domingo, 15 de novembro de 2015

Muçulmanos

Profissionais que estudam temas culturais sabem muito bem que identidades se constroem pelo contraste. Ou seja, sempre privilegiaremos o que nos diferencia do outro na hora de construirmos nosso lugar no mundo. Um exemplo simples: o arroz com feijão é consumido em larga escala de norte a sul do país. Mas justamente por isso não é marcador de identidade regional de nenhum lugar do Brasil, pois não serve como diferenciador. Se usam coisas bem menos consumidas (bode aqui no nordeste, churrasco no RS, etc.) mas que cumprem esse papel diferenciador.

O Ocidente pretende se diferenciar do resto do mundo por uma narrativa da modernidade que teria, entre seus traços particulares, o respeito e a tolerância pelas diferenças. Supostamente seríamos os únicos com essa capacidade. O que significa que seríamos uma ilha de racionalidade em um planeta de bárbaros. Uma definição identitária como essa demanda desesperadamente por um Outro bárbaro, incivilizado e intolerante. Os muçulmanos acabaram assumindo esse papel em nosso imaginário. Dizia para meus alunos semana passada: criamos um combo que associa islamismo, árabes, fanatismo e intolerância. Algo completamente irracional que visa justificar a imagem de que somos os únicos racionais.

Talvez não seja demais esclarecer que quando digo que essa é uma concepção irracional não quero dizer que não existam aquelas coisas. Mas são generalizações francamente abusivas. Há centenas de milhões de muçulmanos que não são árabes (iranianos e indonésios, por exemplo), e a ideia de que todos islâmicos são jihadistas é de chorar. 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) são muçulmanas. Se todas fossem terroristas o mundo nem existiria mais.

Tão ruim quanto isso é a nossa auto imagem. Acreditamos sinceramente que somos uma civilização tolerante. Criamos o nazismo, matamos judeus e muçulmanos, temos pena de morte, somos racistas, machistas e homofóbicos, mas embora vejamos isso diariamente achamos que os muçulmanos são piores. Que eles não são humanos como nós, não têm compaixão, não enterram seus mortos e não amam seus filhos. Eles não são humanos como nós. Por isso, se muçulmanos matam um de nós podemos matar um milhão deles como vingança. Eles não são como nós.

Por tudo isso a questão dos refugiados de guerra da Síria gerou tanto alarde. Muita gente, inclusive na esquerda, se disse temerosa com medo de uma invasão de muçulmanos homofóbicos e machistas. Como se pessoas que votam em Berlusconi e Le Pen precisasse de alguém que os ensinasse essas coisas. Como se a Síria não fosse um dos países mais laicos da região. O fato de serem muçulmanos dispensa maiores explicações: só podem ser machistas, homofóbicos, homens-bomba e gente que não possui a nossa humanidade.

Só tive uma experiência limitada com muçulmanos, na semana que passei em Istambul. Antes de ir falei com duas pessoas. Uma brasileira que mora lá me disse que Istambul era tranquilo, que eu não me preocupasse com nada diferente do que eu precisava me cuidar no Brasil. Uma turca que era vizinha da minha então namorada italiana avisou que não havia nada de muito diferente, exceto não existir porco ou Cristo, uma definição que me fez rir muito, mas se mostrou real: muçulmanos não comem carne de porco mesmo. Mas fazem o capeta com cordeiro, então tudo bem.

Tinham me falado maravilhas de Istambul. Mas não achei essa coisa toda. Gostei muito, mas achei superestimada. A parte histórica é infartante. Para um brasileiro, conhecer construções do século VI é mais que um sonho. Comida também é excelente. Nada que soe exótico pra nós. Diferente da nossa, bem temperada, mas nada que nos faça pensar que estamos em outro planeta. A cerveja também é muito decente.

As pessoas são um capítulo à parte. Istambul é parte européia e parte asiática. É um ponto de convergência. No aeroporto já fiquei fascinado por nunca ter visto gente de tantos tipos, cores e tamanhos diferentes. No painel de chegadas e partidas tinha vôo de tudo que é lugar do mundo. Impossível achar que quem vive num lugar assim seja esse mar de intolerância, pois simplesmente não há como. Cheguei, o aeroporto estava uma zona (havia caído um temporal master, impedindo os vôos de pousar, e quando acabou todos pousaram de uma vez), mostrei meu passaporte para o fiscal da imigração, ele viu de onde eu era, perguntou "e o 7 a 1, hein?", riu, carimbou o passaporte e fui atrás de um táxi. Tudo bem comum.

Nas ruas as mulheres usam vários tipos de roupas. Muitas com vestimentas que associamos ao islamismo, outras em trajes ocidentais. Porteiro do hotel me explicava que a Turquia é um país laico e eles têm muito orgulho dessa característica, que atribuem ao fundador do país, Mustafá Kemal, o "Ataturk", cuja foto está por todos os lugares. Se no Brasil o futebol é uma mania nacional, lá é muito mais que isso. Quando percebiam que eu era brasileiro, 11 a cada 10 pessoas vinham falar de futebol. Ronaldinho Gaúcho, em particular, era um tema da curiosidade e admiração.

Claro que não são pessoas perfeitas. Inclusive em várias coisas lembram os brasileiros, e sejam até piores. Tentar roubar na hora de dar o troco é uma doença nacional. Um dia pegamos um taxi, o cara fez um comentário super machista sobre mulheres dirigirem mal, minha então namorada italiana fez comentários indignados comigo e o taxista começou a passear só pra nos sacanear (pessoas de Istambul aparentemente sabem algo sobre todas as línguas do mundo). No mítico mercado público, do século XV, tentam se aproveitar de você de todas as maneiras possíveis (mas a visita vale demais assim mesmo).

Ao menos nessa viagem, o que vi foi que muçulmanos são gente como nós. Amam seus filhos, choram seus mortos, amam futebol, fazem uma comida ótima e são trambiqueiros. E comem aquelas coisas que a gente pensa que só existem na Biblia, tipo tâmaras. Ao menos pelo que vi a imagem ocidental não se sustenta por um segundo. Certamente deve haver intolerância, como também há de sobra no Ocidente. Em suma, não vi nada muito diferente do que conhecemos. No máximo diferenças culturais, como senti também na Itália, na Holanda ou em outras partes do Brasil, o que é completamente normal.

Termino este post com a sensação de só ter dito coisas óbvias. Mas vivemos em um mundo em que ver o óbvio virou uma virtude.

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