É generalizado entre os eleitores esquerdistas da Dilma o sentimento de decepção com o ministério que foi anunciado. E de fato é um sentimento facílimo de entender. Passamos anos defendendo o governo. Quando a coisa apertou e parecia que Aécio ia ganhar nós fomos para a rua. Não tenho nenhuma dúvida que Dilma jamais teria sido reeleita sem nossa ajuda. Aí quando ela ganha a eleição nomeia essas pessoas? Como assim? De fato soa intolerável.
Este post não tem qualquer pretensão de defender as nomeações. Quem acompanha o blog sabe que quem escreve aqui é um eleitor de esquerda que aprova as políticas sociais do PT mas não suporta o desastre político ideológico que vimos nos últimos 12 anos. Mas acho que vale tentar pensar de forma minimamente racional sobre o que está acontecendo.
A grande questão é: Dilma sabe que vai vir chumbo grosso no caso da Petrobrás. Não adianta ficarmos fingindo que está tudo bem se demonstrarmos o fato óbvio que o PSDB também fez a festa por lá e a mídia esconde isso. O fato concreto é: pessoas importantes do governo estão envolvidas. Isso virá à tona. Os grandes veículos de imprensa baterão pesado. Neste momento essa é a questão central para Dilma. E não adianta a gente se iludir: ela vai fazer o diabo para se salvar. E isso inclui nomear o capeta para o ministério se isso ajudar a alcançar o objetivo.
Tudo isso é péssimo sim. Mas me enoja ainda mais ver gente fazendo demagogia nas redes sociais bancando os indignados com isso tudo. Quem acompanha minimamente a política sabe que o ministério da Agricultura está nas mãos dos ruralistas desde sempre, incluindo os últimos 12 anos. Katia Abreu sem duvidas é um baita soco simbólico na cara. Mas em termos concretos, não difere do que vinha antes. O novo ministro do esporte não tem nada a ver com a área? Não. Mas me mostre em que Aldo Rebelo tinha ligação com o assunto. Isso é mais do mesmo. Desde que chegou ao governo o PT fez alianças com o que há de pior na nossa política. Quem votou na Dilma sem saber disso é muito inocente ou burro.
Sim, há coisas que matam de raiva. No meu caso particular o Cid Gomes como ministro da educação é pra querer morrer. É uma coisa horrorosa. Mas aí eu volto ao ponto de partida: quem achou que teríamos um ministério de esquerda? Quando teclamos 13 na urna e apareceu a cara do Michel Temer no canto como vice, e você confirmou, você realmente imaginava que viria por aí um governo sem alianças podres?
Vivemos num país em que a maioria do legislativo não tem ideologia e está pouco se fodendo se PT ou PSDB está no governo. Eles querem cargos, seja lá qual for o governo. Quem quer que ganhe as eleições sabe que só vai governar se fizer a vontade desse pessoal. E quando se trata de um governo com o cu na mão pelas roubalheiras que estao prestes a ser denunciadas, aí que essa gente se aproveita mesmo.
Resumindo ao extremo: o ministério da Dilma é um lixo sim. Mas muito pior é quem se diz surpreso, magoado, chateado, mas estava lá quietinho vendo o congresso se enchendo de picaretas. Gente que grita "REFORMA POLÍTICA" sem nem saber o que é isso, espera que um presidente pise nos outros dois poderes e vai chiar nas redes sociais quando isso não acontece. Aí sim temos a babaquice em estado puro.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
domingo, 14 de dezembro de 2014
O estupro nosso de cada dia
Seria muito fácil pra mim escrever um post indignado contra a babaquice conservadora personificada em Jair Bolsonaro enfatizando sua defesa da ditadura. Minha vida tem tudo a ver com isso. Meus pais e tios sofreram com ela. O post sairia de forma automática, sem que eu precisasse sequer pensar nele. Mas poderia soar como legislação em causa própria. Vou abordar a questão por outro ângulo então. Um ângulo que mexe com questões que eu nunca vivi, e em relação às quais eu estou do lado "vencedor".
Neste miserável ano de 2014 ouvi duas amigas de faculdade contando que foram estupradas há muito tempo. Uma foi encurralada no caminho de casa. Foi estuprada enquanto ouvia os moradores dos prédios vizinhos gritando "aeeeeeee". A outra foi vítima de estupro DUAS vezes. Uma, quando era uma garotinha pré adolescente. Outra, já na pós graduação, tendo como algoz um dos mais famosos intelectuais da nossa área. Nenhuma das duas teve coragem de denunciar o agressor. A primeira estava de minissaia e achou que seria considerada culpada por usar uma roupa assim num lugar vazio. A outra por, mesmo tendo ficado com ossos quebrados na cama por meses, temer ser vista como aproveitadora tentando tirar uma casquinha da fama de um sujeito importante na nossa área.
Elas estão muito bem hoje. Uma é professora de uma grande universidade pública paulista, outra ocupa posto semelhante no Rio de Janeiro. Não faço ideia do que elas sentem a respeito. Só posso imaginar o que deve ter sido a dor de uma agressão desse tipo somada à impotência, e a posterior tristeza de silenciar sobre o assunto por concluir que o agressor não seria punido. Quanto a isso não tenho nada a dizer.
Mas este post é exatamente sobre isso. Sou homem branco de classe média e heterossexual. Há 42 anos ando pelas ruas sem o menor medo de ser estuprado. Nunca precisei me preocupar com portas giratórias de banco se fechando. Sempre pude me vestir terrivelmente mal, com roupas horríveis e velhas sem medo de ser revistado ou ser considerado suspeito. Minha orientação sexual jamais me fez ter motivos para me preocupar. Andei de mãos dadas com minhas namoradas sempre que quis.
E é nesse contexto que aparece o pesadelo dos pesadelos. Um tipo que defende o aumento da opressão aos gays e fala de estupro como se fosse algo que só acontece com quem merece. Em suma, defende que a opressão aos subalternos da nossa sociedade é muito pouco, e precisa aumentar muito ainda. O que não teria importância, se não fosse o fato de: 1) esse lixo tenha sido reeleito deputado mais uma vez com uma votação consagradora graças à multidão que concorda com ele; 2) pior de tudo, a postura dele ser vista por essas pessoas como sintoma de coragem e honestidade.
Ou seja, para uma fatia nada desprezível dos brasileiros defender a opressão aos que já são oprimidos é um gesto de coragem. Vociferar contra quem já sofre todo santo dia é ser honesto. Ameaçar uma parlamentar eleita pelo povo de seu estado é "dizer a verdade". Sim, meus amigos, essa é a terrível verdade: esse é o país em que vivemos.
Este post não vai ter um fim. Pois vou ali chorar um montão. Pensar nisso tudo é deprimente. Ate mais.
Neste miserável ano de 2014 ouvi duas amigas de faculdade contando que foram estupradas há muito tempo. Uma foi encurralada no caminho de casa. Foi estuprada enquanto ouvia os moradores dos prédios vizinhos gritando "aeeeeeee". A outra foi vítima de estupro DUAS vezes. Uma, quando era uma garotinha pré adolescente. Outra, já na pós graduação, tendo como algoz um dos mais famosos intelectuais da nossa área. Nenhuma das duas teve coragem de denunciar o agressor. A primeira estava de minissaia e achou que seria considerada culpada por usar uma roupa assim num lugar vazio. A outra por, mesmo tendo ficado com ossos quebrados na cama por meses, temer ser vista como aproveitadora tentando tirar uma casquinha da fama de um sujeito importante na nossa área.
Elas estão muito bem hoje. Uma é professora de uma grande universidade pública paulista, outra ocupa posto semelhante no Rio de Janeiro. Não faço ideia do que elas sentem a respeito. Só posso imaginar o que deve ter sido a dor de uma agressão desse tipo somada à impotência, e a posterior tristeza de silenciar sobre o assunto por concluir que o agressor não seria punido. Quanto a isso não tenho nada a dizer.
Mas este post é exatamente sobre isso. Sou homem branco de classe média e heterossexual. Há 42 anos ando pelas ruas sem o menor medo de ser estuprado. Nunca precisei me preocupar com portas giratórias de banco se fechando. Sempre pude me vestir terrivelmente mal, com roupas horríveis e velhas sem medo de ser revistado ou ser considerado suspeito. Minha orientação sexual jamais me fez ter motivos para me preocupar. Andei de mãos dadas com minhas namoradas sempre que quis.
E é nesse contexto que aparece o pesadelo dos pesadelos. Um tipo que defende o aumento da opressão aos gays e fala de estupro como se fosse algo que só acontece com quem merece. Em suma, defende que a opressão aos subalternos da nossa sociedade é muito pouco, e precisa aumentar muito ainda. O que não teria importância, se não fosse o fato de: 1) esse lixo tenha sido reeleito deputado mais uma vez com uma votação consagradora graças à multidão que concorda com ele; 2) pior de tudo, a postura dele ser vista por essas pessoas como sintoma de coragem e honestidade.
Ou seja, para uma fatia nada desprezível dos brasileiros defender a opressão aos que já são oprimidos é um gesto de coragem. Vociferar contra quem já sofre todo santo dia é ser honesto. Ameaçar uma parlamentar eleita pelo povo de seu estado é "dizer a verdade". Sim, meus amigos, essa é a terrível verdade: esse é o país em que vivemos.
Este post não vai ter um fim. Pois vou ali chorar um montão. Pensar nisso tudo é deprimente. Ate mais.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
O problema não é o Bolsonaro, mas a sociedade que o apóia
Evito gastar muito tempo falando do Bolsonaro. Sinceramente não o vejo como um problema. Trata-se de mais um picareta oportunista entre tantos outros que temos em nosso país. Entendo perfeitamente as pessoas que têm nojo dele e o criticam, ainda mais depois da insuportavelmente absurda atitude perante Maria do Rosário. Uma das minhas melhores amigas foi estuprada. Duas vezes. Quando penso nele falando como se estupro fosse algo a que se faz jus (ainda mais no plenário do congresso, se dirigindo a uma deputada eleita pela população de seu estado) também sinto nojo, não consigo deixar de vê-lo como uma criatura abjeta. Isso não se discute. A questão é: Bolsonaro é o de menos.
A questão é: Bolsonaro não foi NOMEADO para o congresso. Foi eleito. Está no fim de seu sexto mandato como deputado federal, e em breve assumirá o sétimo, para o qual foi eleito com a maior votação dentre todos os que concorriam à vaga no estado do Rio de Janeiro. Mais que isso. Ele começou como um deputado que obtinha mandatos com votos de policiais e militares. Mas com a radicalização crescente dos últimos 12 anos se transformou em protagonista a ponto de ser um dos políticos mais votados e conhecidos do nosso congresso nacional. Então convenhamos que aí há algo em que temos de pensar.
Para mim a principal questão é: o que faz tanta gente se sentir representada por Bolsonaro? Me parece claro que o deputado capitaliza um vago e genérico sentimento de insatisfação conservadora. Pessoas que acham que gays estão dominando o mundo, que o Brasil é uma ditadura comunista, que acreditam que homens nasceram para dominar o frágil sexo oposto mas são obrigados a lidar com insuportáveis feministas de pernas peludas que odeiam todos os homens do planeta, gente que sente saudade da "ordem" dos tempos da ditadura (estão plenamente dispostos a ter de volta a censura, a amarra política e o caos econômico caso os subalternos tenham a boca fechada à força), e por aí vai.
Não é uma insatisfação politizada. Qualquer pessoa que tenha alguma noção do que é o PSDB sabe que é um partido que jamais endossou qualquer uma dessas posturas. Quem sabe minimamente quem são (ou foram) Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, José Serra e outros tem a perfeita noção de que o deputado devia odiar essas pessoas com o mesmo ardor que mostra contra o PT. Mas o fato de termos um governo petista no poder abriu espaço para que essa gente liberasse seus demônios como nunca. Termos absurdos como "petismo comunista bolivariano" foram o mote para uma onda absolutamente direitista que não se sente representada pelos dois partidos que disputam o poder há 20 anos. Mas o fato de termos um partido visto como "comunista" no poder liberou esses demonios.
Bolsonaro nada mais é do que um oportunista que percebeu que havia um nicho enorme nesse contexto. Passou a criar factóide em cima de factóide. Defesa da ditadura, crítica a feministas, apologia ao estupro, tanto fazia. O que importa a ele é marcar posição como o grande defensor desse mundo maravilhoso que se perdeu com a ascensão do comunismo-feminismo-gayzismo. Mais que isso, notou que seus factóides serviam para deixar exaltados seus opositores, o que serve para justificar seu absurdo discurso auto vitimizatório, de que é perseguido pela tal ditadura comunista-feminista-gayzista, fortalecendo então o apoio da camada lunática da nossa sociedade que acredita nessas coisas. Muita gente do nosso lado não percebeu que xingar Bolsonaro apenas o fortalece ainda mais. Para seus seguidores, essas críticas provam que ele é um perseguido por dizer a VERDADE que comunistas, gays e feministas querem esconder.
Creio que os leitores deste post entenderam o quanto sou radicalmente opositor à tudo o que esse imbecil defende. Mas me parece que o buraco está bem mais embaixo. Suponhamos que ele se retirasse da política hoje. O que vocês acham que aconteceria? Alguém duvida que apareceria outro oportunista com o mesmo discurso em busca dos mesmos votos dele? Então, o problema não é Bolsonaro. Nem Olavo de Carvalho, Lobão, Feliciano. É a quantidade de pessoas da nossa sociedade que segue achando que vivemos numa ditadura comunista, que gays tem de morrer, que mulheres existem para servir aos homens e que negros têm de agradecer por não serem chicoteados. Quando acabar essa visão de mundo, nunca mais teremos bolsonaros e felicianos. E é contra isso que temos de lutar.
A questão é: Bolsonaro não foi NOMEADO para o congresso. Foi eleito. Está no fim de seu sexto mandato como deputado federal, e em breve assumirá o sétimo, para o qual foi eleito com a maior votação dentre todos os que concorriam à vaga no estado do Rio de Janeiro. Mais que isso. Ele começou como um deputado que obtinha mandatos com votos de policiais e militares. Mas com a radicalização crescente dos últimos 12 anos se transformou em protagonista a ponto de ser um dos políticos mais votados e conhecidos do nosso congresso nacional. Então convenhamos que aí há algo em que temos de pensar.
Para mim a principal questão é: o que faz tanta gente se sentir representada por Bolsonaro? Me parece claro que o deputado capitaliza um vago e genérico sentimento de insatisfação conservadora. Pessoas que acham que gays estão dominando o mundo, que o Brasil é uma ditadura comunista, que acreditam que homens nasceram para dominar o frágil sexo oposto mas são obrigados a lidar com insuportáveis feministas de pernas peludas que odeiam todos os homens do planeta, gente que sente saudade da "ordem" dos tempos da ditadura (estão plenamente dispostos a ter de volta a censura, a amarra política e o caos econômico caso os subalternos tenham a boca fechada à força), e por aí vai.
Não é uma insatisfação politizada. Qualquer pessoa que tenha alguma noção do que é o PSDB sabe que é um partido que jamais endossou qualquer uma dessas posturas. Quem sabe minimamente quem são (ou foram) Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, José Serra e outros tem a perfeita noção de que o deputado devia odiar essas pessoas com o mesmo ardor que mostra contra o PT. Mas o fato de termos um governo petista no poder abriu espaço para que essa gente liberasse seus demônios como nunca. Termos absurdos como "petismo comunista bolivariano" foram o mote para uma onda absolutamente direitista que não se sente representada pelos dois partidos que disputam o poder há 20 anos. Mas o fato de termos um partido visto como "comunista" no poder liberou esses demonios.
Bolsonaro nada mais é do que um oportunista que percebeu que havia um nicho enorme nesse contexto. Passou a criar factóide em cima de factóide. Defesa da ditadura, crítica a feministas, apologia ao estupro, tanto fazia. O que importa a ele é marcar posição como o grande defensor desse mundo maravilhoso que se perdeu com a ascensão do comunismo-feminismo-gayzismo. Mais que isso, notou que seus factóides serviam para deixar exaltados seus opositores, o que serve para justificar seu absurdo discurso auto vitimizatório, de que é perseguido pela tal ditadura comunista-feminista-gayzista, fortalecendo então o apoio da camada lunática da nossa sociedade que acredita nessas coisas. Muita gente do nosso lado não percebeu que xingar Bolsonaro apenas o fortalece ainda mais. Para seus seguidores, essas críticas provam que ele é um perseguido por dizer a VERDADE que comunistas, gays e feministas querem esconder.
Creio que os leitores deste post entenderam o quanto sou radicalmente opositor à tudo o que esse imbecil defende. Mas me parece que o buraco está bem mais embaixo. Suponhamos que ele se retirasse da política hoje. O que vocês acham que aconteceria? Alguém duvida que apareceria outro oportunista com o mesmo discurso em busca dos mesmos votos dele? Então, o problema não é Bolsonaro. Nem Olavo de Carvalho, Lobão, Feliciano. É a quantidade de pessoas da nossa sociedade que segue achando que vivemos numa ditadura comunista, que gays tem de morrer, que mulheres existem para servir aos homens e que negros têm de agradecer por não serem chicoteados. Quando acabar essa visão de mundo, nunca mais teremos bolsonaros e felicianos. E é contra isso que temos de lutar.
domingo, 7 de dezembro de 2014
A quem interessam as manifestações anti-Dilma
A pergunta que está no título do post não é retórica. Parei para pensar sobre isso no último fim de semana. Essas manifestações são absolutamente sem finalidade: todos sabemos que Dilma venceu a eleição e governará o país pelos próximos quatro anos. No entanto elas se repetem, são noticiadas com destaque e não saem da pauta do debate político. Então me pergunto: por que?
Por dois motivos. Um tem a ver com o lado governista, e o outro diz respeito à oposição de direita. Nos dois casos trata-se de o início de embates em busca do protagonismo no ciclo que quatro anos de governo Dilma que está prestes a começar.
Comecemos pelo lado governista. Covenhamos que desde a vitória de Dilma não tivemos uma única boa notícia que seja. Nós, que historicamente militamos à esquerda e nos sentimos representados pelas ações do governo, tomamos uma porrada atrás de outra no período pós eleitoral. Por mais que não queiramos assumir, fomos ao paraíso na noite do dia 26 de outubro, mas depois chegou o inferno. O discurso da vitória da Dilma já apontava nesse sentido, e o que veio depois confirmou nossos piores medos. Não sabemos como serão os próximos quatro anos, mas todas as indicações que tivemos, como a formação do ministério, são de doer.
Então aparecem essas manifestações. Que pretendem prolongar a campanha para um terceiro turno. Nos devolvem àquele mundo confortável em que os ricos querem o PSDB no poder, enquanto o PT faz tudo pelos pobres. Uma dicotomia falsa que nos afasta do pesadelo do mundo real. As pessoas que estão ali de fato não têm senso de realidade e nada mais querem do que defender seus privilégios. Mas qualquer pessoa minimamente esperta sabe: rebater uma verdade com outra verdade é um recurso argumentativo brilhante, mesmo quando vazio. Vociferar contra o elitismo e a demofobia dessas pessoas nada mais é do que uma maneira de esquecermos que até agora Dilma não cessa de fazer coisas que odiamos após vencer as eleições. A existência de grupos de malucos que pedem ditadura militar (convenhamos, são ultra minoritários nessas manifestações) ainda nos dá o bônus de agir como se estivéssemos lutando pela sobrevivência da democracia. O que é uma tolice. Não há chance de golpe. Muito menos com o PSDB na liderança.
Mas também há o lado oposicionista da história. Quem conhece política de perto sabe que a política interna do PSDB é um ninho de cobras. Quem me informa sobre isso é gente que vota no partido desde sempre, inclusive. E é bastante evidente que após a eleição as lideranças tucanas vão buscar o protagonismo oposicionista, o que é muito normal. É o jogo da política. Cada um vai lutar com as armas que tem. E aí entra Aécio. Nunca foi um líder nacional. Não tem qualquer projeto para o país. Mas viveu seu momento de glória ao, pela primeira vez em 12 anos, fazer a oposição disputar com chances de vitória uma eleição presidencial. Natural que queira prolongar o clima de polarização eleitoral que o torna protagonista.
Nesse processo seu antagonista natural é Geraldo Alckmin, que tem uma agenda radicalmente diferente. Como todos os governadores do país, precisa ir ao governo com o pires na mão. Precisa de uma relação menos conflitiva com Dilma para ter a ajuda necessária para governar. Além disso, o governador paulista tem um projeto claro em mente. Para ele, o PSDB precisa trilhar um caminho mais conservador para se diferenciar suficientemente do governo federal. Mas para um projeto assim prosperar é absolutamente indispensável se afastar da extrema direita que defende coisas como o regime militar. Por isso Alckmin se mantém mais distante que Aécio das manifestações. Para Aécio o terceiro turno significa protagonismo. Para Alckmin é um antagonismo desnecessário com uma presidente de quem depende das verbas e o risco absolutamente desnecessário de uma foto tendo por perto uma faixa de algum imbecil defendendo a ditadura militar.
