quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A Reparação que o dinheiro não traz


Quarta-Feira estive numa das mesas redondas mais legais que já participei na vida (aliás, parabéns aos estudantes da UFRPE por terem organizado), tendo como tema a abertura de todos os arquivos sobre a ditadura militar. Tive o imenso prazer de ouvir dois antigos militantes que foram presos e barbaramente torturados falarem sobre sua experiencia. Não se vangloriaram, não expressaram ódio de ninguém. Mas mostraram toda a convicção e dignidade do mundo. A garotada da platéia ouvia em silêncio total. Eu segurava as lágrimas sabe-se Deus como, contendo duramente a vontade de sair gritando pela rua.
E eu pensava sabe em que? Nessas indenizações que o governo brasileiro tem pago aos que sofreram com prisões, torturas e exílio. Nada a reclamar disso (ainda que haja casos em que me pareça haver injustiças, mas a idéia geral está correta), mas há algo envolvido que me desagrada muito. Hoje em dia me parece mais claro que nunca que esse dinheiro nada mais foi, do ponto de vista dos nossos governantes, do que um cala-boca. Uma forma de reparar monetariamente um dano que extrapola completamente a questão financeira.
Que sob Sarney e Collor essa revisão não tenha acontecido é algo óbvio, já que, como diria o velho Brizola, ambos engordaram sob a ditadura. Mas há quase 20 anos somos governados por opositores da ditadura: primeiro Itamar, expoente da oposição política, depois FHC, cruelmente aposentado pelo regime antes dos 40 anos de idade (sim, depois ele se deu muito bem na vida, mas aí é outra história, mérito dele), aí Lula, que chegou a ser preso e construiu sua carreira na oposição aos militares, e finalmente Dilma, ex-guerrilheira e torturada.
E nada foi feito nesses quatro governos para responsabilizar os culpados por toda essa barbárie. O motivo é óbvio: os culpados estiveram em todos esses governos, muitos são parlamentares, governadores, grandes empresários, etc. Aí dá-lhe indenização, como forma de mostrar que estão fazendo algo. Mas aí é que está: o tipo de dano que essas pessoas sofreram não tem nada (ou muito pouco) a ver com dinheiro. Você faz idéia do que é ser covardemente agredido pelo próprio Estado que deveria te proteger? De ter danos físicos e psicológicos permanentes? De não poder enterrar seus filhos?
Entre trilhões de histórias que conheço sobre gente que sofreu com isso tudo, conto uma, que escutei na mesa-redonda citada. Uma senhora de 83 anos, mãe de desaparecido político, mora ainda hoje na mesma casa que há 40 anos. Não aguenta mais subir as escadas, mas não muda, com a esperança que seu filho por milagre tenha sobrevivido às torturas e esteja por aí, procurando sua casa. Dá pra fazer idéia do que é isso?
O Brasil ainda tem algo como 150 pessoas desaparecidas daquele tempo. E os sobreviventes vêem seus carrascos muito bem de vida, com ótimos empregos e uma velhice tranquila. E veja: encontrar esses corpos e punir os assassinos é só o primeiro (e indispensável) passo. Mas há muito mais. Essa enorme máquina assassina foi apoiada por muita gente. Muitos desses ainda hoje são membros respeitáveis da sociedade. Vários posam de democratas.
Já ouvi de sobreviventes que um respeitabilíssimo periódico, desses que se consideram "defensores da liberdade", na época emprestava seus veículos para o transporte de prisioneiros políticos. Já ouvi gente me contar que olhou nos olhos de pessoas que hoje são políticos importantíssimos (incluindo um que foi ministro) mas na época eram agentes civis da ditadura. O inominável Cabo Anselmo (que entregou sua namorada, grávida de um filho dele próprio, para morrer torturada) ainda é sustentado hoje por empresários, que ninguém sabe quem são. Um dos mais célebres dedo-duros, que entregou um dos mais importantes líderes da guerrilha para a morte, hoje ocupa um cargo altíssimo em uma poderosa multinacional, e ganha por mês mais que ganho em 2 anos.
Tudo isso tem de ser investigado. É coisa demais para varrer debaixo do tapete em troca de dinheiro. Essas pessoas todas merecem muito mais do que dinheiro. Merecem ver justiça. Não é "revanchismo", pois ninguém quer matar ou torturar ninguém. Queremos só a aplicação da lei. As sequelas, traumas e pesadelos que essas pessoas ainda sofrem precisam ao menos ser mitigadas com a divulgação do que aconteceu e a punição dos que merecem.

2 comentários:

  1. Pois é, também tenho a impressão que essas indenizações servem mais como um cala-boca do que outra coisa, afinal dinheiro nenhum pode desfazer danos da ditadura.
    O que acho bonito é que nas escolas e na mídia em geral, sempre que o assunto é tortura, ditadores e guerras, o cenário é longe do Brasil. Ditadura militar no Brasil ninguém fala. Adoram lamentar a morte de judeus na segunda guerra (esquecendo em grande parte as torturas que os próprios alemães sofriam ao serem suspeitos de dizerem uma palavra contra Hitler), mas ninguém para pra pensar nas dezenas de brasileiros que morreram durante a ditadura vítimas de tortura.
    Mesmo agora pra se falar em indenização, o espaço dedicado ao tema é curto. Será culpa da memória curta dos brasileiros, da preguiça "gigante pela própria natureza" - como cantou Roger Moreira, ou é mais uma das consequências da aplicação do "jeitinho brasileiro" feito pelos poderosos?

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  2. Acho bem por aí, um "jeitinho" para fazer algo sem que ninguém seja responsabilizado. Coisa bem brasileira: o assunto não é debatido e acha-se uma solução na qual presumivelmente ninguém perde nada

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