quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A ditadura e as surpresas da memória


Esta semana dei uma das aulas mais divertidas da minha vida. O tema era o Brasil dos anos 1980. A diversão residia no fato de que muitas pessoas e instituições daquele tempo estão vivas hoje, só que muito diferentes, representando coisas totalmente distintas daquele tempo. Nem minha autoridade de professor, historiador e testemunha ocular dos fatos fez com que eles conseguissem acreditar que Silvio Santos foi candidato a presidente, que o PMDB era um partido muito respeitado e partidos como PT e PC do B se definiam verdadeiramente como esquerdistas. Nos olhos deles eu via claramente a situação: queriam acreditar em um professor que eles respeitam, mas simplesmente não conseguiam imaginar aquilo tudo



Mas o mais inacreditável pra eles foi quando disse que naquele tempo ninguém queria mais saber de ditadura. Metade da aula acabou sendo consumida por esse tópico, tamanha a incredulidade que essa afirmação despertou nos bravíssimos rapazes e moças que assistiam com atenção aquilo tudo. E eu entendo eles. O choque das minhas lembranças com o que eles escutam por aí mostra bem como a memória é um negócio complicado.
Antes de tudo é bom explicar uma coisa: ninguém queria saber de ditadura naquele momento não porque todos se converteram à esquerda. A questão é que, após um auge de popularidade no governo Médici, nos últimos 10 anos o regime militar foi um fracasso total. A inflação subia, os salários eram achatados, as greves explodiam, assim como os pedidos de redemocratização. O governo de João Figueiredo desde o primeiro dia estava destinado a ser o último dos militares. Não havia a menor condição: direita ou esquerda, ninguém mais queria aquilo. O Brasil estava no chão, culminando com o setembro negro em 1982, em que fomos à falência total, sendo salvos do caos pelo FMI. A maioria não era contra a ditadura por ideologia, mas pela simples constatação de que o regime na sua segunda metade era um fracasso total. Qualquer pessoa que fosse viva na época se lembra disso.
Meus alunos, que nem eram nascidos nesse tempo, não entendem que tenha sido dessa maneira porque escutam pessoas dizendo que no tempo da ditadura tudo era melhor. Mas a questão é que essa percepção é quase inteiramente uma construção a posteriori. Procure nas fontes da época, jornais, vídeos, etc., voce não vai achar ninguém dizendo que a ditadura tinha sido uma coisa boa. Por que muitos dizem isso hoje?
Talvez a grande causa seja precisamente a memória. Claro que ninguém acha que o Brasil é o que deveria ser. Pessoas mais conservadoras tem muito aborrecimento em particular com violência e corrupção (embora não com pobreza e desigualdade). E aí lhes parece que no tempo da ditadura essas coisas não existiam. Grande tolice, claro. Corrupção em regimes ditatoriais sempre é pior que em regimes democráticos, com a ausência de fiscalização. E sobre a violência, vale lembrar que apenas um ano depois do fim da ditadura, Moreira Franco se elegeu governador do Rio prometendo acabar com o domínio que o tráfico havia estabelecido no estado.
Em suma, tudo isso são reconstruções posteriores. Na época ninguém achava que a ditadura era uma coisa boa. E simplesmente não havia como achar isso. Noves fora as prisões, torturas e assassinatos, os militares entregaram um país horrível aos civis. A economia ia mal, o poder de compra do trabalhador estava aniquilado, a inflação estava lá em cima (a inflação mensal era infinitamente superior à anual de hoje), e a sociedade como um todo não aguentava mais aquele ar irrespirável depois de 20 anos de mordaça.
Ditadura boa é ditadura no passado distante. Na época mesmo, ninguém mais queria saber daquilo. O resto vai pra conta da memória traiçoeira.

Um comentário:

  1. Pelo menos vc tem o blog pra eu poder assistir as aulas que não tivemos.
    Eita agora deu saudades daquela turma vazia de 9º período...
    Obrigado por compartilhar essa aula com a gente, Tiago!!

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