Não sejamos inocentes. Nós, eleitores, lutamos insanamente a favor de nossos candidatos no processo eleitoral deste ano. Eu saí para a rua para defender Dilma, fiz isso nas redes sociais, bloqueei adversários da minha vida, e os que eu amo de verdade eu mantive distância para que relações importantes não fossem prejudicadas pela política. Enfim: eu votei em quem acredito, tanto quanto os que estavam do outro lado. Mas sejamos cuidadosos: há o momento de ir para a rua defender o que acreditamos e há o momento de identificar quando se espera que você seja um ingênuo útil. Sair para a rua para defender o impeachment de Dilma ou argumentar que essas passeatas são uma tentativa séria de golpe é acreditar demais em Papai Noel. Tô fora.
Por dois motivos. Um tem a ver com o lado governista, e o outro diz respeito à oposição de direita. Nos dois casos trata-se de o início de embates em busca do protagonismo no ciclo que quatro anos de governo Dilma que está prestes a começar.
Comecemos pelo lado governista. Covenhamos que desde a vitória de Dilma não tivemos uma única boa notícia que seja. Nós, que historicamente militamos à esquerda e nos sentimos representados pelas ações do governo, tomamos uma porrada atrás de outra no período pós eleitoral. Por mais que não queiramos assumir, fomos ao paraíso na noite do dia 26 de outubro, mas depois chegou o inferno. O discurso da vitória da Dilma já apontava nesse sentido, e o que veio depois confirmou nossos piores medos. Não sabemos como serão os próximos quatro anos, mas todas as indicações que tivemos, como a formação do ministério, são de doer.
Então aparecem essas manifestações. Que pretendem prolongar a campanha para um terceiro turno. Nos devolvem àquele mundo confortável em que os ricos querem o PSDB no poder, enquanto o PT faz tudo pelos pobres. Uma dicotomia falsa que nos afasta do pesadelo do mundo real. As pessoas que estão ali de fato não têm senso de realidade e nada mais querem do que defender seus privilégios. Mas qualquer pessoa minimamente esperta sabe: rebater uma verdade com outra verdade é um recurso argumentativo brilhante, mesmo quando vazio. Vociferar contra o elitismo e a demofobia dessas pessoas nada mais é do que uma maneira de esquecermos que até agora Dilma não cessa de fazer coisas que odiamos após vencer as eleições. A existência de grupos de malucos que pedem ditadura militar (convenhamos, são ultra minoritários nessas manifestações) ainda nos dá o bônus de agir como se estivéssemos lutando pela sobrevivência da democracia. O que é uma tolice. Não há chance de golpe. Muito menos com o PSDB na liderança.
Mas também há o lado oposicionista da história. Quem conhece política de perto sabe que a política interna do PSDB é um ninho de cobras. Quem me informa sobre isso é gente que vota no partido desde sempre, inclusive. E é bastante evidente que após a eleição as lideranças tucanas vão buscar o protagonismo oposicionista, o que é muito normal. É o jogo da política. Cada um vai lutar com as armas que tem. E aí entra Aécio. Nunca foi um líder nacional. Não tem qualquer projeto para o país. Mas viveu seu momento de glória ao, pela primeira vez em 12 anos, fazer a oposição disputar com chances de vitória uma eleição presidencial. Natural que queira prolongar o clima de polarização eleitoral que o torna protagonista.
Nesse processo seu antagonista natural é Geraldo Alckmin, que tem uma agenda radicalmente diferente. Como todos os governadores do país, precisa ir ao governo com o pires na mão. Precisa de uma relação menos conflitiva com Dilma para ter a ajuda necessária para governar. Além disso, o governador paulista tem um projeto claro em mente. Para ele, o PSDB precisa trilhar um caminho mais conservador para se diferenciar suficientemente do governo federal. Mas para um projeto assim prosperar é absolutamente indispensável se afastar da extrema direita que defende coisas como o regime militar. Por isso Alckmin se mantém mais distante que Aécio das manifestações. Para Aécio o terceiro turno significa protagonismo. Para Alckmin é um antagonismo desnecessário com uma presidente de quem depende das verbas e o risco absolutamente desnecessário de uma foto tendo por perto uma faixa de algum imbecil defendendo a ditadura militar.
Não sejamos inocentes. Nós, eleitores, lutamos insanamente a favor de nossos candidatos no processo eleitoral deste ano. Eu saí para a rua para defender Dilma, fiz isso nas redes sociais, bloqueei adversários da minha vida, e os que eu amo de verdade eu mantive distância para que relações importantes não fossem prejudicadas pela política. Enfim: eu votei em quem acredito, tanto quanto os que estavam do outro lado. Mas sejamos cuidadosos: há o momento de ir para a rua defender o que acreditamos e há o momento de identificar quando se espera que você seja um ingênuo útil. Sair para a rua para defender o impeachment de Dilma ou argumentar que essas passeatas são uma tentativa séria de golpe é acreditar demais em Papai Noel. Tô fora.
sábado, 8 de novembro de 2014
O Brasil não está dividido
No calor da apertada vitória de Dilma mês passado não faltou quem visse nos resultados um sintoma da divisão do país. De um lado pobres e intelectuais, votando em Dilma. Do outro as classes médias e altas votando em Aécio. O fato de a maior vitória de Dilma ter sido no estado mais pobre da federação (Maranhão) e a maior vitória de Aécio ter ocorrido no estado mais "branco" da nação (Santa Catarina) parecia prova irrefutável do argumento. Aí aquele mapa do Brasil com os estados em que Dilma teve maioria pintados de vermelho, e os estados "aecistas" de azul rodaram o país. A teoria dos "dois brasis" parecia provada: Dilma, a candidata dos pobres, simbolizada por sua votação gigante no nordeste, e Aécio, o candidato dos brancos bem nascidos.
Infelizmente a vida não é tão simples. Pra começar, um candidato ter maioria em algum estado não significa que aquela unidade da federação seja dele, nem mesmo que ele tenha conquistado ampla maioria lá. Aécio ganhou apertado no Rio Grande do Sul, e Dilma venceu por pouco em Minas Gerais. Assim, pintar um estado qualquer de vermelho ou azul no mapa significa bem pouco. Os dois estados citados servem como exemplo. São estados que nos Estados Unidos seriam chamados de "estado-pêndulo", que às vezes vão para um lado, às vezes para outro. Não são classicamente destinados a nenhuma tendência política.
Na verdade há aí um grande erro, que é o de imaginar que o fato de que um candidato tem mais votos em um estado quer dizer grande coisa. O equívoco é que se trata de um conceito importado dos Estados Unidos, onde isso de fato faz sentido. Lá o presidente é eleito por um colégio eleitoral, em que o candidato mais votado em cada estado leva todos os eleitores daquela unidade da federação (o sistema "the winner takes it all", vulgo, o vencedor leva tudo). Num sistema assim faz sentido pintar um estado de azul ou vermelho mesmo que um partido tenha vencido lá por um mísero voto que seja. Mas no sistema brasileiro tanto faz. Meu voto aqui em Pernambuco em Dilma e o do meu vizinho em Aécio valeram exatamente igual e foram contados da mesma maneira. Pintar estados com as cores do partido vencedor não faz o menor sentido.
Mas podemos ir mais longe. Em qualquer democracia consolidada do planeta o fenômeno de estados que tendem a votar em um partido é comum. Podemos citar os Estados Unidos, que possuem a chamada "cunha republicana", que engloba os estados do centro oeste e do sul, sempre propensos a votar no partido republicano. Enquanto a costa oeste e o nordeste tradicionalmente pendem para os democratas. Aqui do nosso lado temos a Argentina, onde há 70 anos o norte e o sul votam sistematicamente no peronismo, assim como a provincia de Buenos Aires, enquanto o antiperonismo costuma se dar melhor na capital e em províncias agrárias ricas, como Santa Fé, Córdoba e Mendoza. No Uruguai desde o século XIX os blancos tem seu melhor desempenho nos departamentos rurais, enquanto os colorados fazem a festa nos mais urbanizados (e nos últimos 30 anos a Frente Amplio passou a ter Montevidéu como base). Então termos partes do Brasil mais ligadas ao governo e outras tendendo a oposição não tem nada de mal. Faz parte do jogo.
E há ainda uma parte ainda mais indefensável do argumento: o fato de a vitória de Dilma não ter sido de goleada. Na verdade não foi uma diferença pequena: 3,5 milhões de votos são mais do que a população inteira do Uruguai. Mas ainda assim isso foi usado para argumentar que o país está dividido, já que foi a menor diferença percentual na história das eleições presidenciais brasileiras. Mas aí cabe a pergunta: e daí? A lógica de uma eleição não é que o candidato mais votado governe? Não é esperado que em algumas eleições o vencedor terá uma grande margem de vantagem e em outras essa margem será menor? O argumento é completamente inócuo e falacioso.
Na verdade essa análise que identifica o país como dividido e vê isso como algo negativo é algo que se sustenta em uma série de equívocos. O primeiro é uma tradição do jornalismo político brasileiro: o imediatismo. No calor da hora são realizadas análises que se supõem definitivas. O jornalismo político brasileiro ainda não teve seu Fernand Braudel, para explicar a irrelevância das flutuações diárias da política, indicando que os movimentos de duração mais longa é que devem ser privilegiados.
Mas também não precisamos ser ingênuos. Claro que há um grande viés político nessa análise. Aos direitistas mais raivosos interessa difundir a ideia de que o PT dividiu o país artificialmente, inventando um ódio entre as regiões e entre as classes (mesmo que os discursos mais raivosos nesse sentido tenham sido de políticos e eleitores de Aécio bradando contra um suposto voto nordestino a favor do governo). Aos governistas mais nervosos também interessa o argumento. Afinal, dá a eles base para desenvolver uma versão paupérrima da ideia de luta de classes, em que os pobres votam em Dilma e os ricos em Aécio. Abundam dados desmentindo os dois lados: o maior crescimento de Dilma no segundo turno foi em regiões em que o bolsa família não é importante, e Aécio ganhou em todas as regiões da cidade de São Paulo, incluindo as periferias mais pobres, redutos históricos do PT desde os anos 1980. Mas o argumento pobre era validado por essa lógica ridícula do país dividido.
Num resumo extremo, eu diria que a lógica do país dividido não faz nenhum sentido e só interessa aos mais nervosos dos dois lados. O Brasil que vejo está como sempre. E acabou de passar pela eleição mais legal de sua história. Um referendo sobre os 12 anos do PT no poder, em que todos foram obrigados a tomar partido. Meu lado venceu, o que me deixa particularmente feliz. Mas a divisão do país é apenas um delírio. O que valeu mesmo foi ver como nosso país deu um gigantesco soco na cara dos que dizem que aqui só se liga para futebol e carnaval. Pra mim essa foi a grande lição. Sabemos discutir política e nos importamos com ela. Se fizemos isso bem ou mal, aí é outra história.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
A hora da auto crítica
Sou eleitor do governo. Mais que isso: militei insanamente por Dilma. Chorei como nunca quando ela ganhou a eleição. Não tenho a mais vaga dúvida que fiz o certo. Não podemos mesmo sair de um governo que proporcionou tantos avanços sociais para cair em um discurso que apenas prega o elitismo e o ódio ao que nosso governo está fazendo. Mas vamos combinar: precisamos fazer uma auto crítica muito séria. Muitas coisas não estão bem. Enumero algumas:
1) Corrupção. Evidentemente o PSDB não tem nenhuma moral para criticar o PT por isso. Nem nenhum grupo oposicionista. Todos tem lá seus episódios de corrupção, e não são poucos nem pequenos. Mais que isso: a oposição usou os episódios de corrupção do governo atual para despejar seu ódio pelo fato de a vida dos pobres ter melhorado nesses 12 anos. Não podiam confessar sua visão de elitista de mundo, então vociferavam contra o mensalão, como se só houvesse corrupção no PT. Hipocrisia pura. Mas isso não pode esconder para sempre o fato de que nosso governo deixou a roubalheira continuar como sempre. Semana passada, no dia seguinte à eleição, conversava com um sujeito que considero um dos melhores historiadores brasileiros, e ele me dizia "puta merda, cara, os camaradas precisam parar de roubar, pelo amor de deus". É isso. A hipocrisia e a histeria moralista e demófoba da oposição não podem ser usadas pra sempre como desculpa para as besteiras que acontecem no governo.
2) Por uma agenda do século XXI. Fantástico que o governo combata a pobreza. Isso é uma agenda do século XX que chegou viva ao século XXI graças à absoluta falta de sensibilidade social dos governos que vieram antes do PT. Como sabemos, isso garantiu a quarta vitória seguida ao PT. O nordeste mais uma vez despejou em massa seus votos pela manutenção de quem olhou por eles pela primeira vez em 500 anos. Maravilha. Mas e a agenda que domina o século XXI? Em relação a ela não tivemos nenhum avanço em 12 anos. Morrendo de medo dos conservadores e evangélicos, o PT nada fez em relação a coisas como política para drogas, direitos para homossexuais, aborto, e coisas assim. Profundamente lamentável. É claro que qualquer governo precisa estabelecer uma maioria parlamentar para governar, mas não é possível que fiquemos o resto da vida nos ajoelhando perante pessoas que vivem na Idade Média. Cristina Kirchner, por exemplo, entrou pra valer na briga pelo "matrimônio igualitário", e conseguiu aprová-lo, mesmo que com isso ganhasse a oposição virulenta do arcebispo de Buenos Aires, aquele mesmo que hoje se chama Papa Francisco e é o queridinho da esquerda. Em algum momento essas brigas terão de ser compradas.
3) Desastre político ideológico. Nos aspectos sociais e econômicos Lula e Dilma foram muito bem. A pobreza foi reduzida drasticamente, o país cresceu, o desemprego é baixíssimo. Mas a grande e incômoda verdade é: após 12 anos de governo petista o Brasil é tão conservador como sempre foi. Pior que isso: o governo petista estimulou uma verdadeira letargia ideológica no campo da esquerda. Algo como: se ganharmos a presidência o resto que se dane. Por isso elegemos esse congresso tão reacionário: simplesmente não demos importância a isso. Só pensamos na eleição para presidente. Por isso votamos em massa em péssimos candidatos a governador, simplesmente por que o PT decidiu que isso era melhor para garantir as alianças nas eleições presidenciais. Aqui em Pernambuco, por exemplo, o PT apoiou um tipo lamentável como Armando Monteiro. Votei no candidato do PSOL, mas meus amigos da minha geração em sua maioria votaram em Armando, envergonhados, mas achando que era o melhor para o partido. Já meus alunos de vinte anos não tiveram pruridos: votaram nesse lixo sem nenhuma dor de consciência. É a geração que o PT está criando. De esquerda, mas sem nenhuma preocupação com a coerência. Não é que meus alunos estejam errados. Simplesmente são filhos desse governo. Se preocupam com a vitória nas eleições presidenciais. (meus alunos, eu amo vocês, mas lamento muito que vocês tenham se formado politicamente sob essa lógica descrita acima. vocês podem e merecem mais que isso)
4) Alianças. Mais uma vez: existe uma coisa da qual não podemos fugir chamada governabilidade. Ok, qualquer governante precisa se aliar a pessoas com quem não sente qualquer identidade política. Mas precisamos mesmo ver Lula e Haddad tirando foto ao lado de um decadende Paulo Maluf que ainda por cima se mostra incapaz de transferir seus hipotéticos votos para o PT? Realmente nos ajuda em algum sentido ver Fernando Collor de Melo, contra quem minha geração foi à rua e que causou uma derrota que nos traumatizou pela eternidade, a nosso lado pedindo votos para Dilma? Talvez nada ilustre melhor o que digo neste item do que a patética imagem de um Sarney cambaleante com adesivo da Dilma e votando em Aécio. Realmente precisamos disso para a governabilidade?
5)O abandono das ruas. Uma das mais gloriosas tradições da esquerda mundial é seu amor pelas ruas, assim como sua inserção nos movimentos sociais. E essas eleições testemunharam uma absurda indiferença do PT nesse campo. Não é que a campanha governista tenha fracassado em colocar a militância nas ruas. Ela simplesmente não tentou fazer isso. Parece claro que o partido se convenceu que para vencer basta fazer alianças que garantam um bom tempo na propaganda eleitoral gratuita e botar um marqueteiro competente para mostrar as realizações do governo para que a vitória seja certa. E o susto monumental que tomamos neste ano mostrou que não é assim. Quando as pesquisas mostraram Aécio à frente a duas semanas do segundo turno a militância quis tomar as ruas para ajudar Dilma, e isso pegou o PT de surpresa. Não estavam preparados para isso. Aqui no Recife a militância foi para a rua em eventos organizados fora do partido e sem nenhuma ajuda partidária. Os figurões nem se davam ao trabalho de comparecer. Pelo que me contam os amigos, a história foi a mesma em outras partes do país. Não pode. Simplesmente não pode.
Infelizmente não acho que o partido e o governo vão aprender qualquer coisa com o susto deste ano. Estão convencidos demais que o fato de ser o melhor governo da história do país garante sozinho a vitória nas eleições presidenciais, que é a única coisa que importa a eles. E se perder, ouviremos aquela lista de desculpas prontas: mídia golpista, blá blá bla. Uma pena.
1) Corrupção. Evidentemente o PSDB não tem nenhuma moral para criticar o PT por isso. Nem nenhum grupo oposicionista. Todos tem lá seus episódios de corrupção, e não são poucos nem pequenos. Mais que isso: a oposição usou os episódios de corrupção do governo atual para despejar seu ódio pelo fato de a vida dos pobres ter melhorado nesses 12 anos. Não podiam confessar sua visão de elitista de mundo, então vociferavam contra o mensalão, como se só houvesse corrupção no PT. Hipocrisia pura. Mas isso não pode esconder para sempre o fato de que nosso governo deixou a roubalheira continuar como sempre. Semana passada, no dia seguinte à eleição, conversava com um sujeito que considero um dos melhores historiadores brasileiros, e ele me dizia "puta merda, cara, os camaradas precisam parar de roubar, pelo amor de deus". É isso. A hipocrisia e a histeria moralista e demófoba da oposição não podem ser usadas pra sempre como desculpa para as besteiras que acontecem no governo.
2) Por uma agenda do século XXI. Fantástico que o governo combata a pobreza. Isso é uma agenda do século XX que chegou viva ao século XXI graças à absoluta falta de sensibilidade social dos governos que vieram antes do PT. Como sabemos, isso garantiu a quarta vitória seguida ao PT. O nordeste mais uma vez despejou em massa seus votos pela manutenção de quem olhou por eles pela primeira vez em 500 anos. Maravilha. Mas e a agenda que domina o século XXI? Em relação a ela não tivemos nenhum avanço em 12 anos. Morrendo de medo dos conservadores e evangélicos, o PT nada fez em relação a coisas como política para drogas, direitos para homossexuais, aborto, e coisas assim. Profundamente lamentável. É claro que qualquer governo precisa estabelecer uma maioria parlamentar para governar, mas não é possível que fiquemos o resto da vida nos ajoelhando perante pessoas que vivem na Idade Média. Cristina Kirchner, por exemplo, entrou pra valer na briga pelo "matrimônio igualitário", e conseguiu aprová-lo, mesmo que com isso ganhasse a oposição virulenta do arcebispo de Buenos Aires, aquele mesmo que hoje se chama Papa Francisco e é o queridinho da esquerda. Em algum momento essas brigas terão de ser compradas.
3) Desastre político ideológico. Nos aspectos sociais e econômicos Lula e Dilma foram muito bem. A pobreza foi reduzida drasticamente, o país cresceu, o desemprego é baixíssimo. Mas a grande e incômoda verdade é: após 12 anos de governo petista o Brasil é tão conservador como sempre foi. Pior que isso: o governo petista estimulou uma verdadeira letargia ideológica no campo da esquerda. Algo como: se ganharmos a presidência o resto que se dane. Por isso elegemos esse congresso tão reacionário: simplesmente não demos importância a isso. Só pensamos na eleição para presidente. Por isso votamos em massa em péssimos candidatos a governador, simplesmente por que o PT decidiu que isso era melhor para garantir as alianças nas eleições presidenciais. Aqui em Pernambuco, por exemplo, o PT apoiou um tipo lamentável como Armando Monteiro. Votei no candidato do PSOL, mas meus amigos da minha geração em sua maioria votaram em Armando, envergonhados, mas achando que era o melhor para o partido. Já meus alunos de vinte anos não tiveram pruridos: votaram nesse lixo sem nenhuma dor de consciência. É a geração que o PT está criando. De esquerda, mas sem nenhuma preocupação com a coerência. Não é que meus alunos estejam errados. Simplesmente são filhos desse governo. Se preocupam com a vitória nas eleições presidenciais. (meus alunos, eu amo vocês, mas lamento muito que vocês tenham se formado politicamente sob essa lógica descrita acima. vocês podem e merecem mais que isso)
4) Alianças. Mais uma vez: existe uma coisa da qual não podemos fugir chamada governabilidade. Ok, qualquer governante precisa se aliar a pessoas com quem não sente qualquer identidade política. Mas precisamos mesmo ver Lula e Haddad tirando foto ao lado de um decadende Paulo Maluf que ainda por cima se mostra incapaz de transferir seus hipotéticos votos para o PT? Realmente nos ajuda em algum sentido ver Fernando Collor de Melo, contra quem minha geração foi à rua e que causou uma derrota que nos traumatizou pela eternidade, a nosso lado pedindo votos para Dilma? Talvez nada ilustre melhor o que digo neste item do que a patética imagem de um Sarney cambaleante com adesivo da Dilma e votando em Aécio. Realmente precisamos disso para a governabilidade?
