu sabia melhor que ela. Não acho isso, mas me comportei como se achasse, ela entendeu assim e tem toda a razão.

Quando escrevi o primeiro post na volta do blog argumentei que todos nós somos racistas, machistas e homofóbicos. Somos mesmo. Fomos criados em um mundo assim, com esses valores. Mas mantenho o que disse naquela ocasião. Termos nascido e crescido num mundo assim é um dado. Nada vai mudar o passado. A escolha é em relação ao futuro. Podemos julgar o sofrimento alheio, minimizando e chamando de mimimi. Ou podemos tentar aprender com a experiência dos que sofrem como é viver um cotidiano opressor. Essa parte é nossa escolha. E não há desculpa para escolher o lado opressor nesse caso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário