quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Por que precisamos do dia da consciência negra

Quem conhece alguma coisa sobre meu trabalho acadêmico sabe a importância que o tema do racismo tem para mim. Não é dificil entender por que. Cresci numa cidade com muitos negros, tive muitos amigos negros a vida toda. Mas nasci em 1972. Fui criado em um mundo em que se achava que fazer piada racista era normal. E quando falo "piada racista" estou falando em coisas absolutamente escancaradas tipo "por que o mundo é redondo? para os pretos não cagarem nos cantinhos". Meus amigos negros de infância tinham apelidos como "sombra", "nublado", etc. Cansei, mas cansei, de chamar gente de macaco e ver outros fazendo o mesmo. Ao mesmo tempo dizíamos que não havia racismo, que tudo isso era brincadeira e tal.

Na Unicamp ouvi, em meados dos anos 90, um professor, historiador bem famoso, falar assim: "ah, gente, disciplinar negro não dá, né?". Veja o quão recente é o racismo aberto em qualquer lugar. Pra quem não sabe: a Unicamp é referência nacional na área de escravidão, talvez seja a grande especialidade daquele grupo de professores. E há 20 anos se podia ouvir isso de um autor nacionalmente reconhecido perante a complacência de quase toda a turma, inclusive eu. Esse foi o mundo em que me criei. Então não tem essa de "tenho amigos negros" não. Fui criado num mundo extremamente racista. Querer dizer que fiquei imune à isso seria me considerar alguém acima do mundo em que vive.

Sei que há gente de bom coração que acredita genuinamente que não é racista. As entendo, mas infelizmente elas estão erradas. Ter amigos negros e amar a todos não quer dizer que você não é racista. O cara que mata a esposa pode amar a mãe, a irmã, etc. e nem por isso deixa de ser machista. Possivelmente na cabeça dele ele ame até a esposa que matou. Tem pesquisa inclusive mostrando que o racismo é particularmente violento em familias em que coexistem brancos e negros. Um ponto em que a militância negra tem muita razão é justamente em denunciar o caráter "discreto" do nosso racismo. Tem uma pesquisa que mostra que a imensa maioria dos brasileiros acredita que há racismo no país mas não se julgam racistas. Racista sempre é o outro.

Justamente por isso não acho que o alvo das campanhas devam ser essa facção lunática de religiosos que sai por ai invadindo terreiro e quebrando imagem de divindades de religiões afro-brasileiras. Essas pessoas são lunáticas. São tema para policiais e psiquiatras. Não vão ser convencidas de nada. Talvez devam ser estudadas pela medicina para se descobrir como viver sem cérebro. Acho que o tema é outro: que as pessoas entendam que por mais que sejam bem intencionadas e gostem genuinamente de alguns negros são racistas assim mesmo. Aprendam a reconhecer isso e ajam tentando mudar.

Aqui vai uma historinha real. Minha irmã é mais morena que eu e se casou com um negro. Sendo assim, tiveram uma filha negra, que hoje tem, se não me engano, seis anos (a senilidade precoce não ajuda a guardar esse tipo de coisa). Segundo ela, quando leva a filha pra brincar na pracinha as crianças brancas se afastam com ajuda das mães. Uma linda menina inocente que inunda qualquer espaço em que esteja de alegria e vida tendo de passar por isso. Quando penso nisso e no que mais ela terá de passar tenho vontade de sair por aí dando porrada em todo mundo. Infelizmente não é específico dela. Há vasta bibliografia sobre isso, que mostra inclusive que crianças muito novas já discriminam barbaramente os coleguinhas negros. Professores também.


Claro que nada disso deveria existir. E há exemplos disso. Minha sobrinha tem dois irmãos, um casal de gêmeos filhos da minha irmã de um relacionamento anterior. São muito brancos e já chegaram na adolescência. Todo mundo pergunta a eles como podem ter uma irmã negra. Eles não entendem. Pra eles essa categorização racial simplesmente não faz sentido. Na cabeça deles não é "somos brancos, minha mãe também, e temos uma irmã negra como o marido da minha mãe". Essa não é uma questão pra eles e ponto final. Deveríamos viver em um mundo só com pessoas assim.

Mas não vivemos. E uma das coisas que aprendi com a história é que privilegiados nunca concedem direitos. Eles têm de ser arrancados à fórceps pelos subalternos. Tudo o que os negros conseguiram melhorar nos últimos 120 anos foi devido à luta deles. Então tem de ter dia da consciência negra sim. Só não pode virar festa, dia de branco ir ver espetáculo de samba, capoeira, maracatu, etc. para se sentir descolado e galeroso. Tem de ser dia de luta. De esfregar o racismo na cara da sociedade. Fazer com que todos sejam obrigados a encarar aquilo que muita gente quer varrer pra baixo do tapete, por escrotidão, visão privilegiada de mundo ou falta de reflexão e conhecimento. Tem de ir pro confronto. Não há outra solução possível.


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