5)O abandono das ruas. Uma das mais gloriosas tradições da esquerda mundial é seu amor pelas ruas, assim como sua inserção nos movimentos sociais. E essas eleições testemunharam uma absurda indiferença do PT nesse campo. Não é que a campanha governista tenha fracassado em colocar a militância nas ruas. Ela simplesmente não tentou fazer isso. Parece claro que o partido se convenceu que para vencer basta fazer alianças que garantam um bom tempo na propaganda eleitoral gratuita e botar um marqueteiro competente para mostrar as realizações do governo para que a vitória seja certa. E o susto monumental que tomamos neste ano mostrou que não é assim. Quando as pesquisas mostraram Aécio à frente a duas semanas do segundo turno a militância quis tomar as ruas para ajudar Dilma, e isso pegou o PT de surpresa. Não estavam preparados para isso. Aqui no Recife a militância foi para a rua em eventos organizados fora do partido e sem nenhuma ajuda partidária. Os figurões nem se davam ao trabalho de comparecer. Pelo que me contam os amigos, a história foi a mesma em outras partes do país. Não pode. Simplesmente não pode.
Infelizmente não acho que o partido e o governo vão aprender qualquer coisa com o susto deste ano. Estão convencidos demais que o fato de ser o melhor governo da história do país garante sozinho a vitória nas eleições presidenciais, que é a única coisa que importa a eles. E se perder, ouviremos aquela lista de desculpas prontas: mídia golpista, blá blá bla. Uma pena.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Homofobia, racismo, machismo e privilégios
Fiquei estarrecido com as declarações de Levy Fidelix sobre o medo de uma invasão militar do comunismo bolivariano ao Brasil e, mais ainda (muito mais) com o que ele falou sobre os homossexuais. Sim, é um anão irrelevante, um oportunista que só está na política para enriquecer administrando verbas que seu partido recebe. Mas o simples fato de qualquer pessoa pensar coisas assim é chocante. E, como a humanidade nunca acha o fundo do poço, ainda tivemos de ver pessoas apoiando o que ele disse. Alunos meus, de história, jovens de vinte e poucos anos, inclusive (felizmente uma minoria total, mas ainda assim...)
Fiquei pensando como a direita brasileira pôde ter chegado tão fundo nessa lama toda. Ser de direita não tem qualquer implicação nesse sentido, ao menos teoricamente. A ala histórica do PSDB jamais diria coisas assim. Acho impossível imaginar gente como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas ou Franco Montoro dizendo barbaridades do tipo. Na verdade não me lembro de ninguém na cúpula do partido endossando esse tipo de pauta. Mas entre candidatos mais jovens isso já é verificável. E em outros segmentos da direita então, a coisa campeia livremente. Me pergunto: por que? Como chegamos nisso?
Vejo três motivos. Dois dos quais me parecem óbvios. O primeiro: vivemos num país em que grande parte da população vê o mundo dessa maneira. Ser gay é doença, qualquer pessoa que usa maconha é vagabundo e passa o dia drogado sem trabalhar nem ligar para a família, aborto é assassinato (mas se a filha engravidar de "vagabundo" são outros quinhentos), cotas são algo desnecessário, bastando melhorar a educação para resolver o problema, ao invés de inventar esse instrumento que nós levará a uma guerra racial, etc. Para uma oposição que nada tem a propor além de um estado mínimo (algo que a população não quer ouvir nem falar), é um bom gancho para tentar conquistar corações e mentes numa eleição em que parecem destinados à derrota.
Outro componente óbvio é o fator religioso. Nesse caso específico principalmente os evangélicos. Não que todos os evangélicos pensem essas coisas (nem sei se a maioria pensa) ou que outras religiões tenham necessariamente pensamentos mais progressistas. A questão é que os evangélicos tem duas armas muito poderosas, que os diferenciam de outras religiões: uma bancada muito forte que todos os candidatos temem desagradar e uma multidão que obedece seus pastores em todos os campos. Em suma, certos setores protestantes são mais bem organizados politicamente do que qualquer outro grupo religioso, o que os ajuda a fazer valer sua agenda medieval.
O terceiro elemento é especificamente político. Independente da opinião que se tenha sobre o atual governo, ele é aprovado pela maioria da população. O que deixou a oposição à direita absolutamente perdida. Só concordam em uma coisa: o estado mínimo, e não podem usar isso, já que o eleitorado não quer nem ouvir falar do assunto. Basta notar a absoluta miséria argumentativa das últimas duas candidaturas presidenciais tucanas. Não podem dizer seu real programa, já que isso os inviabilizaria eleitoralmente. Se oferecerem um Estado ativo na diminuição de diferenças, soaria forçado e se igualariam às candidaturas governistas. Não sobra muito o que fazer.
Para os setores mais lunáticos da direita, a solução apareceu na forma de lamentação do fardo do pobre homem branco hetero de classe média oprimido por um governo que rouba tudo deles, os impede de viver, falar e pensar como querem e dá o país de mão beijada para negros que usam as cotas para roubar vagas na universidade dos filhos deles, feministas raivosas que odeiam homens, homossexuais que dominam o mundo mas só sabem reclamar e estudantes da área de humanas que torram nossos impostos fumando maconha o dia todo na universidade. Um argumento completamente delirante e esdrúxulo, sem qualquer âncora no mundo real, mas que serviu como norte para muitos descontentes não só com o atual governo, mas com o fato de termos superado a idade média.
Nem todo o oposicionismo aderiu a essa loucura. Há os que agem como se o PT tivesse inventado a corrupção. Há os que ignoram absolutamente todos os números e pesquisas e insistem que o Brasil só piorou nesses 12 anos. Mas muitos entraram nessa linha de "crítica ao marxismo cultural". Pois esse é um ponto importante. Eles olham coisas como cotas, descriminalização das drogas e do aborto, que são temas discutidos ou já adotados nos países capitalistas desenvolvidos, e concluem, da forma mais esdrúxula possível, que essas coisas são passos para a implantação do comunismo no Brasil.
Daí o clima de terrorismo. Descriminaliza a maconha? Todas as pessoas vão ficar chapadas 24 horas por dia. Faz o mesmo com o aborto? Todas as pessoas serão obrigadas a abortar e a humanidade vai se extinguir. Faz lei contra a homofobia? Seremos obrigados a virar gays. Cotas nas universidades? Negros vão dominar esse país. Sim, pois essas pessoas pensam a partir do ponto de vista de que toda sociedade tem de ter privilegiados. Então quando os privilegios deles acabam, supõem automaticamente que o outro grupo passou a ser o privilegiado. Não conseguem vagamente imaginar um mundo sem privilégios. Para eles isso não faz sentido. A questão é apenas quem vai ser o privilegiado. E tem de ser eles, claro.
E eu digo isso porque me parece ser um ponto que muitos que estão do nosso lado genuinamente não compreenderam. Não conseguem entender como tanta gente se sente incomodada com o que outras pessoas fazem. Não percebem que nós estamos lutando por direitos iguais, mas essas pessoas entendem de forma completamente distinta. Nessas lutas a única coisa que eles conseguem enxergar é a perda de privilégios. Na cabeça deles um mundo sem privilégios é algo que sequer pode ser imaginado. Então se sentem atingidos quando subalternos conquistam direitos. Pois mesmo que isso não mexa em nada com a vida deles, sentem como se tivessem perdido algo.
Aproveitando uma expressão muito usada nas redes sociais recentemente: não fique aí achando que o problema dessas pessoas é quererem legislar sobre o cu alheio. Isso é muita ingenuidade. A questão real está bem mais embaixo: elas estão falando sobre distinção e privilégio. O cu é apenas um detalhe.
Fiquei pensando como a direita brasileira pôde ter chegado tão fundo nessa lama toda. Ser de direita não tem qualquer implicação nesse sentido, ao menos teoricamente. A ala histórica do PSDB jamais diria coisas assim. Acho impossível imaginar gente como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas ou Franco Montoro dizendo barbaridades do tipo. Na verdade não me lembro de ninguém na cúpula do partido endossando esse tipo de pauta. Mas entre candidatos mais jovens isso já é verificável. E em outros segmentos da direita então, a coisa campeia livremente. Me pergunto: por que? Como chegamos nisso?
Vejo três motivos. Dois dos quais me parecem óbvios. O primeiro: vivemos num país em que grande parte da população vê o mundo dessa maneira. Ser gay é doença, qualquer pessoa que usa maconha é vagabundo e passa o dia drogado sem trabalhar nem ligar para a família, aborto é assassinato (mas se a filha engravidar de "vagabundo" são outros quinhentos), cotas são algo desnecessário, bastando melhorar a educação para resolver o problema, ao invés de inventar esse instrumento que nós levará a uma guerra racial, etc. Para uma oposição que nada tem a propor além de um estado mínimo (algo que a população não quer ouvir nem falar), é um bom gancho para tentar conquistar corações e mentes numa eleição em que parecem destinados à derrota.
Outro componente óbvio é o fator religioso. Nesse caso específico principalmente os evangélicos. Não que todos os evangélicos pensem essas coisas (nem sei se a maioria pensa) ou que outras religiões tenham necessariamente pensamentos mais progressistas. A questão é que os evangélicos tem duas armas muito poderosas, que os diferenciam de outras religiões: uma bancada muito forte que todos os candidatos temem desagradar e uma multidão que obedece seus pastores em todos os campos. Em suma, certos setores protestantes são mais bem organizados politicamente do que qualquer outro grupo religioso, o que os ajuda a fazer valer sua agenda medieval.
O terceiro elemento é especificamente político. Independente da opinião que se tenha sobre o atual governo, ele é aprovado pela maioria da população. O que deixou a oposição à direita absolutamente perdida. Só concordam em uma coisa: o estado mínimo, e não podem usar isso, já que o eleitorado não quer nem ouvir falar do assunto. Basta notar a absoluta miséria argumentativa das últimas duas candidaturas presidenciais tucanas. Não podem dizer seu real programa, já que isso os inviabilizaria eleitoralmente. Se oferecerem um Estado ativo na diminuição de diferenças, soaria forçado e se igualariam às candidaturas governistas. Não sobra muito o que fazer.
Para os setores mais lunáticos da direita, a solução apareceu na forma de lamentação do fardo do pobre homem branco hetero de classe média oprimido por um governo que rouba tudo deles, os impede de viver, falar e pensar como querem e dá o país de mão beijada para negros que usam as cotas para roubar vagas na universidade dos filhos deles, feministas raivosas que odeiam homens, homossexuais que dominam o mundo mas só sabem reclamar e estudantes da área de humanas que torram nossos impostos fumando maconha o dia todo na universidade. Um argumento completamente delirante e esdrúxulo, sem qualquer âncora no mundo real, mas que serviu como norte para muitos descontentes não só com o atual governo, mas com o fato de termos superado a idade média.
Nem todo o oposicionismo aderiu a essa loucura. Há os que agem como se o PT tivesse inventado a corrupção. Há os que ignoram absolutamente todos os números e pesquisas e insistem que o Brasil só piorou nesses 12 anos. Mas muitos entraram nessa linha de "crítica ao marxismo cultural". Pois esse é um ponto importante. Eles olham coisas como cotas, descriminalização das drogas e do aborto, que são temas discutidos ou já adotados nos países capitalistas desenvolvidos, e concluem, da forma mais esdrúxula possível, que essas coisas são passos para a implantação do comunismo no Brasil.
Daí o clima de terrorismo. Descriminaliza a maconha? Todas as pessoas vão ficar chapadas 24 horas por dia. Faz o mesmo com o aborto? Todas as pessoas serão obrigadas a abortar e a humanidade vai se extinguir. Faz lei contra a homofobia? Seremos obrigados a virar gays. Cotas nas universidades? Negros vão dominar esse país. Sim, pois essas pessoas pensam a partir do ponto de vista de que toda sociedade tem de ter privilegiados. Então quando os privilegios deles acabam, supõem automaticamente que o outro grupo passou a ser o privilegiado. Não conseguem vagamente imaginar um mundo sem privilégios. Para eles isso não faz sentido. A questão é apenas quem vai ser o privilegiado. E tem de ser eles, claro.
E eu digo isso porque me parece ser um ponto que muitos que estão do nosso lado genuinamente não compreenderam. Não conseguem entender como tanta gente se sente incomodada com o que outras pessoas fazem. Não percebem que nós estamos lutando por direitos iguais, mas essas pessoas entendem de forma completamente distinta. Nessas lutas a única coisa que eles conseguem enxergar é a perda de privilégios. Na cabeça deles um mundo sem privilégios é algo que sequer pode ser imaginado. Então se sentem atingidos quando subalternos conquistam direitos. Pois mesmo que isso não mexa em nada com a vida deles, sentem como se tivessem perdido algo.
Aproveitando uma expressão muito usada nas redes sociais recentemente: não fique aí achando que o problema dessas pessoas é quererem legislar sobre o cu alheio. Isso é muita ingenuidade. A questão real está bem mais embaixo: elas estão falando sobre distinção e privilégio. O cu é apenas um detalhe.
sábado, 20 de setembro de 2014
Direita: estamos esperando seus argumentos
Como provavelmente todos vocês sabem, Luciana Genro foi ao programa de Danilo Gentili. Lá o apresentador e seu coadjuvante, o músico Roger, colocaram em cena a pauta do socialismo. Tentanto argumentar que a ideologia da candidata foi responsável por milhões de mortes (válido, já que o capitalismo nunca matou ninguém). Genro argumentou que o que houve nos chamados regimes socialistas não era socialismo, e que não tinha nada a ver com o que Marx defendeu. Seus interlocutores responderam no dia seguinte no twitter com coisas como a que ilustra o post. Falta de educação e canalhismo, claro: quem recebe convidados e no dia seguinte os ofende publicamente? Mas não é só isso.
O problema é que isso reflete uma questão muito mais ampla: a total falta de argumentos da direita brasileira. Pois esse pessoal simplesmente se acostumou a debater em espaços em que todos pensam como eles. Blogs direitistas, fóruns nas redes sociais, e coisas assim. Espaços onde se repete à vontade ideias absurdas e desprovidas de qualquer senso lógico, como: nazismo e socialismo são a mesma coisa, quem é de esquerda não pode ter acesso a bens de consumo, o mundo é dominado por feministas de pernas cabeludas e gays autoritários, há censura de livros clássicos da nossa literatura nas nossas escolas, e assim por diante.
Nada disso tem a mais vaga sustentação na realidade. Há infinitos dados comprovando isso. Mas essas pessoas estão tão acostumadas a debater entre si, aos gritos, que estão absolutamente convencidas de que não há argumentos possíveis que possam ser usados contra essas "verdades". E vá você tentar explicar que Hitler, Stalin e Marx não eram iguais, que vivemos num mundo machista, racista e homofóbico, que nos anos 60 e 70 o Brasil não era dominado por uma ditadura totalitária de esquerda, que o PT não inventou a corrupção, que nordestinos não são um bando de retardados que venderam o voto ao governo por causa de esmolas e assim por diante.
E o que aconteceu na imagem que ilustra o post? Gentili e Roger propuseram um tema que esse pessoal ama "ah, socialismo é um lixo, todo mundo que é de esquerda adora Stalin, olha que burros". Genro propôs um debate diferente: "mas você acha que o stalinismo é mesmo baseado em Marx?". Gentili e Roger não souberam responder. Claro, formaram suas opiniões a partir desses debates com pessoas que pensam como eles e também nunca estudaram o assunto. Restou o silêncio e a agressão covarde depois, quando Genro estava bem longe. Aí é que está: não é só cafajestagem. É falta de argumentos também.
Essas pessoas são a prova definitiva de que a direita brasileira simplesmente perdeu a capacidade de debater. Quem conhece história sabe que, bem ou mal, gostando ou não, houve um tempo em que a direita brazuca tinha intelectuais sofisticados defendendo seus argumentos em termos absolutamente racionais. Também tinha políticos que, gostássemos ou não, estavam tentando conquistar os corações e mentes da classe trabalhadora, lutando ao lado deles.
Mas o que vemos hoje é evidentemente diferente. A ditadura desconfiava de quem pensasse. O que fez a direita desaprender a tentar fazer elaborações intelectuais que fizessem o mínimo de sentido. O neoliberalismo, com sua gigantesca desconfiança dos movimentos sociais, fez com que a direita esquecesse qualquer tentativa de interlocução com eles. Sem usar o cérebro e tendo ódio de quem vem de baixo, sobrou muito pouco à direita, além do apoio da mídia e dos empresários.
Numericamente muito inferior, coube a direita assumir o papel de minoria incompreendida. Quem vota contra ela, nessa perspectiva, são as feministas, os pobres, os nordestinos, os intelectuais, os sindicalistas, os gays, os negros. A direita resolveu assumir, de forma suicida, o papel de defensor dos privilegiados. Só brancos bem nascidos das regiões mais desenvolvidas votam nela, e são os únicos que sabem votar. Todos os outros são idiotas.
Como pensam isso, estão destinados a perder sempre. Restam os espaços exclusivíssimos em que podem despejar sua raiva contra o mundo cruel em que vivem. Em que dão vazão à ideia de que vivem num mundo em que são oprimidos. Em que podem mostrar todo o seu desprezo pela "corja" que na opinião deles domina o país. Até aí tudo parece lindo. Brabo é quando alguém aparece contrapondo argumentos racionais, definições conceituais minimamente rigorosas e números. Aí tudo o que eles pensam desmorona. Resta aumentar a raiva. Que é só o que eles têm.
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
De um (quase) ex-gremista: o caso Aranha
Sou gremista desde criança. Gostaria de dar motivos épicos, políticos ou históricos para isso, mas a verdade é que me apaixonei pelo clube da mesma forma que quase todo mundo escolhe time. Meu pai é gremista, e uma mistura de curiosidade infantil com o desejo de passar mais tempo com ele me fez ficar a seu lado vendo os jogos do time. Me apaixonei e pronto. É aquela coisa que todo mundo sabe como é: você até cria explicações racionais, mas na verdade você simplesmente ama o time e pronto. Acabou. Compromisso para o resto da vida.
O episódio do primeiro jogo contra o Santos não mexeu com minha paixão. Na minha cabeça era uma atitude absurda de um punhado de imbecis supremos que, nutridos pela certeza da impunidade, do silêncio da maioria e do espírito da turba, fizeram algo absurdo. Houve punição exemplar para o clube, que proibiu os que foram identificados de entrar novamente nas dependências, então para mim o saldo até que não tinha sido negativo. Uma vitória contra o racismo de alguns babacas.
Mas o que houve quinta-feira foi muito, mas muito pior. Li que o técnico do Santos perguntou se Aranha queria jogar, e ele disse que sim. Imaginava que seria aplaudido em desagravo pelo que passou. Mas foi exatamente o contrário. Foi vaiado do início ao fim. Amigos que estavam no estádio me disseram que todos os tipos de xingamento brotavam da multidão, que teve cuidado de evitar termos racistas, mas evidentemente o motivo era de cunho racial. Inclusive "alemão" e "branca de neve" foram termos atribuídos a ele nos cantos da torcida, como forma de atacar sem correr o risco de punição.
Aí a coisa ficou séria. Não foi coisa de algumas pessoas. Foram milhares. De forma orquestrada. Pra piorar ainda mais, se sentindo autorizadas a fazer aquilo pela direção e pelo treinador, que tiveram atitudes lamentáveis em relação ao assunto durante a semana (para não falar em jornalistas cretinos). E digo mais. Tudo isso mostra uma cultura de racismo naquele ambiente. Que jamais poderia ter se desenvolvido sem o beneplácito, ao menos implícito, das pessoas que comandaram o clube nesse tempo todo. Ou seja: não é uma questão de algumas pessoas, mas de uma instituição.
