segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Uma infância na ditadura



Há quase 10 anos não tenho qualquer contato com meu pai. Por motivos que não vêm ao caso aqui. Mas mês passado teve o dia dos pais, eu quis de alguma forma lembrar a data. Me ocorreu essa foto aí, dele comigo logo após eu nascer, em 1972. Nunca tinha visto a foto, minha mãe tinha me mostrado uns dias antes. Postei no facebook. Meu tio, colega de trabalho dele na Companhia Siderúrgica Nacional, irmão da minha mãe, fez um comentário sobre como aqueles tempos foram duros pra nós. Arrematou com um "sobrevivemos". Que me doeu no fundo da alma, pois eu sabia exatamente do que ele falava.

Ninguém da minha família nunca deu um tiro na vida. Nunca foram de nenhuma organização. Naqueles anos duros eles eram apenas uma família operária tentando reconstruir a vida após a morte prematura do meu avô. Eram, e continuam sendo, uma gente com aquele senso de dignidade que quem nasceu na classe trabalhadora conhece perfeitamente. Uma coisa meio "temos de enfrentar o mundo. que sejamos honestos e corretos ao menos. Se perdermos, ao menos teremos a consciência tranquila". Em suma, pessoas absolutamente inofensivas que só queriam uma vida melhor.

Mas eles todos cometeram um crime monstruoso: não gostavam de ditadura. Queriam um país democrático. E no auge do regime, aproximadamente entre 1968 e 1974, isso era uma coisa intolerável. A ditadura naquele momento não tolerava ninguém, absolutamente ninguém, que estivesse em seu caminho. Sem entrar em muitos detalhes, meu pai e meu tio foram presos. Meu pai nunca falou sobre isso, com duas exceções. Uma vez me disse que após ser preso o apartamento foi revirado pelos militares, que mexeram em todos os seus livros. Acrescentou: "nunca vi ter tanto medo de livro como aquele pessoal da ditadura". Na outra, disse que chegou a pegar o formulário para solicitar indenização pelo que passou, mas simplesmente não conseguiu dar conta das lembranças dolorosas e desistiu. Achou melhor deixar pra lá.

Um par de anos atrás eu estava com um problema pessoal que não vem ao caso. Minha prima me levou a um tratamento alternativo. Não lembro o nome do tratamento, nem da pessoa, só lembro que funcionou perfeitamente. Mas em um certo momento a terapeuta falou assim: "senti algo muito forte aqui. sua família teve problemas com a ditadura, não foi? eles tinham muito medo. você cresceu num ambiente de medo por causa da ditadura. Seus pais tinham medo que você sofresse por isso. E esse clima te afetou". Detalhe: eu nunca tinha visto a pessoa antes desse dia, e não tinha mencionado vagamente o assunto.

O tempo passou, a ditadura acabou sem deixar saudades em ninguém. Aí de repente vemos pessoas em 2015, muitas das quais sequer eram nascidas na época, culpando os presos, torturados e mortos pelos que sofreram. O que não tem nenhuma diferença para quem diz que a mulher tal pediu para ser estuprada, já que estava de minissaia. Nos dois casos se culpa a vítima. Pessoas burras, mal intencionadas, ou apenas ignorantes mesmo, olham para os que sofreram com aquilo tudo, vêem todos como versões nacionais do Stalin e concluem que elas passaram um período difícil por culpa delas. Na melhor das hipóteses eram idiotas. Na pior, eram terroristas que queriam impor uma ditadura terrível no país.

A parte que talvez seja mais dolorosa é que muita gente que diz isso são jovens que não viveram a época. Não sabem que era um regime ditatorial assassino apoiado por empresários e pelos EUA. Por desinformação e burrice acreditam em gente mal intencionada que pinta a ditadura como salvadora da liberdade contra uma horda de comunistas que matavam inocentes. Ainda não consegui decidir se tenho raiva ou pena dessas pessoas. Não consigo imaginar como alguém com um sistema cognitivo saudável possa achar coisas assim.

A parte que me irrita em particular é essas pessoas serem assim porque o PT está no governo. Não porque eu seja eleitor da Dilma, mas porque mostra o quanto de oportunismo há nisso. Quem gera esses discursos no fundo só quer caracterizar a Dilma como uma comunista terrorista, e para isso joga no lixo a reputação de incontáveis pessoas que sofreram barbaramente tentando construir um país melhor para seus filhos. E mesmo que você olhe a coisa sob o ângulo do "eles queriam implantar uma ditadura" o argumento não fica em pé 2 segundos. Afinal você já viu alguém ser condenado por algo que quis fazer? Claro que não. O que essas pessoas queriam fazer não importa. Não aconteceu. Não foram elas que mataram centenas de pessoas. Foi a ditadura.

Na verdade a parte mais deprimente é que eu tenha ainda de falar sobre isso em pleno 2015. Não devemos esquecer a ditadura, mas ela só deveria aparecer quando formos punir seus assassinos ou lembrar de algo para que nunca mais se repita. É inacreditável ter de lidar com pessoas que acham que o grande problema da ditadura eram os comunistas terroristas, e não termos tido um Estado que matava seus cidadãos. Mas nosso desprezo da história misturado com a total insanidade do nosso debate político nos levou ao ponto de ver gente culpando as pessoas assassinadas e agredidas pelo Estado por terem passado por isso.

2 comentários:

  1. Filho da p, não sabia que tu escrevia tão bem assim.

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  2. - Bravo! Vamos em frente! Ainda temos uma era pela frente para superar essa conversa de rodapé sobre a liberdade. Afinal, não há opressores sem a cumplicidade de oprimidos. Não sei como explicar mas parece que uma ditadura gera um conforto par muita gente que prefere a condição de gado, para não ter que criar, avançar, ousar, desenvolver-se. Nos traz à lembrança "O medo à liberdade", de Erick Fromm

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