Não adianta dizer que tivemos ídolos históricos que eram negros, como Ortunho, Everaldo e Tarciso. Primeiro porque as torcidas racistas européias também aplaudem seus jogadores negros, apesar de xingarem os adversários em termos raciais. Segundo, porque isso é a mesmíssima coisa que ser racista e se defender dizendo "tenho amigos negros", como se isso fosse um álibi para ser racista à vontade. Como se a gente pudesse espancar a companheira mas dizer "imagina se sou machista, eu amo minha mãe".
Eu não quero torcer para esse time. Não quero fazer parte disso. Existe um amor gigante por um clube que é importante para mim desde 1979, quando descobri o futebol. Sei que o amor não funciona assim. Pessoas que a gente ama fazem coisas que a gente odeia e a gente continua amando elas assim mesmo. Mas isso é diferente. Uma coisa é a mulher que eu amo fazer algo que eu não goste. Outra coisa totalmente diferente é ela humilhar um negro por sua "raça" (?).
Nenhuma das más fases, derrotas humilhantes, direções incompetentes e times horríveis me fez ter a menor chance de deixar de amar esse clube. Torcedor ama na vitória e na derrota. Mas o que temos agora é outra coisa. Um clube que parece dominado por pessoas que acreditam que melanina na pele é defeito imperdoável. Disso eu não vou fazer parte. Me declaro ex-gremista. Ao menos temporariamente. Se as coisas mudarem, a gente conversa outra vez.
O episódio do primeiro jogo contra o Santos não mexeu com minha paixão. Na minha cabeça era uma atitude absurda de um punhado de imbecis supremos que, nutridos pela certeza da impunidade, do silêncio da maioria e do espírito da turba, fizeram algo absurdo. Houve punição exemplar para o clube, que proibiu os que foram identificados de entrar novamente nas dependências, então para mim o saldo até que não tinha sido negativo. Uma vitória contra o racismo de alguns babacas.
Mas o que houve quinta-feira foi muito, mas muito pior. Li que o técnico do Santos perguntou se Aranha queria jogar, e ele disse que sim. Imaginava que seria aplaudido em desagravo pelo que passou. Mas foi exatamente o contrário. Foi vaiado do início ao fim. Amigos que estavam no estádio me disseram que todos os tipos de xingamento brotavam da multidão, que teve cuidado de evitar termos racistas, mas evidentemente o motivo era de cunho racial. Inclusive "alemão" e "branca de neve" foram termos atribuídos a ele nos cantos da torcida, como forma de atacar sem correr o risco de punição.
Aí a coisa ficou séria. Não foi coisa de algumas pessoas. Foram milhares. De forma orquestrada. Pra piorar ainda mais, se sentindo autorizadas a fazer aquilo pela direção e pelo treinador, que tiveram atitudes lamentáveis em relação ao assunto durante a semana (para não falar em jornalistas cretinos). E digo mais. Tudo isso mostra uma cultura de racismo naquele ambiente. Que jamais poderia ter se desenvolvido sem o beneplácito, ao menos implícito, das pessoas que comandaram o clube nesse tempo todo. Ou seja: não é uma questão de algumas pessoas, mas de uma instituição.
Não adianta dizer que tivemos ídolos históricos que eram negros, como Ortunho, Everaldo e Tarciso. Primeiro porque as torcidas racistas européias também aplaudem seus jogadores negros, apesar de xingarem os adversários em termos raciais. Segundo, porque isso é a mesmíssima coisa que ser racista e se defender dizendo "tenho amigos negros", como se isso fosse um álibi para ser racista à vontade. Como se a gente pudesse espancar a companheira mas dizer "imagina se sou machista, eu amo minha mãe".
Eu não quero torcer para esse time. Não quero fazer parte disso. Existe um amor gigante por um clube que é importante para mim desde 1979, quando descobri o futebol. Sei que o amor não funciona assim. Pessoas que a gente ama fazem coisas que a gente odeia e a gente continua amando elas assim mesmo. Mas isso é diferente. Uma coisa é a mulher que eu amo fazer algo que eu não goste. Outra coisa totalmente diferente é ela humilhar um negro por sua "raça" (?).
Nenhuma das más fases, derrotas humilhantes, direções incompetentes e times horríveis me fez ter a menor chance de deixar de amar esse clube. Torcedor ama na vitória e na derrota. Mas o que temos agora é outra coisa. Um clube que parece dominado por pessoas que acreditam que melanina na pele é defeito imperdoável. Disso eu não vou fazer parte. Me declaro ex-gremista. Ao menos temporariamente. Se as coisas mudarem, a gente conversa outra vez.
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
Somos todos Aranha
Sou gremista. Fanático. Nasci em 1972 e me apaixonei por esse time em 1979. De uma forma absurdamente incondicional. Amo o Grêmio. Por isso mesmo acho que estou em situação confortável para dizer o que vai a seguir
O episódio envolvendo a garota que xingou o goleiro Aranha me parece ser o típico caso em que as coisas tem consequencias infinitamente maiores que o evento em si. Afinal, o que aconteceu ali foi simplesmente o seguinte: uma pessoa fazendo algo que muita gente faz e que talvez nem tenha sido ouvida pelo goleiro, já que havia um coro de pessoas cantando coisas bem mais alto. Ela só teve o azar de ser flagrada por uma câmera de TV. O que aconteceu foi isso. Mas o problema é que a situação é complexa, e levou a desdobramentos que transcendem em muito o fenômeno original.
A questão é que o país se viu frente a um dilema. Existe muita gente que não aguenta mais viver em um Brasil racista, machista, homofóbico e repleto de outros preconceitos. Que se sente absolutamente desconfortável de compartilhar o mesmo território que gente escrota, babaca, filho da puta, que exclui a maioria dos seus habitantes dos mais básicos direitos. Não é só uma coisa, como muitos querem fazer parecer, de gente patrulheira que quer interferir no jeito de pensar dos outros. É se sentir corroído por dentro ao ver que vivemos em um país em que direitos são negados à maioria da população.
Para gente assim, o episódio do xingamento ao Aranha foi muito mais que o xingamento em si. Foi o momento de dar um basta. De berrar nossa indignação. O absurdo xingamento a uma pessoa pela cor da pele, algo que nunca deveria existir, foi muito mais que o xingamento. Foi o momento em que sentimos que não dava mais. Se há algum sentido em ver a guria como vitima, é esse: através daquela cena de TV vimos tudo o que odiamos em nosso país. Pessoas bem nascidas, bem nutridas, que nunca passaram dificuldades, bem branquinhas, loiras e felizes, humilhando quem veio de baixo, quem tem pele escura, quem tem outra orientação, quem de alguma forma qualquer não faz parte do seu mundo. Não aguentamos mais isso. Chega.
Claro que muitos viram outras coisas nessa história. Para eles, a guria é a vítima da situação. Se acostumaram a adorar esse país hierarquizado em que vivemos. Foram treinados para minimizar o sofrimento alheio. Acham "chatice politicamente correta" não poderem ser racistas, machistas, homofóbicos, preconceituosos, não poderem desmerecer quem não nasceu em berço de ouro. Para essas pessoas, que estão satisfeitas com tudo o que a maioria oprimida deste país tem de enfrentar, Aranha foi apenas um caso chato em que alguém levou a sério demais algo corriqueiro. Para eles, a torcedora é uma vítima.
E para fazer tudo ficar pior para eles, Aranha teve uma atitude monstruosa. Não engoliu nada. Se indignou. Reclamou. Se recusou a fazer as pazes com a torcedora. Para quem acha que está tudo bem neste país, ele é um intolerante. Afinal, não reconheceu seu papel subalterno e expôs cruamente o que se quer esconder. Para nós, que odiamos preconceitos, que queremos que todos os subalternos tenham os direitos que lhe são negados, ele foi perfeito. Para nós, Aranha fez exatamente o que devia fazer. Mostrou um Brasil excludente. Por seu lado, para os que gostam do que cenário atual, a vítima da situação é a torcedora.
O episódio envolvendo a garota que xingou o goleiro Aranha me parece ser o típico caso em que as coisas tem consequencias infinitamente maiores que o evento em si. Afinal, o que aconteceu ali foi simplesmente o seguinte: uma pessoa fazendo algo que muita gente faz e que talvez nem tenha sido ouvida pelo goleiro, já que havia um coro de pessoas cantando coisas bem mais alto. Ela só teve o azar de ser flagrada por uma câmera de TV. O que aconteceu foi isso. Mas o problema é que a situação é complexa, e levou a desdobramentos que transcendem em muito o fenômeno original.
A questão é que o país se viu frente a um dilema. Existe muita gente que não aguenta mais viver em um Brasil racista, machista, homofóbico e repleto de outros preconceitos. Que se sente absolutamente desconfortável de compartilhar o mesmo território que gente escrota, babaca, filho da puta, que exclui a maioria dos seus habitantes dos mais básicos direitos. Não é só uma coisa, como muitos querem fazer parecer, de gente patrulheira que quer interferir no jeito de pensar dos outros. É se sentir corroído por dentro ao ver que vivemos em um país em que direitos são negados à maioria da população.
Para gente assim, o episódio do xingamento ao Aranha foi muito mais que o xingamento em si. Foi o momento de dar um basta. De berrar nossa indignação. O absurdo xingamento a uma pessoa pela cor da pele, algo que nunca deveria existir, foi muito mais que o xingamento. Foi o momento em que sentimos que não dava mais. Se há algum sentido em ver a guria como vitima, é esse: através daquela cena de TV vimos tudo o que odiamos em nosso país. Pessoas bem nascidas, bem nutridas, que nunca passaram dificuldades, bem branquinhas, loiras e felizes, humilhando quem veio de baixo, quem tem pele escura, quem tem outra orientação, quem de alguma forma qualquer não faz parte do seu mundo. Não aguentamos mais isso. Chega.
Claro que muitos viram outras coisas nessa história. Para eles, a guria é a vítima da situação. Se acostumaram a adorar esse país hierarquizado em que vivemos. Foram treinados para minimizar o sofrimento alheio. Acham "chatice politicamente correta" não poderem ser racistas, machistas, homofóbicos, preconceituosos, não poderem desmerecer quem não nasceu em berço de ouro. Para essas pessoas, que estão satisfeitas com tudo o que a maioria oprimida deste país tem de enfrentar, Aranha foi apenas um caso chato em que alguém levou a sério demais algo corriqueiro. Para eles, a torcedora é uma vítima.
E para fazer tudo ficar pior para eles, Aranha teve uma atitude monstruosa. Não engoliu nada. Se indignou. Reclamou. Se recusou a fazer as pazes com a torcedora. Para quem acha que está tudo bem neste país, ele é um intolerante. Afinal, não reconheceu seu papel subalterno e expôs cruamente o que se quer esconder. Para nós, que odiamos preconceitos, que queremos que todos os subalternos tenham os direitos que lhe são negados, ele foi perfeito. Para nós, Aranha fez exatamente o que devia fazer. Mostrou um Brasil excludente. Por seu lado, para os que gostam do que cenário atual, a vítima da situação é a torcedora.
sábado, 6 de setembro de 2014
O que o PT não fez
Ontem meu irmão me contava que em uma conversa escutou que a punição ao Grêmio pelos insultos dos torcedores racistas era culpa do PT. Segundo o interlocutor dele, há 15 anos isso jamais aconteceria. Bem, nem precisamos ir à fundo na explicação do que estava sendo dito, que era "saudades de quando podíamos ser racistas à vontade sem ninguém encher o saco". Algo que evidentemente não tem nada a ver com o PT, até porque o PSDB está longe de ser um partido que defende o racismo, muito pelo contrário. Mas dá o que pensar sobre outras coisas.
Votarei em Dilma com toda a força do meu coração. Acho que o PT fez em 12 anos algo que nunca havia sido feito neste país. Os ganhos me parecem gigantes e irreversíveis. Mas tampouco deixo de ter críticas. A condução da economia nos últimos 3 anos não foi boa. Interesses historicamente estabelecidos não foram contrariados. E no nível político-ideológico é um governo desastroso: basta ver que o Brasil, após 12 anos de PT no governo, é tão conservador quanto em 2002. Mas como nada disso teria sido diferente sob governos de outros partidos, eu me aborreço mas isso não me faz pensar em mudar meu voto.
Mas nisso tudo a gente acaba pensando nos argumentos da oposição eleitoramente viável. Que basicamente são três: 1)A economia está um desastre, o desemprego é gigante, a inflação é alta, os juros estão fora de controle. 2) A corrupção está acima do tolerável. 3) O país ficou uma bagunça sob o PT, alguém tem de dar um jeito nisso.
Os dois primeiros são racionalmente insustentáveis dentro de qualquer parâmetro. No governo tucano a inflação era mais alta, os juros eram muitíssimos mais altos e o desemprego era muito maior. O PSDB não fez o país crescer. Não precisa ser especialista em economia para saber disso, basta ter estado vivo nos anos 1990. Sustentar esses argumentos é um despropósito total. Ainda mais vindo de gente que não tem nenhuma ideia de como fazer melhor que o que temos aí. A parte da corrupção é mesmo lamentável e não pode ser diminuída. Mas não vejo sentido algum em deixar de votar no PT por isso para votar em quem fez as mesmas coisas ou ainda pior.
Sobra o terceiro argumento. A ideia de que o Brasil está uma bagunça, feministas peludas e raivosas mandam no mundo, tudo é a favor dos negros, os gays estão por cima fazendo o que querem, empregadas domésticas sambam na cara das patroas e por aí vai. Esse argumento sim, merece ser levado muito a sério. Não por ter qualquer amparo no mundo real. Não tem. Basta olhar as estatísticas. Homens ganham mais que mulheres, brancos ganham mais que negros e gays continuam sendo assassinados pela sua orientação. A questão não é essa.
O ponto é outro. Esse ódio insano ao PT pelo que o governo nunca fez mostra algo importante. A sensação de uma classe que sempre foi privilegiada, que sempre teve tudo, que sempre teve o Estado existindo unicamente para ela, subitamente vendo esse Estado atendendo outros tipos de pessoas. Não que elas tenham perdido algo: no governo do PT bancos bateram recordes de lucratividade, os empresários encheram o bolso muito mais que no governo FHC, e a classe média deixou de passar as férias na região dos lagos e foi para a Europa. Mas para eles não basta a vida ficar boa. É importante também que quem é pobre, quem é subalterno, nunca tenha NADA. Então para essa gente não é legal ir para Paris se o porteiro do prédio também for. Para eles isso é insuportável, intolerável
Não importa o que eles têm. O que importa é terem mais que os pobres. Ostentar sinais de distinção. Não foi a toa que vimos o crescimento assombroso de fenômenos tipo restaurantes que cobram 80 reais por um filé de peixe com batatas. Ou de médicos raivosos porque estrangeiros vieram ocupar postos que eles não queriam. Há vários motivos para isso, mas um deles é a necessidade de ostentação, de mostrar superioridade, de um bando de gente que está obesa de tanto dinheiro mas não suporta que os de baixo tenham melhorado um tiquinho que seja. Para eles, só faz sentido viver num mundo em que o Estado garanta a submissão eterna dessa gente. Quando não é assim, espumam de raiva.
O PT não é perfeito. Seus 12 anos de governo estão muitíssimo longe disso. Na verdade ajudaram a manter gravíssimos problemas do país. O problema é ter uma oposição que não odeia o governo pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades.
Votarei em Dilma com toda a força do meu coração. Acho que o PT fez em 12 anos algo que nunca havia sido feito neste país. Os ganhos me parecem gigantes e irreversíveis. Mas tampouco deixo de ter críticas. A condução da economia nos últimos 3 anos não foi boa. Interesses historicamente estabelecidos não foram contrariados. E no nível político-ideológico é um governo desastroso: basta ver que o Brasil, após 12 anos de PT no governo, é tão conservador quanto em 2002. Mas como nada disso teria sido diferente sob governos de outros partidos, eu me aborreço mas isso não me faz pensar em mudar meu voto.
Mas nisso tudo a gente acaba pensando nos argumentos da oposição eleitoramente viável. Que basicamente são três: 1)A economia está um desastre, o desemprego é gigante, a inflação é alta, os juros estão fora de controle. 2) A corrupção está acima do tolerável. 3) O país ficou uma bagunça sob o PT, alguém tem de dar um jeito nisso.
Os dois primeiros são racionalmente insustentáveis dentro de qualquer parâmetro. No governo tucano a inflação era mais alta, os juros eram muitíssimos mais altos e o desemprego era muito maior. O PSDB não fez o país crescer. Não precisa ser especialista em economia para saber disso, basta ter estado vivo nos anos 1990. Sustentar esses argumentos é um despropósito total. Ainda mais vindo de gente que não tem nenhuma ideia de como fazer melhor que o que temos aí. A parte da corrupção é mesmo lamentável e não pode ser diminuída. Mas não vejo sentido algum em deixar de votar no PT por isso para votar em quem fez as mesmas coisas ou ainda pior.
Sobra o terceiro argumento. A ideia de que o Brasil está uma bagunça, feministas peludas e raivosas mandam no mundo, tudo é a favor dos negros, os gays estão por cima fazendo o que querem, empregadas domésticas sambam na cara das patroas e por aí vai. Esse argumento sim, merece ser levado muito a sério. Não por ter qualquer amparo no mundo real. Não tem. Basta olhar as estatísticas. Homens ganham mais que mulheres, brancos ganham mais que negros e gays continuam sendo assassinados pela sua orientação. A questão não é essa.
O ponto é outro. Esse ódio insano ao PT pelo que o governo nunca fez mostra algo importante. A sensação de uma classe que sempre foi privilegiada, que sempre teve tudo, que sempre teve o Estado existindo unicamente para ela, subitamente vendo esse Estado atendendo outros tipos de pessoas. Não que elas tenham perdido algo: no governo do PT bancos bateram recordes de lucratividade, os empresários encheram o bolso muito mais que no governo FHC, e a classe média deixou de passar as férias na região dos lagos e foi para a Europa. Mas para eles não basta a vida ficar boa. É importante também que quem é pobre, quem é subalterno, nunca tenha NADA. Então para essa gente não é legal ir para Paris se o porteiro do prédio também for. Para eles isso é insuportável, intolerável
Não importa o que eles têm. O que importa é terem mais que os pobres. Ostentar sinais de distinção. Não foi a toa que vimos o crescimento assombroso de fenômenos tipo restaurantes que cobram 80 reais por um filé de peixe com batatas. Ou de médicos raivosos porque estrangeiros vieram ocupar postos que eles não queriam. Há vários motivos para isso, mas um deles é a necessidade de ostentação, de mostrar superioridade, de um bando de gente que está obesa de tanto dinheiro mas não suporta que os de baixo tenham melhorado um tiquinho que seja. Para eles, só faz sentido viver num mundo em que o Estado garanta a submissão eterna dessa gente. Quando não é assim, espumam de raiva.
O PT não é perfeito. Seus 12 anos de governo estão muitíssimo longe disso. Na verdade ajudaram a manter gravíssimos problemas do país. O problema é ter uma oposição que não odeia o governo pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades.
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
O que o debate do SBT nos disse sobre as eleições
Uma questão que está posta há algum tempo é: ainda faz sentido ver os debates dos candidatos à presidência? Afinal, com regras tão rígidas e os candidatos tão guiados por marqueteiros e mais preocupados em gerar boas cenas para o horário eleitoral do que em debater de verdade fica parecendo mesmo que não faz sentido. Mas faz, e muito.
Vi hoje o debate de SBT e tirei duas lições muito importantes sobre o processo eleitoral que vivemos. O primeiro é que Aécio Neves no momento é carta fora do baralho. Ficou muito evidente que foi tratado assim. Os candidatos e os jornalistas que participaram trataram Dilma e Marina como os postulantes reais. Aécio tentou polemizar, mas ficou claro que ele é o mais importante dos candidatos pequenos, nada mais que isso. Pode mudar, claro. Mas a realidade de hoje é essa. E com sua inexplicável estratégia de ver em Dilma a principal inimiga enquanto Marina fica com todos os votos que ele pretendia ter, isso parece cada vez menos provável.
Mas o mais importante que vi é que hoje, neste momento, Marina tem tudo a seu favor. Ela se beneficia de um tipo de voto muito particular. É o eleitor que tem uma visão muito vagamente politizada da vida, está cansado do conflito PT x PSDB, que acha que no fundo ambos são iguais e que é preciso mudar. Esse eleitor se identifica com Marina Silva. Por não acompanhar o dia a dia da política, esse eleitor não está interessado em saber das contradições programáticas dela, não entende de economia, acha o debate "meritocracia x políticas sociais" absolutamente inoperante. Esse eleitor quer mudança em relação "a tudo o que está aí".
E para esse eleitor Dilma e Aécio nada tem o que dizer. Ambos se mantém claramente dentro da polarização entre seus partidos, que domina a política nacional há 20 anos. Não conseguem se dar conta de que para esse contingente de eleitores esses argumentos não servem para nada. Seguem argumentando a mesma coisa. Aécio mantém a toada tucana desde 2002: uma ideia geral neoliberal misturada com promessas de manutenção das políticas sociais petistas. E convenhamos: é um candidato muito fraco. O mais irrelevante, sem discurso nem ideias que o PSDB já apresentou ao eleitorado brasileiro. O que também ajuda Marina, que surfa entre um outro eleitorado, que espera um candidato antipetista mas não se identifica com Aécio.
Mas Dilma tampouco está melhor. Tentou cercar Marina com o tema da governabilidade. Concordo com a crítica ao voluntarismo de Marina, que tenta convencer seus eleitores de que basta querer mudar que isso vai acontecer. Mas a grande questão é: como o possível eleitorado de Marina entende isso? Me pareceu que viu alguém "que compactua com tudo o que está aí" tentando desmoralizar alguém que "quer fazer algo diferente". O que mostra que o discurso não foi bem calibrado. É um discurso que cai bem para um certo tipo de público, e que me parece correto, mas nem sequer arranha o que as pessoas que estão dispostas a votar em Marina querem ouvir.
No fim o que fica é o seguinte. As manifestações do ano passado mostraram claramente a existência de um grande número de pessoas que estão cansadas do cenário político atual. Certas ou erradas, é o que elas pensam. E esse é o eleitorado de Marina Silva. Não são pessoas que lêem programas de governo, que sigam o dia a dia da política, que tenham ideologia. Elas só estão cansadas. O que é um sentimento genuíno e que se pode entender, ainda que não seja o meu. E Dilma e Aécio nada têm a dizer a essas pessoas. Entorpecidas pelos 20 anos de polêmica, não conseguem entender o que está acontecendo. E ainda ficam brigando entre si nos debates enquanto Marina surfa.
Política é o universo do tempo curto, em que as coisas mudam rapidamente, já nos ensinou o grande historiador Fernand Braudel. Tudo pode mudar amanhã. Mas hoje o cenário é: tudo está a favor de Marina.
Vi hoje o debate de SBT e tirei duas lições muito importantes sobre o processo eleitoral que vivemos. O primeiro é que Aécio Neves no momento é carta fora do baralho. Ficou muito evidente que foi tratado assim. Os candidatos e os jornalistas que participaram trataram Dilma e Marina como os postulantes reais. Aécio tentou polemizar, mas ficou claro que ele é o mais importante dos candidatos pequenos, nada mais que isso. Pode mudar, claro. Mas a realidade de hoje é essa. E com sua inexplicável estratégia de ver em Dilma a principal inimiga enquanto Marina fica com todos os votos que ele pretendia ter, isso parece cada vez menos provável.
Mas o mais importante que vi é que hoje, neste momento, Marina tem tudo a seu favor. Ela se beneficia de um tipo de voto muito particular. É o eleitor que tem uma visão muito vagamente politizada da vida, está cansado do conflito PT x PSDB, que acha que no fundo ambos são iguais e que é preciso mudar. Esse eleitor se identifica com Marina Silva. Por não acompanhar o dia a dia da política, esse eleitor não está interessado em saber das contradições programáticas dela, não entende de economia, acha o debate "meritocracia x políticas sociais" absolutamente inoperante. Esse eleitor quer mudança em relação "a tudo o que está aí".
E para esse eleitor Dilma e Aécio nada tem o que dizer. Ambos se mantém claramente dentro da polarização entre seus partidos, que domina a política nacional há 20 anos. Não conseguem se dar conta de que para esse contingente de eleitores esses argumentos não servem para nada. Seguem argumentando a mesma coisa. Aécio mantém a toada tucana desde 2002: uma ideia geral neoliberal misturada com promessas de manutenção das políticas sociais petistas. E convenhamos: é um candidato muito fraco. O mais irrelevante, sem discurso nem ideias que o PSDB já apresentou ao eleitorado brasileiro. O que também ajuda Marina, que surfa entre um outro eleitorado, que espera um candidato antipetista mas não se identifica com Aécio.
Mas Dilma tampouco está melhor. Tentou cercar Marina com o tema da governabilidade. Concordo com a crítica ao voluntarismo de Marina, que tenta convencer seus eleitores de que basta querer mudar que isso vai acontecer. Mas a grande questão é: como o possível eleitorado de Marina entende isso? Me pareceu que viu alguém "que compactua com tudo o que está aí" tentando desmoralizar alguém que "quer fazer algo diferente". O que mostra que o discurso não foi bem calibrado. É um discurso que cai bem para um certo tipo de público, e que me parece correto, mas nem sequer arranha o que as pessoas que estão dispostas a votar em Marina querem ouvir.
No fim o que fica é o seguinte. As manifestações do ano passado mostraram claramente a existência de um grande número de pessoas que estão cansadas do cenário político atual. Certas ou erradas, é o que elas pensam. E esse é o eleitorado de Marina Silva. Não são pessoas que lêem programas de governo, que sigam o dia a dia da política, que tenham ideologia. Elas só estão cansadas. O que é um sentimento genuíno e que se pode entender, ainda que não seja o meu. E Dilma e Aécio nada têm a dizer a essas pessoas. Entorpecidas pelos 20 anos de polêmica, não conseguem entender o que está acontecendo. E ainda ficam brigando entre si nos debates enquanto Marina surfa.
Política é o universo do tempo curto, em que as coisas mudam rapidamente, já nos ensinou o grande historiador Fernand Braudel. Tudo pode mudar amanhã. Mas hoje o cenário é: tudo está a favor de Marina.
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
Como fica a situação com Marina?
Daqui de longe acompanho todo o processo que se seguiu à morte trágica de Eduardo Campos. Pelo que entendi há a percepção generalizada de que Marina Silva subitamente se transformou no nome a ser batido nas eleições de outubro. Pelo que pude entender, a maioria acha que ela é favoritíssima a deixar Aécio para trás, ir para o segundo turno com Dilma, e superar a atual presidente graças aos votos dos tucanos.
Na verdade não vejo nada exatamente errado nessa projeção. Não morreria de surpresa se acontecesse exatamente isso mesmo. Aécio não pára de se mostrar um candidato fraquíssimo, pode mesmo ser superado por Marina, que capitalizaria os votos daquela classe média "cansada" de sempre, mais uma boa parcela dos evangélicos e aproveitaria o fator emocional da morte de Eduardo Campos. Conseguindo isso poderia mesmo contar com o antipetismo furioso dos eleitores do PSDB e ultrapassar Dilma na reta de chegada.
O grande problema é: isso é meramente uma projeção baseada no que temos no dia de hoje. Faltam 45 dias para a eleição, e há muita coisa para entrar em jogo. Para começar, todo o crescimento de Marina Silva na pesquisa do Datafolha em relação aos números que Eduardo Campos vinha obtendo foram conseguidos através de pessoas que antes apareciam como indecisas. Em que medida esse voto é de fato consolidado e em que medida é fruto do fator emocional do momento? Os eleitores que estiverem no segundo caso (e não sabemos quantos são) podem perfeitamente mudar de voto amanhã.
Talvez mais importante: só agora a campanha está começando para valer. E novos fatores entram em campo: até aqui a campanha era basicamente uma questão de exposição na mídia, mas agora tempo de TV, arrecadação de fundos e palanques regionais começam a falar mais alto. E aí a situação possivelmente mudará. É o que tradicionalmente ocorre. A questão é: quem vai ganhar e quem vai perder com essa mudança?
Dilma tende a ganhar. Após anos de super exposição negativa na mídia, será a candidata com mais tempo de TV e poderá mostrar o que fez em seus quatro anos de governo. Na verdade qualquer campanha de reeleição tem essa característica bem particular: se o ocupante do poder conseguir convencer à população de que fez um bom trabalho, dificilmente perderá a renovação do mandato. Dilma tem argumentos para isso, tempo de TV e palanques regionais de sobra para servirem de plataforma, e dinheiro não deverá faltar. Sò não crescerá se for incompetente ou se algo imprevisto ocorrer.
Aécio é uma interrogação. Tem uma máquina partidária forte, boa penetração nos dois maiores colégios eleitorais do país, mas simplesmente ainda não encontrou seu papel na campanha. Sabemos apenas que ele odeia o PT. Fora isso, termos genéricos que nunca disseram nada a ninguém, tais como "choque de gestão". Me parece que há um eleitorado esperando para ter motivos para votar nele, mas seu discurso vazio e a falta de rumo de sua campanha ainda não arrastaram parte desse eleitorado potencial. Com tempo de TV, caixa de campanha e palanques regionais, apoio da mídia e a ameaça de ficar em um vexaminoso terceiro lugar, Aécio terá a oportunidade de tentar crescer e chegar vivo ao segundo turno.
A grande questão é Marina Silva. Seu desempenho é totalmente incerto, podendo se eleger ou ficar em terceiro lugar, e ela é o grande fator desequilibrante de uma eleição que caminhava a passos previsíveis. Ninguém sabe o que ela pensa sobre nada, já que, cautelosamente, ela se esquiva de reponder a qualquer pergunta, sempre apelando para suas palavras-chave favoritas ("sustentabilidade", "nova política" e outros termos que ela nunca se preocupou em explicar o que significam, até para manter a estratégia de jamais sair do discurso mais genérico que se possa imaginar). Ainda não sabemos quais serão seus apoios nem com quem pretende governar. Sua estratégia sim, é evidente: nunca falar nada, nunca desagradar ninguém, nunca se colocar, sempre se esconder, para tentar pescar os votos dos que não estão satisfeitos "com tudo isso o que está aí".
Outra dificuldade é entender qual o seu eleitorado potencial. Muita gente a vê como linha auxiliar do PSDB, um voto tucano disfaraçado, uma nova cara do antipetismo raivoso, etc. Típica tolice de quem pensa conhecer "o povo" sem nunca sair de seu confortável gabinete com ar condicionado. Existe esse voto em Marina, mas existem outros. Todos são "contra isso tudo o que está aí", mas esse "isso tudo" não é sempre a mesma coisa. Há pessoas que realmente se sentem desapontadas com PT e PSDB (quem pode culpá-las?) e são ingenuas o bastante para acreditar que Marina será diferente (ainda que nem Marina nem esses eleitores saibam explicar como ela faria diferente). Há pessoas conservadoras, muitas das quais evangélicas, para as quais Marina parece ser um porto mais seguro do que PT e PSDB, vistos por essas pessoas como culturalmente liberais demais (é aquele voto "antigamente não tinha isso de gay, cota, violência, filho respeitava pai, mulher respeitava marido, hoje é essa bagunça toda que está aí). E há outros também. Marina é fenômeno muito mais complexo do que seus detratores querem fazer parecer.
Em suma, a única certeza é que a entrada de Marina Silva muda todo o jogo, que parecia ter rumos bem previsíveis. Tudo o que se pode fazer são projeções, o que, em termos crus, nada mais são do que chutes abalizados (assim como os palpites de comentarista de futebol antes do jogo começar). A bola vai rolar pra valer, e o jogo mal começou.
PS: Se querem saber meu chute aqui vai. Dilma aproveita a TV, cresce e ultrapassa os 40%. A máquina de Aécio tentará destruir Marina para garantir sua presença no segundo turno. A real força de Marina para resistir a isso é a grande incógnita da minha projeção. Se ela for fraca como imagino, fica para trás. Se for mais forte e consolidada que parece, aguenta firme e será páreo duro para Dilma em um segundo turno.
Na verdade não vejo nada exatamente errado nessa projeção. Não morreria de surpresa se acontecesse exatamente isso mesmo. Aécio não pára de se mostrar um candidato fraquíssimo, pode mesmo ser superado por Marina, que capitalizaria os votos daquela classe média "cansada" de sempre, mais uma boa parcela dos evangélicos e aproveitaria o fator emocional da morte de Eduardo Campos. Conseguindo isso poderia mesmo contar com o antipetismo furioso dos eleitores do PSDB e ultrapassar Dilma na reta de chegada.
O grande problema é: isso é meramente uma projeção baseada no que temos no dia de hoje. Faltam 45 dias para a eleição, e há muita coisa para entrar em jogo. Para começar, todo o crescimento de Marina Silva na pesquisa do Datafolha em relação aos números que Eduardo Campos vinha obtendo foram conseguidos através de pessoas que antes apareciam como indecisas. Em que medida esse voto é de fato consolidado e em que medida é fruto do fator emocional do momento? Os eleitores que estiverem no segundo caso (e não sabemos quantos são) podem perfeitamente mudar de voto amanhã.
Talvez mais importante: só agora a campanha está começando para valer. E novos fatores entram em campo: até aqui a campanha era basicamente uma questão de exposição na mídia, mas agora tempo de TV, arrecadação de fundos e palanques regionais começam a falar mais alto. E aí a situação possivelmente mudará. É o que tradicionalmente ocorre. A questão é: quem vai ganhar e quem vai perder com essa mudança?
Dilma tende a ganhar. Após anos de super exposição negativa na mídia, será a candidata com mais tempo de TV e poderá mostrar o que fez em seus quatro anos de governo. Na verdade qualquer campanha de reeleição tem essa característica bem particular: se o ocupante do poder conseguir convencer à população de que fez um bom trabalho, dificilmente perderá a renovação do mandato. Dilma tem argumentos para isso, tempo de TV e palanques regionais de sobra para servirem de plataforma, e dinheiro não deverá faltar. Sò não crescerá se for incompetente ou se algo imprevisto ocorrer.
Aécio é uma interrogação. Tem uma máquina partidária forte, boa penetração nos dois maiores colégios eleitorais do país, mas simplesmente ainda não encontrou seu papel na campanha. Sabemos apenas que ele odeia o PT. Fora isso, termos genéricos que nunca disseram nada a ninguém, tais como "choque de gestão". Me parece que há um eleitorado esperando para ter motivos para votar nele, mas seu discurso vazio e a falta de rumo de sua campanha ainda não arrastaram parte desse eleitorado potencial. Com tempo de TV, caixa de campanha e palanques regionais, apoio da mídia e a ameaça de ficar em um vexaminoso terceiro lugar, Aécio terá a oportunidade de tentar crescer e chegar vivo ao segundo turno.
A grande questão é Marina Silva. Seu desempenho é totalmente incerto, podendo se eleger ou ficar em terceiro lugar, e ela é o grande fator desequilibrante de uma eleição que caminhava a passos previsíveis. Ninguém sabe o que ela pensa sobre nada, já que, cautelosamente, ela se esquiva de reponder a qualquer pergunta, sempre apelando para suas palavras-chave favoritas ("sustentabilidade", "nova política" e outros termos que ela nunca se preocupou em explicar o que significam, até para manter a estratégia de jamais sair do discurso mais genérico que se possa imaginar). Ainda não sabemos quais serão seus apoios nem com quem pretende governar. Sua estratégia sim, é evidente: nunca falar nada, nunca desagradar ninguém, nunca se colocar, sempre se esconder, para tentar pescar os votos dos que não estão satisfeitos "com tudo isso o que está aí".
Outra dificuldade é entender qual o seu eleitorado potencial. Muita gente a vê como linha auxiliar do PSDB, um voto tucano disfaraçado, uma nova cara do antipetismo raivoso, etc. Típica tolice de quem pensa conhecer "o povo" sem nunca sair de seu confortável gabinete com ar condicionado. Existe esse voto em Marina, mas existem outros. Todos são "contra isso tudo o que está aí", mas esse "isso tudo" não é sempre a mesma coisa. Há pessoas que realmente se sentem desapontadas com PT e PSDB (quem pode culpá-las?) e são ingenuas o bastante para acreditar que Marina será diferente (ainda que nem Marina nem esses eleitores saibam explicar como ela faria diferente). Há pessoas conservadoras, muitas das quais evangélicas, para as quais Marina parece ser um porto mais seguro do que PT e PSDB, vistos por essas pessoas como culturalmente liberais demais (é aquele voto "antigamente não tinha isso de gay, cota, violência, filho respeitava pai, mulher respeitava marido, hoje é essa bagunça toda que está aí). E há outros também. Marina é fenômeno muito mais complexo do que seus detratores querem fazer parecer.
Em suma, a única certeza é que a entrada de Marina Silva muda todo o jogo, que parecia ter rumos bem previsíveis. Tudo o que se pode fazer são projeções, o que, em termos crus, nada mais são do que chutes abalizados (assim como os palpites de comentarista de futebol antes do jogo começar). A bola vai rolar pra valer, e o jogo mal começou.
PS: Se querem saber meu chute aqui vai. Dilma aproveita a TV, cresce e ultrapassa os 40%. A máquina de Aécio tentará destruir Marina para garantir sua presença no segundo turno. A real força de Marina para resistir a isso é a grande incógnita da minha projeção. Se ela for fraca como imagino, fica para trás. Se for mais forte e consolidada que parece, aguenta firme e será páreo duro para Dilma em um segundo turno.
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
"So no Brasil acontece isso"
Uma vez um amigo moçambicano me fez uma observaçao que deu o que pensar. Segundo ele (que vive ha muitos anos por aqui) nos brasileiros somos megalomaniacos. Achamos que tudo aqui é o melhor ou o pior do mundo. E que achamos que ha infinitas coisas, boas e ruins, que so existem aqui. Uma especie de sindrome da particularidade: em nossa cabeça, somos um lugar unico, e nada do que acontece aqui existe em outros lugares, para o bem e para o mal. So aqui ha corrupçao, problemas na educaçao, saude e transporte, nossa elite é a mais perversa, nossos impostos sao os mais altos, nosso carnaval é insuperavel, nossas mulheres sao as mais lindas, jogamos futebol como ninguém, e por ai vai.
Tudo isso me ocorria semana passada, quando estava na fila da Policia Federal para tomar meu voo para Milao. A fila era grande, as pessoas se indignavam e berravam "terceiro mundo é foda, so aqui mesmo que acontece isso, que pais de merda". Sim, havia muito de viralatismo tao presente nas nossas classes média e alta ali. Passei varias vezes pelo Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, sempre pegando filas muito maiores e enfrentando uma bagunça absurda. Logo na chegada a Milao peguei uma fila gigante para tomar minha conexao para Istambul. Mas la fora brasileiro nao reclama: tira selfie todo feliz para postar no instagram "eu na Europa", e coisas assim.
Em março estive em Atenas. Passei quatro dias vendo carros parados em cima da calçada e outros cenarios que achamos que so existem no Brasil. Na hora de ir embora paguei o hotel e recebi uma nota fiscal de 0,50 euros, prova evidente de sonegaçao de impostos. Em Istambul roubar na hora de dar o troco é uma verdadeira instituiçao, todo mundo faz. Aqui na Italia nao ha cobrador no transporte publico. Teoricamente voce paga o bilhete numa maquina e entra. Mas a maioria esmagadora nao paga nada, simplesmente entra no metro, onibus ou bonde e viaja de graça. Hoje estava em um bonde, dois fiscais entraram para ver os bilhetes dos passageiros e era tanta gente trapaceando que eles desceram dois pontos depois, apos darem multas em profusao.
Esta semana meu computador faleceu de velhice. E eu tinha de comprar outro, pois um dos motivos para estar em Turim é ter paz para escrever um texto importante longe das chateaçoes da vida diaria. Falei com um amigo profissional da area, que fez telefonemas e me levou para comprar um novo. Nao em uma loja. Com um cara de uns 60 anos que nos encontrou num suburbio, abriu o porta-malas de seu carro e mostrou as opçoes. Meu amigo testou todos e me indicou um. 350 euros em um computador com valor de mercado de 1.500. Paguei em dinheiro sem nota fiscal nem garantia.
Nao estou dizendo que a Europa é igual ao Brasil, muito menos embarcando naquela auto condescendencia que adoramos ter. O velho continente tem inumeras vantagens que parecem um verdadeiro sonho para nos. Educaçao, saude e transporte publico excelentes (ainda que os métodos educacionais sejam francamente ultrapassados, inclusive nas universidades), a vida nas cidades é muito melhor que nas nossas, a desigualdade social é muitissimo menor e por ai vai. Na média a vida aqui é bem melhor que no Brasil, e so um imbecil discordaria disso.
O que nao quer dizer que tenhamos de seguir achando que tudo no Brasil é pior que aqui. Nem falo de carnaval, samba, mulheres e musica. A Italia, onde estou agora, tem uma politica absurdamente corrupta, e possui muitos habitantes que acham que Mussolini era um otimo governante. Insultos racistas sao muito comuns. Ontem ouvi alguns das pessoas que estavam atras de mim na fila do supermercado. Se referiam a mim em termos que nem tenho coragem de repetir aqui. Acharam que eu era do leste europeu, que nao entendia italiano e disseram coisas que nunca vou esquecer.
Mais que isso. Em termos economicos, uma larga parte da Europa tem crescido bem menos que o Brasil. Aqui na Italia é dificil encontrar alguem de 25 ou 30 anos com emprego estavel. A chamada "geraçao Berlusconi" pagou o pato das reformas feitas pelo governo frente à crise que assola o pais. As coisas seguem muito bem para a gigantesca parcela da populaçao que tem mais de 40 anos e chegou à maturidade nos tempos do Estado de Bem Estar Social. Para quem chegou depois, as coisas nao vao nada bem. Ouço falarem do Brasil com admiraçao. Nao pelas mulatas, mas pela economia e pelo crescimento mesmo (tambem acham que vivemos num clima de 50 graus e vivemos no meio da floresta, mas ai é outra conversa)
O Brasil precisa melhorar muito. Mas muito mesmo. So que ja deu pra essa conversa vira lata de sermos os piores do universo. Nunca fomos, e continuamos nao sendo. Mesmo as coisas ruins que temos nem sempre sao especificidades nossas. Precisamos entender que andamos muito tempo no caminho errado, e em varias coisas continuamos assim. Mas melhoramos em muita coisa nas ultimas decadas. E vale compreender tambem que nossos modelos de perfeiçao nem sempre sao essa maravilha toda. Em suma, que melhoremos, mas tendo o entendimento que o viralatismo nao vai nos levar a lugar nenhum.
Tudo isso me ocorria semana passada, quando estava na fila da Policia Federal para tomar meu voo para Milao. A fila era grande, as pessoas se indignavam e berravam "terceiro mundo é foda, so aqui mesmo que acontece isso, que pais de merda". Sim, havia muito de viralatismo tao presente nas nossas classes média e alta ali. Passei varias vezes pelo Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, sempre pegando filas muito maiores e enfrentando uma bagunça absurda. Logo na chegada a Milao peguei uma fila gigante para tomar minha conexao para Istambul. Mas la fora brasileiro nao reclama: tira selfie todo feliz para postar no instagram "eu na Europa", e coisas assim.
Em março estive em Atenas. Passei quatro dias vendo carros parados em cima da calçada e outros cenarios que achamos que so existem no Brasil. Na hora de ir embora paguei o hotel e recebi uma nota fiscal de 0,50 euros, prova evidente de sonegaçao de impostos. Em Istambul roubar na hora de dar o troco é uma verdadeira instituiçao, todo mundo faz. Aqui na Italia nao ha cobrador no transporte publico. Teoricamente voce paga o bilhete numa maquina e entra. Mas a maioria esmagadora nao paga nada, simplesmente entra no metro, onibus ou bonde e viaja de graça. Hoje estava em um bonde, dois fiscais entraram para ver os bilhetes dos passageiros e era tanta gente trapaceando que eles desceram dois pontos depois, apos darem multas em profusao.
Esta semana meu computador faleceu de velhice. E eu tinha de comprar outro, pois um dos motivos para estar em Turim é ter paz para escrever um texto importante longe das chateaçoes da vida diaria. Falei com um amigo profissional da area, que fez telefonemas e me levou para comprar um novo. Nao em uma loja. Com um cara de uns 60 anos que nos encontrou num suburbio, abriu o porta-malas de seu carro e mostrou as opçoes. Meu amigo testou todos e me indicou um. 350 euros em um computador com valor de mercado de 1.500. Paguei em dinheiro sem nota fiscal nem garantia.
Nao estou dizendo que a Europa é igual ao Brasil, muito menos embarcando naquela auto condescendencia que adoramos ter. O velho continente tem inumeras vantagens que parecem um verdadeiro sonho para nos. Educaçao, saude e transporte publico excelentes (ainda que os métodos educacionais sejam francamente ultrapassados, inclusive nas universidades), a vida nas cidades é muito melhor que nas nossas, a desigualdade social é muitissimo menor e por ai vai. Na média a vida aqui é bem melhor que no Brasil, e so um imbecil discordaria disso.
O que nao quer dizer que tenhamos de seguir achando que tudo no Brasil é pior que aqui. Nem falo de carnaval, samba, mulheres e musica. A Italia, onde estou agora, tem uma politica absurdamente corrupta, e possui muitos habitantes que acham que Mussolini era um otimo governante. Insultos racistas sao muito comuns. Ontem ouvi alguns das pessoas que estavam atras de mim na fila do supermercado. Se referiam a mim em termos que nem tenho coragem de repetir aqui. Acharam que eu era do leste europeu, que nao entendia italiano e disseram coisas que nunca vou esquecer.
Mais que isso. Em termos economicos, uma larga parte da Europa tem crescido bem menos que o Brasil. Aqui na Italia é dificil encontrar alguem de 25 ou 30 anos com emprego estavel. A chamada "geraçao Berlusconi" pagou o pato das reformas feitas pelo governo frente à crise que assola o pais. As coisas seguem muito bem para a gigantesca parcela da populaçao que tem mais de 40 anos e chegou à maturidade nos tempos do Estado de Bem Estar Social. Para quem chegou depois, as coisas nao vao nada bem. Ouço falarem do Brasil com admiraçao. Nao pelas mulatas, mas pela economia e pelo crescimento mesmo (tambem acham que vivemos num clima de 50 graus e vivemos no meio da floresta, mas ai é outra conversa)
O Brasil precisa melhorar muito. Mas muito mesmo. So que ja deu pra essa conversa vira lata de sermos os piores do universo. Nunca fomos, e continuamos nao sendo. Mesmo as coisas ruins que temos nem sempre sao especificidades nossas. Precisamos entender que andamos muito tempo no caminho errado, e em varias coisas continuamos assim. Mas melhoramos em muita coisa nas ultimas decadas. E vale compreender tambem que nossos modelos de perfeiçao nem sempre sao essa maravilha toda. Em suma, que melhoremos, mas tendo o entendimento que o viralatismo nao vai nos levar a lugar nenhum.
domingo, 3 de agosto de 2014
Escolhendo candidato a deputado
Peço desculpas por este post ter um tom diferente do que normalmente se vê neste blog. Tem um tom meio professoral, que normalmente eu tento evitar. Mas é que percebo que a maioria esmagadora das pessoas que conheço (inclusive aquelas com muitos anos de estudo) não entende bem como funciona a eleição de parlamentares no Brasil. E estamos a dois meses de eleger nossos deputados federais e estaduais. Então me pareceu apropriado um post explicativo sobre o assunto.
Há duas formas de escolher deputados federais, estaduais e vereadores. Uma é o voto distrital. Pensemos em Pernambuco, onde vivo. O Estado elegerá 24 deputados federais em outubro. Com o voto distrital, o estado seria dividido em 24 distritos eleitorais de população equivalente. Cada distrito teria seus candidatos. O mais votado em cada distrito seria eleito. É o sistema adotado na Inglaterra e nos Estados Unidos.
O outro sistema, dominante, por exemplo, na Europa continental, é o voto de lista. Cada partido ou coligação apresenta aos eleitores uma lista de candidatos. A lista já chega ordenada previamente: há o candidato 1 da lista, o 2, o 3, e assim por diante. Você simplesmente vota na lista que gosta mais. Digamos que em Pernambuco uma determinada lista tenha 25% dos votos. Ela elegerá um quarto dos deputados do estado. Ou seja, os seis primeiros da lista.
O Brasil adota uma variante desse sistema: o voto proporcional. Nela você escolhe sua lista favorita, mas também tem o poder (que não existe no voto de lista) de escolher qual dos candidatos da lista você prefere que seja eleito. Ou seja, é um voto de lista, mas no qual a ordenação dos candidatos não é feita pela cúpula partidária, mas pelo eleitor. O candidato número 1 da lista não é aquele que a cúpula partidária decidiu que estaria no topo, mas aquele que teve mais votos dos eleitores. O mesmo para o 2, o 3, etc.
Tudo isso tem grandes implicações na hora de decidir o voto. Significa que um voto para deputado federal ou estadual é uma espécie de "2 em 1". Afinal, você está fazendo duas opções ao mesmo tempo. A mais importante, e a mais negligenciada, e que você está escolhendo a lista que você espera que te represente. A segunda, voce está também escolhendo, dentro da lista que te representa, quem é o candidato que você mais gostaria que te representasse.
Resultado: muito mais importante que escolher seu candidato, é escolher sua lista. Pois ao votar em qualquer candidato, você primordialmente estará optando pela lista da qual ele faz parte. Depois de escolhida a lista, aí sim, escolha o seu nome favorito. Pois se você fizer o contrário, estará correndo enorme risco de se decepcionar. Vota naquele cara que você confia, sem conhecer a lista da qual ele faz parte, e acaba ajudando a eleger alguém que você nem sabe quem é.
O sistema pode parecer idiota, mas não é. A ideia é garantir que as forças políticas sejam representadas no congresso, nas assembléias legislativas e câmaras de vereadores na mesma proporção em que são apoiadas pela sociedade. Nessa visão (que eu compartilho), se um partido tem um terço dos votos, nada mais justo que eleja um terço dos deputados, independente da votação individual de cada um. Esse é o espírito da eleição proporcional: que cada grupo seja tenha um número de representantes proporcional aos votos que teve, sem que seja importante quantos votos cada um de seus membros teve.
É um sistema que pode gerar distorções. Como qualquer outro. O voto distrital também causa um monte. Por exemplo, bastam 25% dos votos para um partido controlar o congresso (50% dos votos em 50% dos distritos dão maioria a qualquer partido). Mas independente do que se pense desse sistema (que pra mim é o melhor), o que importa é conhecê-lo e saber como lidar com ele.
Há duas formas de escolher deputados federais, estaduais e vereadores. Uma é o voto distrital. Pensemos em Pernambuco, onde vivo. O Estado elegerá 24 deputados federais em outubro. Com o voto distrital, o estado seria dividido em 24 distritos eleitorais de população equivalente. Cada distrito teria seus candidatos. O mais votado em cada distrito seria eleito. É o sistema adotado na Inglaterra e nos Estados Unidos.
O outro sistema, dominante, por exemplo, na Europa continental, é o voto de lista. Cada partido ou coligação apresenta aos eleitores uma lista de candidatos. A lista já chega ordenada previamente: há o candidato 1 da lista, o 2, o 3, e assim por diante. Você simplesmente vota na lista que gosta mais. Digamos que em Pernambuco uma determinada lista tenha 25% dos votos. Ela elegerá um quarto dos deputados do estado. Ou seja, os seis primeiros da lista.
O Brasil adota uma variante desse sistema: o voto proporcional. Nela você escolhe sua lista favorita, mas também tem o poder (que não existe no voto de lista) de escolher qual dos candidatos da lista você prefere que seja eleito. Ou seja, é um voto de lista, mas no qual a ordenação dos candidatos não é feita pela cúpula partidária, mas pelo eleitor. O candidato número 1 da lista não é aquele que a cúpula partidária decidiu que estaria no topo, mas aquele que teve mais votos dos eleitores. O mesmo para o 2, o 3, etc.
Tudo isso tem grandes implicações na hora de decidir o voto. Significa que um voto para deputado federal ou estadual é uma espécie de "2 em 1". Afinal, você está fazendo duas opções ao mesmo tempo. A mais importante, e a mais negligenciada, e que você está escolhendo a lista que você espera que te represente. A segunda, voce está também escolhendo, dentro da lista que te representa, quem é o candidato que você mais gostaria que te representasse.
Resultado: muito mais importante que escolher seu candidato, é escolher sua lista. Pois ao votar em qualquer candidato, você primordialmente estará optando pela lista da qual ele faz parte. Depois de escolhida a lista, aí sim, escolha o seu nome favorito. Pois se você fizer o contrário, estará correndo enorme risco de se decepcionar. Vota naquele cara que você confia, sem conhecer a lista da qual ele faz parte, e acaba ajudando a eleger alguém que você nem sabe quem é.
O sistema pode parecer idiota, mas não é. A ideia é garantir que as forças políticas sejam representadas no congresso, nas assembléias legislativas e câmaras de vereadores na mesma proporção em que são apoiadas pela sociedade. Nessa visão (que eu compartilho), se um partido tem um terço dos votos, nada mais justo que eleja um terço dos deputados, independente da votação individual de cada um. Esse é o espírito da eleição proporcional: que cada grupo seja tenha um número de representantes proporcional aos votos que teve, sem que seja importante quantos votos cada um de seus membros teve.
É um sistema que pode gerar distorções. Como qualquer outro. O voto distrital também causa um monte. Por exemplo, bastam 25% dos votos para um partido controlar o congresso (50% dos votos em 50% dos distritos dão maioria a qualquer partido). Mas independente do que se pense desse sistema (que pra mim é o melhor), o que importa é conhecê-lo e saber como lidar com ele.
sábado, 26 de julho de 2014
Hamas: o espantalho da vez
Estamos vendo o acirramento dos conflitos em Israel. Tudo começou quando três jovens israelenses foram assassinados por palestinos. Atribuiu-se a culpa ao Hamas (hoje o próprio estado de Israel reconhece que não era verdade) e a escalada de violência começou. Neste sábado batemos a cifra de mil mortes palestinas. A maioria sem vínculos com terrorismo. Centenas eram crianças. Escolas e hospitais foram atacados pelas forças armadas israelenses.
Qualquer pessoa com coração se compadece com esses fatos, e com imagens como a que ilustra este post. Não é questão de ser de direita ou esquerda, palestino ou israelense, ou o que quer que seja. Centenas de crianças absolutamente inocentes foram mortas. É um desastre humanitário. Ponto final. Não há como negar isso. Independente das causas, do contexto, coisas que podem ser debatidas, emerge um dado inquestionável: os danos à população palestina são uma tragédia.
Mas incrivelmente aparece quem queira minimizar o fato avassalador de crianças e mais crianças estarem sendo assassinadas todo santo dia. O argumento: o Hamas também não é boa coisa, é um grupo terrorista, perigoso, que recruta crianças, que as usa como escudo humano, que quer destruir Israel, etc.
O argumento é super hiper mega falacioso, mas pode ser sedutor. Afinal, tudo o que está contido nele é verdade. Mas a questão é que ninguém que eu conheça ou tenha lido diz que o Hamas é legal, formada por gente boníssima. O argumento em questão seria ótimo se refutasse uma tese assim. Mas não é isso que estamos dizendo. Estamos compadecidos, amargurados, revoltados com a morte de centenas de crianças. Não estamos defendendo o Hamas. Nem dizendo que os palestinos são santos ou que os israelenses são demônios. Só achamos o fim do mundo esse assassinato em massa de crianças e de civis.
Mas aí é que está: o argumento em questão é imensamente traiçoeiro. Cria um monstro, ou um "espantalho", como se diz no estudo da Lógica. Algo ao qual identificar todos os que se opõem a seu argumento. Não está gostando do que vê? Ótimo, vá lá se abraçar com o Hamas, aqueles terroristas miseráveis. O argumento é totalmente falacioso (conhecido como "a falácia do espantalho") por isso: te joga nos braços de um monstro que você nunca defendeu. Não estamos defendendo o Hamas. Só queremos viver em um mundo sem genocídio e extermínio em massa de crianças e civis. É tão difícil entender isso?
sexta-feira, 18 de julho de 2014
E o vira latismo segue vivo
Antes da copa tivemos um festival de viralatismo. Tanto da parte da direita quanto de uma imprensa esportiva mais questionadora. Todos apostando com toda a força num fracasso retumbante da copa do mundo. Os estádios não ficariam prontos e seriam todos horrorosos, protestos atrapalhariam a logística da competição, o calor faria os europeus se dissolverem, haveria caos aéreo, e por aí vai. Normal: a direita brasileira aprendeu de sua irmã norte-americana a apostar no isolacionismo. Mal faz ideia do que acontece fora do país. Mas morre de medo da avaliação estrangeiro-primeiromundista sobre o Brasil, já que morrem de vergonha de serem brasileiros. Se borram de medo de que algum "vexame" vá fazer com que na próxima visita a Miami sejam vistos como parte de um "povo inferior".
A copa veio e deu certo. Aí foi a hora do viralatismo mudar de lado. O governismo que botou as mangas de fora nesse quesito. Dia após dia víamos alemães dançando com pataxós, holandeses curtindo praia, norte-americanos caindo no forró, tudo isso mostrando como a copa estava sendo ótima e o Brasil era maravilhoso. O argumento era diferente da direita, mas o viralatismo era o mesmo: se a direita esperava que brancos que vivem no hemisfério norte se aterrorizassem com nosso atraso, agora era a hora de mostrar brancos que vivem no hemisfério norte adorando o país. A lógica é a mesma: brancos do hemisfério norte são o melhor argumento para provar o que pensamos sobre o Brasil.
Pouca gente ficou sabendo que a filha de um dos mais importantes jornalistas esportivos argentinos morreu durante a copa num acidente de carro nas imediações de Belo Horizonte. Tampouco teve destaque a morte de "Topo" López, importantíssimo jornalista esportivo argentino, num acidente de carro em São Paulo, em que o taxi em que estava foi violentamente abatido por um carro roubado que fugia da polícia. Argentina é terceiro mundo. Dane-se o que pensam de nós. Se fossem episódios envolvendo jornalistas ingleses ou alemães, aí a coisa era outra. Com a opinião deles nos preocupamos a ponto de perder o sono. Veríamos matérias e mais matérias mostrando a repercussão desses eventos no hemisfério norte. Mas latino-americano? Sem problema. Não estamos preocupados com isso.
O viralatismo também teve espaço nas análises futebolísticas. Muitos analistas quase choraram de pena dos europeus por jogarem em temperatura e pressão diferente daquelas que enfrentam habitualmente. Mesmo que eles tenham jogado muitas vezes as 13 horas por pedidos da TV de seus próprios países, para que as partidas pudessem ser transmitidas em horários viáveis na Europa. Mesmo que naquele exato momento da partida em que os pobres europeus supostamente derretiam em campo, a temperatura em seu país fosse mais alta do que era na cidade em que a partida era disputada. Não importa. O que vale é sempre dar um jeito de salvar a alva pele européia (alias: vocês conhecem alguém que deu algum desconto para a seleção brasileira de 1978 por ter disputado uma copa no gélido inverno argentino?)
No fim o resumo da ópera é: nascemos, crescemos, vivemos e morremos no Brasil. Conhecemos este país mais do que qualquer gringo jamais comhecerá. Óbvio, não? Nem tanto. A maioria de nós age como se achasse que uma visão sobre o país só fosse válida se fosse referendada por algum branco do hemisfério norte que passou algumas semanas aqui. Enquanto precisarmos disso, o viralatismo seguirá vivo.
A copa veio e deu certo. Aí foi a hora do viralatismo mudar de lado. O governismo que botou as mangas de fora nesse quesito. Dia após dia víamos alemães dançando com pataxós, holandeses curtindo praia, norte-americanos caindo no forró, tudo isso mostrando como a copa estava sendo ótima e o Brasil era maravilhoso. O argumento era diferente da direita, mas o viralatismo era o mesmo: se a direita esperava que brancos que vivem no hemisfério norte se aterrorizassem com nosso atraso, agora era a hora de mostrar brancos que vivem no hemisfério norte adorando o país. A lógica é a mesma: brancos do hemisfério norte são o melhor argumento para provar o que pensamos sobre o Brasil.
Pouca gente ficou sabendo que a filha de um dos mais importantes jornalistas esportivos argentinos morreu durante a copa num acidente de carro nas imediações de Belo Horizonte. Tampouco teve destaque a morte de "Topo" López, importantíssimo jornalista esportivo argentino, num acidente de carro em São Paulo, em que o taxi em que estava foi violentamente abatido por um carro roubado que fugia da polícia. Argentina é terceiro mundo. Dane-se o que pensam de nós. Se fossem episódios envolvendo jornalistas ingleses ou alemães, aí a coisa era outra. Com a opinião deles nos preocupamos a ponto de perder o sono. Veríamos matérias e mais matérias mostrando a repercussão desses eventos no hemisfério norte. Mas latino-americano? Sem problema. Não estamos preocupados com isso.
O viralatismo também teve espaço nas análises futebolísticas. Muitos analistas quase choraram de pena dos europeus por jogarem em temperatura e pressão diferente daquelas que enfrentam habitualmente. Mesmo que eles tenham jogado muitas vezes as 13 horas por pedidos da TV de seus próprios países, para que as partidas pudessem ser transmitidas em horários viáveis na Europa. Mesmo que naquele exato momento da partida em que os pobres europeus supostamente derretiam em campo, a temperatura em seu país fosse mais alta do que era na cidade em que a partida era disputada. Não importa. O que vale é sempre dar um jeito de salvar a alva pele européia (alias: vocês conhecem alguém que deu algum desconto para a seleção brasileira de 1978 por ter disputado uma copa no gélido inverno argentino?)
No fim o resumo da ópera é: nascemos, crescemos, vivemos e morremos no Brasil. Conhecemos este país mais do que qualquer gringo jamais comhecerá. Óbvio, não? Nem tanto. A maioria de nós age como se achasse que uma visão sobre o país só fosse válida se fosse referendada por algum branco do hemisfério norte que passou algumas semanas aqui. Enquanto precisarmos disso, o viralatismo seguirá vivo.
segunda-feira, 16 de junho de 2014
A nova estratégia dos favorecidos: o roubo da fala dos prejudicados
Eu juro que não queria mais falar sobre política. Nenhum tipo de política. O ambiente está tão contaminado, tão saturado, tão cheio de gritaria e tão vazio de argumentos minimamente minimamente lógicos, que racionalmente eu acho que deveria me abster de falar disso. Não porque eu me sinta superior, mas por achar que ao menos eu tento sustentar meus argumentos em termos racionais, algo muito trivial mas que está absolutamente em falta no debate atual.
Mas hoje eu tive o desprazer de presenciar mais uma histeria da direita brasileira. A novidade é: eles chegaram onde chegaram apenas pelo seu esforço e mérito pessoal, carregam o país nas costas, e são vítimas de racismo. Isso porque Lula atribuiu as ofensas absolutamente inaceitáveis à presidente Dilma à "elite branca". A partir daí deram vazão ao seu eterno coitadismo. Aquele velho argumento que conhecemos, só que mais explícito que nunca: a pobre elite é o que há de melhor no país, mas tem o mundo contra ela, das massas rudes e incultas a um governo que tem a inacreditável insolência de cobrar impostos.
É tanta idiotice reunida que renderia um livro ao menos para refutá-la. Como este é apenas um blog (e eu francamente tenho mais o que fazer), vou me ater a um único ponto, que me parece o mais importante de todos. Não o preconceito de classe, a alergia a pobres e a qualquer mudança que beneficie quem mais precisa de ajuda expressos nessa visão. Isso a gente já está cansado de conhecer. Fico com o seguinte ponto: essa gente está tentando, com todas as forças, desqualificar a luta de quem quer um mundo menos machista, sexista e homofóbico. Fazem isso através da vulgarização.
Pois há um lado muito óbvio nesse discurso anti-mudança. O discurso "querem virar o mundo de ponta cabeça". Lutar contra o racismo é querer oprimir os brancos. Brigar pelo fim da homofobia é ser partidário de uma ditadura gay. Ser contra a opressão das mulheres é sonhar com um mundo de mulheres raivosas, de pernas cabeludas que odeiam homens comandando o mundo. Isso é muito velho. Como historiador, me deparo com discursos exatamente nessa linha há 100 anos. É o eterno ódio à mudança de todos os favorecidos de todas as épocas. Conhecemos bem isso aí.
Mas tem um outro lado, menos óbvio. É a tentativa de vulgarizar essas lutas, agindo como se a discriminação fosse uma via de mão dupla. No caso específico, isso aparece assim: Lula ter falado em "elite branca" é a MESMÍSSIMA coisa que gerações e gerações de negros enfrentarem muito mais barreiras que os brancos para conseguirem se estabelecer. Um comentário como esse é colocado no mesmo patamar de 400 anos de escravidão e 100 anos de racismo. Aí fica aquela coisa: "existe preconceito dos brancos, mas também existe dos negros, é tudo a mesma coisa". Ou, numa formulação ainda pior: "racistas mesmo são os negros. pobres de nós, brancos oprimidos" (o mesmo vale para lutas como as das mulheres e dos homossexuais).
O grau de cretinice nesse tipo de argumentação é algo que eu não tenho como medir. Quem me conhece pessoalmente sabe que sou homem, branco, heterossexual e de classe média. Estou do lado favorecido em todas essas questões. Então posso falar muito a vontade o seguinte: gente como eu não tem o menor, o mais ínfimo direito de se sentir oprimido em relação às questões citadas. Nunca. Em hipótese alguma.
Isso não quer dizer que eu nunca tenha me sentido desconfortável. Me senti sim. Mas vamos pensar na seguinte hipótese. Em algum ambiente qualquer eu me sinto estereotipado por ser branco. Vou achar chato. Mas não me colocarei no papel de oprimido. Por um motivo absolutamente óbvio: basta eu sair daquele ambiente e pronto. Vivo num mundo que favorece os brancos. Se há espaços em que ser branco é um handicap, são espaços absolutamente pontuais. O planeta é para os brancos. Podemos eventualmente nos sentir estereotipados ou até discriminados. Mas oprimidos, nunca.
Outra coisa, totalmente diferente, é ser um não branco. Se um negro (ou indígena, etc.) se sente discriminado em alguma situação, ele sabe perfeitamente que não adianta sair dali. Se fizer isso, ele irá para qualquer outro lugar, e nele sofrerá o mesmo tipo de opressão. Um episódio de discriminação para eles não é, como é para mim, apenas um episódio. É algo experimentado cotidianamente desde o dia que nascem até o dia em que morrem. Cada episódio é uma lembrança de que se vive num mundo que é programado para te prejudicar.
Igualar um momento de desconforto a uma vida de descriminação não é apenas uma idiotice. Também é uma cretinice inominável. É algo que vulgariza barbaramente o sofrimento e as lutas alheias. Vindo de pessoas que geralmente nunca tiveram dificuldades maiores que pagar a prestação do seu apartamento num bairro de classe média. Julgando e reduzindo a importância que as desigualdades têm na vida da maioria esmagadora da nossa população.
Não subestime esse tipo de discurso. Ele é sim, fruto de uma brutal incapacidade de ver o mundo de um ponto de vista diferente do seu próprio. É isso também. São pessoas que algum dia não entenderam alguma gíria num ambiente de maioria gay e acham que isso é exatamente a mesma coisa que ser rejeitado pela família, ser alvo de preconceito todos os dias e sofrer o permanente risco de violência. Essas pessoas eventualmente podem ser apenas isso: mimadas e incapazes de entender o outro. Mas o fato é que estão reproduzindo discursos que buscam esvaziar completamente de sentido algumas das lutas mais importantes do nosso tempo contra a desigualdade.
Mas hoje eu tive o desprazer de presenciar mais uma histeria da direita brasileira. A novidade é: eles chegaram onde chegaram apenas pelo seu esforço e mérito pessoal, carregam o país nas costas, e são vítimas de racismo. Isso porque Lula atribuiu as ofensas absolutamente inaceitáveis à presidente Dilma à "elite branca". A partir daí deram vazão ao seu eterno coitadismo. Aquele velho argumento que conhecemos, só que mais explícito que nunca: a pobre elite é o que há de melhor no país, mas tem o mundo contra ela, das massas rudes e incultas a um governo que tem a inacreditável insolência de cobrar impostos.
É tanta idiotice reunida que renderia um livro ao menos para refutá-la. Como este é apenas um blog (e eu francamente tenho mais o que fazer), vou me ater a um único ponto, que me parece o mais importante de todos. Não o preconceito de classe, a alergia a pobres e a qualquer mudança que beneficie quem mais precisa de ajuda expressos nessa visão. Isso a gente já está cansado de conhecer. Fico com o seguinte ponto: essa gente está tentando, com todas as forças, desqualificar a luta de quem quer um mundo menos machista, sexista e homofóbico. Fazem isso através da vulgarização.
Pois há um lado muito óbvio nesse discurso anti-mudança. O discurso "querem virar o mundo de ponta cabeça". Lutar contra o racismo é querer oprimir os brancos. Brigar pelo fim da homofobia é ser partidário de uma ditadura gay. Ser contra a opressão das mulheres é sonhar com um mundo de mulheres raivosas, de pernas cabeludas que odeiam homens comandando o mundo. Isso é muito velho. Como historiador, me deparo com discursos exatamente nessa linha há 100 anos. É o eterno ódio à mudança de todos os favorecidos de todas as épocas. Conhecemos bem isso aí.
Mas tem um outro lado, menos óbvio. É a tentativa de vulgarizar essas lutas, agindo como se a discriminação fosse uma via de mão dupla. No caso específico, isso aparece assim: Lula ter falado em "elite branca" é a MESMÍSSIMA coisa que gerações e gerações de negros enfrentarem muito mais barreiras que os brancos para conseguirem se estabelecer. Um comentário como esse é colocado no mesmo patamar de 400 anos de escravidão e 100 anos de racismo. Aí fica aquela coisa: "existe preconceito dos brancos, mas também existe dos negros, é tudo a mesma coisa". Ou, numa formulação ainda pior: "racistas mesmo são os negros. pobres de nós, brancos oprimidos" (o mesmo vale para lutas como as das mulheres e dos homossexuais).
O grau de cretinice nesse tipo de argumentação é algo que eu não tenho como medir. Quem me conhece pessoalmente sabe que sou homem, branco, heterossexual e de classe média. Estou do lado favorecido em todas essas questões. Então posso falar muito a vontade o seguinte: gente como eu não tem o menor, o mais ínfimo direito de se sentir oprimido em relação às questões citadas. Nunca. Em hipótese alguma.
Isso não quer dizer que eu nunca tenha me sentido desconfortável. Me senti sim. Mas vamos pensar na seguinte hipótese. Em algum ambiente qualquer eu me sinto estereotipado por ser branco. Vou achar chato. Mas não me colocarei no papel de oprimido. Por um motivo absolutamente óbvio: basta eu sair daquele ambiente e pronto. Vivo num mundo que favorece os brancos. Se há espaços em que ser branco é um handicap, são espaços absolutamente pontuais. O planeta é para os brancos. Podemos eventualmente nos sentir estereotipados ou até discriminados. Mas oprimidos, nunca.
Outra coisa, totalmente diferente, é ser um não branco. Se um negro (ou indígena, etc.) se sente discriminado em alguma situação, ele sabe perfeitamente que não adianta sair dali. Se fizer isso, ele irá para qualquer outro lugar, e nele sofrerá o mesmo tipo de opressão. Um episódio de discriminação para eles não é, como é para mim, apenas um episódio. É algo experimentado cotidianamente desde o dia que nascem até o dia em que morrem. Cada episódio é uma lembrança de que se vive num mundo que é programado para te prejudicar.
Igualar um momento de desconforto a uma vida de descriminação não é apenas uma idiotice. Também é uma cretinice inominável. É algo que vulgariza barbaramente o sofrimento e as lutas alheias. Vindo de pessoas que geralmente nunca tiveram dificuldades maiores que pagar a prestação do seu apartamento num bairro de classe média. Julgando e reduzindo a importância que as desigualdades têm na vida da maioria esmagadora da nossa população.
Não subestime esse tipo de discurso. Ele é sim, fruto de uma brutal incapacidade de ver o mundo de um ponto de vista diferente do seu próprio. É isso também. São pessoas que algum dia não entenderam alguma gíria num ambiente de maioria gay e acham que isso é exatamente a mesma coisa que ser rejeitado pela família, ser alvo de preconceito todos os dias e sofrer o permanente risco de violência. Essas pessoas eventualmente podem ser apenas isso: mimadas e incapazes de entender o outro. Mas o fato é que estão reproduzindo discursos que buscam esvaziar completamente de sentido algumas das lutas mais importantes do nosso tempo contra a desigualdade.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
Pátria, Governo e Seleção
Comecemos com uma obviedade: Pátria é uma coisa, Governo é outra e seleção de futebol é outra. Se eu digo uma coisa tão óbvia é porque essa distinção parece não estar muito clara para uma quantidade enorme de pessoas quando se trata da atual copa do mundo. E essa confusão tem gerado discussões insuportáveis repleta de argumentos tolos tanto em veículos da grande mídia quanto na blogosfera quanto nas redes sociais.
Para a oposição à direita, a copa existe para atacar o governo. Dizem que vão torcer contra a seleção, que vão torcer pela Argentina (pura picuinha, já que também detestam o governo argentino, o que confere uma incoerência monstro à pretensa politização da escolha), acham lindo que um bando de gente de alto poder aquisitivo tenha sido tão grosseiro a ponto de mandar a presidente "tomar no cu" (justo eles, tão ciosos da moral e dos bons costumes) e torce insanamente para que tudo dê errado. Se a internet cair por 5 segundos no centro de imprensa de Cuiabá isso prova a incompetência do governo. Querem que o Brasil perca, por acreditar que isso ajudaria a derrotar Dilma em outubro. Bem, se são pessoas minimamente coerentes, espero que tenham torcido loucamente contra a maravilhosa seleção de 1982 para que o governo militar não pudesse capitalizar a vitória canarinho nas eleições de novembro daquele ano.
Nas hostes governistas é tudo ao contrário. Torcem mais do que nunca pela seleção, para que uma grande festa popular pelo título seja a coroação da "copa das copas". Para esses, tudo está lindo, os estádios são maravilhosos, críticas a qualquer aspecto da organização é coisa de coxinha.
A oposição à esquerda é mais complexa. Não está (em termos políticos) muito preocupada com o que acontece no campo. Mas desconfia barbaramente de pessoas que torçam muito pela seleção, pois acham que isso é coisa de governista acrítico ou de pachecos. Seu interesse principal na verdade é no aspecto extra-esportivo: querem mostrar o custo humano da copa e denunciar violência da PM contra os "protestos da população". Aí rola aquele velho patrulhamento que todos os esquerdistas conhecem bem: "como você pode se preocupar com a copa enquanto há tanta seca, enchentes, violência policial, desigualdade, etc.?".
Me desculpem os inúmeros amigos que adotam qualquer uma dessas posturas, mas acho que vocês estão completamente errados. Copa é a coisa mais legal do mundo, acontece só de 4 em 4 anos e desta vez é no Brasil. Será que um dia teremos outra oportunidade de desfrutar de um mundial como o deste ano? Acho pouco provável. Um monte de jogos legais acontecendo aqui dentro, com a presença de muitos dos maiores jogadores do mundo, estrangeiros de todos os tipos, cores e tamanhos circulando pelas nossas cidades, enfim, uma delícia total.
"Ah, mas isso é alienação". Não, não é. Copa não dura 365 dias por ano. Dura 1 mês a cada quatro anos. Me dou o direito de ser alienado nesses dias. Pois nunca vi ninguém que seja politizado 24 horas por dia. E seria mesmo um inferno. Ninguém aguentaria uma pessoa assim. Todos nós temos nossos deveres de cidadãos mas também temos o direito de, quando acharmos necessário, desanuviar a mente com algo, seja futebol, livros policiais, comédias românticas, viagem pra hotel fazenda, enfim, o que achar melhor. Me desculpem, mas não vou ficar o dia todo lutando contra o fim da desigualdade.
Então é o seguinte: vou torcer como sempre pelo Brasil, mas também, em ordem descrescente, por Uruguai (por amor ao país e à mística da Celeste), Russia (velhos hábitos comunistas), Portugal (a boa e velha ancestralidade) e México (que acho que deve ser um país muito legal). A partir do mês que vem volto a fazer minhas escolhas baseado em política. Agora não. Estou preocupadíssimo com a reeleição da Dilma, mas neste minuto exato o que realmente ocupa minha mente é se Luis Suarez ao menos entra no segundo tempo do jogo do Uruguai amanhã. Até a próxima.
Para a oposição à direita, a copa existe para atacar o governo. Dizem que vão torcer contra a seleção, que vão torcer pela Argentina (pura picuinha, já que também detestam o governo argentino, o que confere uma incoerência monstro à pretensa politização da escolha), acham lindo que um bando de gente de alto poder aquisitivo tenha sido tão grosseiro a ponto de mandar a presidente "tomar no cu" (justo eles, tão ciosos da moral e dos bons costumes) e torce insanamente para que tudo dê errado. Se a internet cair por 5 segundos no centro de imprensa de Cuiabá isso prova a incompetência do governo. Querem que o Brasil perca, por acreditar que isso ajudaria a derrotar Dilma em outubro. Bem, se são pessoas minimamente coerentes, espero que tenham torcido loucamente contra a maravilhosa seleção de 1982 para que o governo militar não pudesse capitalizar a vitória canarinho nas eleições de novembro daquele ano.
Nas hostes governistas é tudo ao contrário. Torcem mais do que nunca pela seleção, para que uma grande festa popular pelo título seja a coroação da "copa das copas". Para esses, tudo está lindo, os estádios são maravilhosos, críticas a qualquer aspecto da organização é coisa de coxinha.
A oposição à esquerda é mais complexa. Não está (em termos políticos) muito preocupada com o que acontece no campo. Mas desconfia barbaramente de pessoas que torçam muito pela seleção, pois acham que isso é coisa de governista acrítico ou de pachecos. Seu interesse principal na verdade é no aspecto extra-esportivo: querem mostrar o custo humano da copa e denunciar violência da PM contra os "protestos da população". Aí rola aquele velho patrulhamento que todos os esquerdistas conhecem bem: "como você pode se preocupar com a copa enquanto há tanta seca, enchentes, violência policial, desigualdade, etc.?".
Me desculpem os inúmeros amigos que adotam qualquer uma dessas posturas, mas acho que vocês estão completamente errados. Copa é a coisa mais legal do mundo, acontece só de 4 em 4 anos e desta vez é no Brasil. Será que um dia teremos outra oportunidade de desfrutar de um mundial como o deste ano? Acho pouco provável. Um monte de jogos legais acontecendo aqui dentro, com a presença de muitos dos maiores jogadores do mundo, estrangeiros de todos os tipos, cores e tamanhos circulando pelas nossas cidades, enfim, uma delícia total.
"Ah, mas isso é alienação". Não, não é. Copa não dura 365 dias por ano. Dura 1 mês a cada quatro anos. Me dou o direito de ser alienado nesses dias. Pois nunca vi ninguém que seja politizado 24 horas por dia. E seria mesmo um inferno. Ninguém aguentaria uma pessoa assim. Todos nós temos nossos deveres de cidadãos mas também temos o direito de, quando acharmos necessário, desanuviar a mente com algo, seja futebol, livros policiais, comédias românticas, viagem pra hotel fazenda, enfim, o que achar melhor. Me desculpem, mas não vou ficar o dia todo lutando contra o fim da desigualdade.
Então é o seguinte: vou torcer como sempre pelo Brasil, mas também, em ordem descrescente, por Uruguai (por amor ao país e à mística da Celeste), Russia (velhos hábitos comunistas), Portugal (a boa e velha ancestralidade) e México (que acho que deve ser um país muito legal). A partir do mês que vem volto a fazer minhas escolhas baseado em política. Agora não. Estou preocupadíssimo com a reeleição da Dilma, mas neste minuto exato o que realmente ocupa minha mente é se Luis Suarez ao menos entra no segundo tempo do jogo do Uruguai amanhã. Até a próxima.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
O que esperar da seleção?
Estou no time dos que acham o Brasil um dos principais candidatos ao título. Joga em casa, o time está definido tanto em termos de nomes como de forma de jogar, e há jogadores acima da média em todas as posições. A defesa é ótima e há Neymar. Há também pontos mais fracos, como a falta de criatividade no meio campo e as avenidas nas costas dos laterais. Mas problemas assim todo mundo tem. Não é o maior favorito, eu acho, mas está entre os principais, junto com Argentina, Alemanha e Espanha (Itália e Holanda um pouco atrás).
Uma coisa que me dá um certo medo é a falta de alternativas do time. Isso é uma característica histórica. A escola brasileira de técnicos tem essa linha: gosta de preparar o time dentro de um sistema de jogo, e o treina o quanto pode. Não se valoriza a preparação de alternativas. É só olhar o banco de reservas: o Brasil sempre vai pra copa com reservas que tem características parecidas com os titulares. Na hora de montar o elenco se pensa em ter jogadores que vão repor eventuais perdas, e não em nomes que possam mudar o jeito de jogar do time.
As duas últimas copas mostram isso. Em 2006 e 2010 o Brasil chegou muito forte na copa, mas naufragou pela falta de um plano B. Em 2006 vários dos melhores jogadores não corresponderam, e os reservas eram versões pioradas deles. Em 2010 a seleção começou claudicante, fez uma baita partida contra o Chile, mas contra a Holanda o barco afundou. O time fazia uma ótima partida mas de repente Julio Cesar falhou, o time se abateu, levou o segundo gol, Felipe Melo foi expulso. No banco estavam: Julio Batista, Nilmar e Grafite. Fazer o que?
Um contraponto está nos vizinhos platinos. Argentina e Uruguai chegam ao mundial com vários sistemas táticos e formas de jogo treinadas e testadas em jogos. As duas equipes tem suplentes capazes de mudar a característica das equipes. Nos dois casos acontece de voce olhar a escalação da equipe e não conseguir ter certeza de qual o sistema tático utilizado, já que há jogadores multifuncionais capazes de jogar em mais de uma posição. Postura que também tem seus problemas. Claro que se você treinar vários esquemas, vai treinar cada um menos do que o esquema da seleção que só treina um. E jogadores podem se confundir quando muda o sistema de jogo, por mais inteligente que sejam.
O Brasil tem um sistema de jogo bem definido, o 4-2-3-1. Os titulares estão definidos, os substitutos de cada um deles também. A forma de jogar nós conhecemos: marcação adiantada na tentativa de tomar a bola perto do gol e pegar a defesa mal posicionada. O problema é que esse sistema não funciona sempre. Tem time que se planta atrás, congestiona absurdamente o campo defensivo e não permite que o Brasil jogue dessa maneira. Foi assim no amistoso contra a Sérvia, por exemplo. E esse mesmo amistoso sugere fortemente que a seleção não sabe como resolver situações assim. Que devem acontecer: quantos times tentarão enfrentar o Brasil no pau a pau aqui dentro? Não é a toa que nossa atuação de gala foi contra a Espanha, time que sai para o jogo. Mas quantos outros jogarão assim?
Outro problema é que o caminho do Brasil depois da fase de grupos tende a ser dificilimo. A lógica é que sequencia seja algo como: Espanha ou Holanda nas oitavas; Inglaterra, Itália ou Uruguai nas quartas; França ou Alemanha na semifinal; Argentina, Espanha, Holanda, Itália, Inglaterra ou Uruguai na final. A seleção pode encarar quatro campeões mundiais na sequencia, um caminho bem mais complicado que o da Argentina, por exemplo. Assim, por mais que haja elementos para acreditar em título, devemos estar preparados para uma eventual eliminação até nas oitavas. Não será surpresa.
De toda forma, começo hoje minha nona copa do mundo. Nunca vi uma zebraça levar o título. Mas cansei de ver favoritos se estrepando e seleções que pareciam fora do páreo arrancarem surpreendentemente para o título. Tudo o que foi falado até agora (incluindo este post) meio que perde a validade quando a bola rolar. Copa sempre surpreende. É um dos elementos mais interessantes dessa que é a competição mais legal de todas as galáxias. E vai rolar em nosso país. Mal posso acreditar.
Uma coisa que me dá um certo medo é a falta de alternativas do time. Isso é uma característica histórica. A escola brasileira de técnicos tem essa linha: gosta de preparar o time dentro de um sistema de jogo, e o treina o quanto pode. Não se valoriza a preparação de alternativas. É só olhar o banco de reservas: o Brasil sempre vai pra copa com reservas que tem características parecidas com os titulares. Na hora de montar o elenco se pensa em ter jogadores que vão repor eventuais perdas, e não em nomes que possam mudar o jeito de jogar do time.
As duas últimas copas mostram isso. Em 2006 e 2010 o Brasil chegou muito forte na copa, mas naufragou pela falta de um plano B. Em 2006 vários dos melhores jogadores não corresponderam, e os reservas eram versões pioradas deles. Em 2010 a seleção começou claudicante, fez uma baita partida contra o Chile, mas contra a Holanda o barco afundou. O time fazia uma ótima partida mas de repente Julio Cesar falhou, o time se abateu, levou o segundo gol, Felipe Melo foi expulso. No banco estavam: Julio Batista, Nilmar e Grafite. Fazer o que?
Um contraponto está nos vizinhos platinos. Argentina e Uruguai chegam ao mundial com vários sistemas táticos e formas de jogo treinadas e testadas em jogos. As duas equipes tem suplentes capazes de mudar a característica das equipes. Nos dois casos acontece de voce olhar a escalação da equipe e não conseguir ter certeza de qual o sistema tático utilizado, já que há jogadores multifuncionais capazes de jogar em mais de uma posição. Postura que também tem seus problemas. Claro que se você treinar vários esquemas, vai treinar cada um menos do que o esquema da seleção que só treina um. E jogadores podem se confundir quando muda o sistema de jogo, por mais inteligente que sejam.
O Brasil tem um sistema de jogo bem definido, o 4-2-3-1. Os titulares estão definidos, os substitutos de cada um deles também. A forma de jogar nós conhecemos: marcação adiantada na tentativa de tomar a bola perto do gol e pegar a defesa mal posicionada. O problema é que esse sistema não funciona sempre. Tem time que se planta atrás, congestiona absurdamente o campo defensivo e não permite que o Brasil jogue dessa maneira. Foi assim no amistoso contra a Sérvia, por exemplo. E esse mesmo amistoso sugere fortemente que a seleção não sabe como resolver situações assim. Que devem acontecer: quantos times tentarão enfrentar o Brasil no pau a pau aqui dentro? Não é a toa que nossa atuação de gala foi contra a Espanha, time que sai para o jogo. Mas quantos outros jogarão assim?
Outro problema é que o caminho do Brasil depois da fase de grupos tende a ser dificilimo. A lógica é que sequencia seja algo como: Espanha ou Holanda nas oitavas; Inglaterra, Itália ou Uruguai nas quartas; França ou Alemanha na semifinal; Argentina, Espanha, Holanda, Itália, Inglaterra ou Uruguai na final. A seleção pode encarar quatro campeões mundiais na sequencia, um caminho bem mais complicado que o da Argentina, por exemplo. Assim, por mais que haja elementos para acreditar em título, devemos estar preparados para uma eventual eliminação até nas oitavas. Não será surpresa.
De toda forma, começo hoje minha nona copa do mundo. Nunca vi uma zebraça levar o título. Mas cansei de ver favoritos se estrepando e seleções que pareciam fora do páreo arrancarem surpreendentemente para o título. Tudo o que foi falado até agora (incluindo este post) meio que perde a validade quando a bola rolar. Copa sempre surpreende. É um dos elementos mais interessantes dessa que é a competição mais legal de todas as galáxias. E vai rolar em nosso país. Mal posso acreditar.
terça-feira, 10 de junho de 2014
Peguem leve com Neymar
Este blog teve uma encarnação anterior, no qual era discutido um amplo leque de temas: futebol, música, política, história, enfim, tudo o que é do interesse deste que vos escreve. Em sua versão atual o 171nalata acabou se dedicando mais à politica. Não sei se acertei ou errei ao fazer isso (podem opinar, inclusive), mas estamos quase na copa e não dá pra resistir a falar de futebol. Esse tema vai ser dominante nas próximas semanas por aqui. Começo falando sobre algo que me preocupa: Neymar.
Neymar tem 22 anos. Nasceu quando eu estava fazendo faculdade. E hoje é visto como o grande responsável por fazer o Brasil vencer a copa do mundo em casa, algo que é uma das nossas grandes frustrações. E se não conseguirmos o título, não há dúvidas: o culpado será ele. Mas vamos pensar no seguinte: o guri merece isso? Uma boa maneira de avaliar é ver o que os maiores gênios do futebol mundial faziam com essa idade.
Aos 22 anos Pelé já tinha ganho tudo o que um jogador de futebol pode sonhar. Mas convenhamos: Pelé não é parâmetro de comparação para nada. Vejamos outros. Comecemos com Garrincha: com essa idade o monstro das pernas tortas não tinha sequer um título estadual no currículo. Nem sonhava em jogar na seleção. Zico? Era campeão estadual, mas nunca havia jogado na seleção. Sócrates? Um desconhecido jogando no Botafogo de Ribeirão Preto. Ronaldinho Gaucho? Era um brilhante coadjuvante dos geniais Ronaldo e Rivaldo na conquista de 2002.
E os estrangeiros? Puskas aos 22 anos nem havia sido campeão húngaro. Di Stefano era coadjuvante de um time fenomenal do River Plate. Cruijff tinha títulos holandeses mas era um desconhecido fora de seu país. Maradona tinha um título argentino pelo Boca e naufragou completamente no mundial de 1982.Zidane jogava no Bordeaux, não tinha conquistado nenhum título e não era titular da seleção francesa. Platini jogava no pequeno Nancy e nem havia disputado copa do mundo.
Mas claro que a comparação implícita é sempre com Messi, o grande craque do futebol atual. Aos 22 anos Messi já era o melhor do mundo. O que não o impediu de voltar pra casa sem a copa de 2010. Pode-se argumentar que ele não foi o maior culpado da retumbante derrota contra a Alemanha. E não foi mesmo. O ponto é justamente esse: muitos fatores estão envolvidos em uma derrota. Muitas vezes o melhor jogador do time acaba carregando o peso de uma fracasso do qual ele não foi o maior culpado.
Neymar é uma tremenda promessa. Está ainda no começo da carreira e tem muito a realizar. Mas não tem nenhuma culpa do fato de o país depositar nele todas as suas esperanças. Ele deveria ser o que foi Ronaldinho Gaucho em 2002: um tremendo coadjuvante. Mas Kaká e Ronaldinho Gaucho entraram em declínio cedo demais e Robinho não chegou onde se esperava. As duas gerações que deveriam comandar a seleção brasileira neste mundial falharam. Neymar não tem nenhuma culpa disso. Se o Brasil perder a copa, que não se venha colocar a culpa nos cortes de cabelo dele, por favor.
Neymar tem 22 anos. Nasceu quando eu estava fazendo faculdade. E hoje é visto como o grande responsável por fazer o Brasil vencer a copa do mundo em casa, algo que é uma das nossas grandes frustrações. E se não conseguirmos o título, não há dúvidas: o culpado será ele. Mas vamos pensar no seguinte: o guri merece isso? Uma boa maneira de avaliar é ver o que os maiores gênios do futebol mundial faziam com essa idade.
Aos 22 anos Pelé já tinha ganho tudo o que um jogador de futebol pode sonhar. Mas convenhamos: Pelé não é parâmetro de comparação para nada. Vejamos outros. Comecemos com Garrincha: com essa idade o monstro das pernas tortas não tinha sequer um título estadual no currículo. Nem sonhava em jogar na seleção. Zico? Era campeão estadual, mas nunca havia jogado na seleção. Sócrates? Um desconhecido jogando no Botafogo de Ribeirão Preto. Ronaldinho Gaucho? Era um brilhante coadjuvante dos geniais Ronaldo e Rivaldo na conquista de 2002.
E os estrangeiros? Puskas aos 22 anos nem havia sido campeão húngaro. Di Stefano era coadjuvante de um time fenomenal do River Plate. Cruijff tinha títulos holandeses mas era um desconhecido fora de seu país. Maradona tinha um título argentino pelo Boca e naufragou completamente no mundial de 1982.Zidane jogava no Bordeaux, não tinha conquistado nenhum título e não era titular da seleção francesa. Platini jogava no pequeno Nancy e nem havia disputado copa do mundo.
Mas claro que a comparação implícita é sempre com Messi, o grande craque do futebol atual. Aos 22 anos Messi já era o melhor do mundo. O que não o impediu de voltar pra casa sem a copa de 2010. Pode-se argumentar que ele não foi o maior culpado da retumbante derrota contra a Alemanha. E não foi mesmo. O ponto é justamente esse: muitos fatores estão envolvidos em uma derrota. Muitas vezes o melhor jogador do time acaba carregando o peso de uma fracasso do qual ele não foi o maior culpado.
Neymar é uma tremenda promessa. Está ainda no começo da carreira e tem muito a realizar. Mas não tem nenhuma culpa do fato de o país depositar nele todas as suas esperanças. Ele deveria ser o que foi Ronaldinho Gaucho em 2002: um tremendo coadjuvante. Mas Kaká e Ronaldinho Gaucho entraram em declínio cedo demais e Robinho não chegou onde se esperava. As duas gerações que deveriam comandar a seleção brasileira neste mundial falharam. Neymar não tem nenhuma culpa disso. Se o Brasil perder a copa, que não se venha colocar a culpa nos cortes de cabelo dele, por favor.
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Xô, vira-lata!
Dia desses um ex-zagueiro da seleção norte-americana de futebol chegou ao Brasil para atuar como comentarista na copa. Tuitou que gostou do aeroporto do Galeão, que pareceu a ele melhor que a maioria dos congêneres de seu país. Um pouco depois fez graça dizendo que estava no Rio há algumas horas e não tinha tido nenhum órgão roubado, evidentemente rindo dos temores de muitos de seus compatriotas que acham que vivemos num mundo de caos e anarquia. Vi esses tuites, ri muito, desejei que o Galeão realmente esteja como ele diz (nas últimas vezes que estive lá achei horrível) e segui a vida.
Para minha surpresa, os tuites de Alexi Lalas viraram tema de debate. Defensores da copa e do governo federal usaram seus comentários sobre o Galeão como prova irrefutável de que o Brasil está uma maravilha e que o evento será ótimo. Oposicionistas e babacas que queriam ser parisienses leram correndo o outro tuíte e bradaram: OLHA O QUE O MUNDO PENSA DO BRASIL.Uma discussão idiota que eu não devia estranhar. Ela acontece aqui o tempo todo.
Não faz muito tempo o segundo grupo exultou com o que um jornalista dinamarquês postou, criticando o país e a copa. O primeiro compartilhou insanamente um e-mai de um suposto holandês que achou o Brasil uma maravilha. Oposicionistas compartilham nas redes sociais um hoax com conselhos que os governantes chineses teriam dado ao Brasil (logo a China, uma ditadura pretensamente socialista, ou seja, tudo o que eles dizem odiar mas endossam quando é de seu interesse), enquanto os governistas compartilham palavras de economistas estrangeiros dizendo que o Brasil é um modelo.
Tudo isso parece conflitante, mas não é. No fundo é a mesmíssima coisa. Tudo isso tem algo em comum: a submissão ao estrangeiro. A superhipervalorização da palavra de quem vive em países desenvolvidos. A premissa de que nada melhor para validar um argumento do que uma citação de alguém que vive num oásis de civilização, bem longe da selvageria tropical. É o que há meio século Nelson Rodrigues chamou de "complexo de vira-latas", sem tirar nem por.
Claro que um olhar de fora pode ser interessante. Os pernambucanos vivem se surpreendendo quando indico peculiaridades da vida local que na opinião deles são "normais". É mais do que razoável apreciar que um outsider desnaturalize algo que para nós é óbvio. Até aí maravilha. Mas na boa: precisar do endosso de gente que mal conhece nosso país para teses sobre quem somos é demais. Chega a ser ofensivo que alguém que nasceu e passou sua vida toda no Brasil ache que sua opinião sobre o país só se torna válida quando corroborada por alguém que mal sabe onde vivemos.
Não é uma questão de direita e esquerda, governo e oposição. É questão de reconhecer que somos mais que habilitados a ter opinião sobre o país em que nascemos e vivemos sem precisar da legitimação de quem mal nos conhece. Sejamos governistas, oposicionistas, direitistas, esquerdistas, o que quisermos. Mas por favor: nenhuma dessas posições necessita ser corroborada por estrangeiros. Quem conhece o país somos nós. Trabalhemos para que a pergunta "o que os estrangeiros vão pensar?" um dia seja tão arcaica como o código de hamurabi.
Para minha surpresa, os tuites de Alexi Lalas viraram tema de debate. Defensores da copa e do governo federal usaram seus comentários sobre o Galeão como prova irrefutável de que o Brasil está uma maravilha e que o evento será ótimo. Oposicionistas e babacas que queriam ser parisienses leram correndo o outro tuíte e bradaram: OLHA O QUE O MUNDO PENSA DO BRASIL.Uma discussão idiota que eu não devia estranhar. Ela acontece aqui o tempo todo.
Não faz muito tempo o segundo grupo exultou com o que um jornalista dinamarquês postou, criticando o país e a copa. O primeiro compartilhou insanamente um e-mai de um suposto holandês que achou o Brasil uma maravilha. Oposicionistas compartilham nas redes sociais um hoax com conselhos que os governantes chineses teriam dado ao Brasil (logo a China, uma ditadura pretensamente socialista, ou seja, tudo o que eles dizem odiar mas endossam quando é de seu interesse), enquanto os governistas compartilham palavras de economistas estrangeiros dizendo que o Brasil é um modelo.
Tudo isso parece conflitante, mas não é. No fundo é a mesmíssima coisa. Tudo isso tem algo em comum: a submissão ao estrangeiro. A superhipervalorização da palavra de quem vive em países desenvolvidos. A premissa de que nada melhor para validar um argumento do que uma citação de alguém que vive num oásis de civilização, bem longe da selvageria tropical. É o que há meio século Nelson Rodrigues chamou de "complexo de vira-latas", sem tirar nem por.
Claro que um olhar de fora pode ser interessante. Os pernambucanos vivem se surpreendendo quando indico peculiaridades da vida local que na opinião deles são "normais". É mais do que razoável apreciar que um outsider desnaturalize algo que para nós é óbvio. Até aí maravilha. Mas na boa: precisar do endosso de gente que mal conhece nosso país para teses sobre quem somos é demais. Chega a ser ofensivo que alguém que nasceu e passou sua vida toda no Brasil ache que sua opinião sobre o país só se torna válida quando corroborada por alguém que mal sabe onde vivemos.
Não é uma questão de direita e esquerda, governo e oposição. É questão de reconhecer que somos mais que habilitados a ter opinião sobre o país em que nascemos e vivemos sem precisar da legitimação de quem mal nos conhece. Sejamos governistas, oposicionistas, direitistas, esquerdistas, o que quisermos. Mas por favor: nenhuma dessas posições necessita ser corroborada por estrangeiros. Quem conhece o país somos nós. Trabalhemos para que a pergunta "o que os estrangeiros vão pensar?" um dia seja tão arcaica como o código de hamurabi.
sábado, 31 de maio de 2014
Sobre o Estelita (ou: porque não se render ao ultrapragmatismo do capital)
(Primeiro um esclarecimento para os leitores que não conhecem Recife. O Cais José Estelita se situa na parte histórica da cidade. Como infelizmente é comum, a área está razoavelmente degradada, ainda que em seus arredores haja uma significativa área comercial frequentada por muita gente. Pois para resolver o problema da degradação da área, a prefeitura conta com a "ajuda" de um "consórcio novo recife", formado pelas maiores construtoras da região. Que quer derrubar os antigos armazens e construir em seu lugar um catatau de torres de luxo, residenciais e comerciais - é o monstrengo da foto acima).
Me surpreendo ao ver tanta gente boa e esclarecida bradando contra o movimento "ocupe estelita", que visa impedir a transformação de uma área histórica da cidade em uma zona particular para o conforto de pessoas com dinheiro. Essas pessoas acham que a solução para o fato de uma região tão importante e bem localizada ter sido deixada abandonada pelo poder público é destruí-la e entregá-la ao capital privado. Simples assim. Dizem "aquilo está horroroso mesmo, melhor deixar as construtoras reformarem, vai ficar lindo e vamos poder andar lá em segurança".
Para essas pessoas, quem é contra o projeto é um bando de românticos desocupados que nunca se preocupou com isso e agora resolveu bancar o ativista. O que é muita desinformação: o movimento existe há anos. Essas pessoas acham que nasceu agora porque elas é que não estavam acompanhando o processo. E a coisa de chamar os militantes de "desocupados que agora querem bancar os ativistas" é um troço tão reaça que eu nem sei como responder.
Na verdade me parece que essas pessoas não estão captando o que há de mais importante. O que está acontecendo é uma tentativa de gentrificar aquela região. Algo que já aconteceu em muitas cidades do mundo. Pega-se uma parte antiga, histórica e abandonada da cidade, se entrega na mão da iniciativa privada, que destrói tudo e constrói lindos prédios. Num primeiro momento a sensação é ótima: prédios novinhos e uma área segura onde todos podem caminhar a vontade. Quem é contra é visto como tolo e romântico. Aí quando você se dá conta, uma área histórica e bem localizada foi privatizada, entregue de graça para desfrute exclusivo dos que tem mais dinheiro. Essa é a cidade que queremos?
Note: ninguém quer que as coisas fiquem como estão. A questão é que essa não é a única alternativa. Ao invés de entregar aquela região para as construtoras, a prefeitura poderia perfeitamente iniciar programas de revitalização da área. O que não é caro, não dispensa a iniciativa privada e nem seria tão difícil, já que é uma parte da cidade com intensa vida comercial durante o dia. Há inúmeras experiências bem sucedidas nesse sentido em todo o planeta. Basta ter vontade de fazer. Mas claro que é mais fácil entregar o problema para as construtoras. Parece um jogo em que todos ganham: o capital engorda, os ricos ganham uma área super bem localizada para viver e trabalhar e os políticos envolvidos ganham doações milionárias para suas campanhas. "Só" quem perde é quem não tem dinheiro para morar lá. Tipo uns 90% da cidade. Para não falar no crime contra o patrimônio histórico, claro.
Logo se vê que não é uma questão do destino dos armazéns. É muito mais que isso. É um momento crucial para decidirmos em que cidade queremos viver. Se a lógica do "está ruim? entrega para os ricos que fica bonito" prevalecer, daqui a pouco arrasaremos toda a parte central da cidade e a transformaremos em parque privado de diversões para a elite. Podemos também aproveitar e aplicar a mesma lógica à educação, saúde, transportes, etc. Pega escolas e hospitais públicos, entrega na mão dos grandes empresários e aposto que vão ficar lindos. Só uma minoria vai poder usar, mas pelo jeito esse pessoal não se preocupa com isso.
Vale ainda uma lembrança. Anos atrás duas torres enormes foram construídas na mesma região, justificada por argumentos razoavelmente semelhantes a esses. A cidade continuou exatamente igual, e nada mudou na vida de ninguém, exceto os moradores do "empreendimento". Para o resto da população a cidade ficou exatamente igual, só que enfeiadíssima por dois monstrengos horrorosos. Não há motivo para achar que agora será diferente. A cidade será a mesma, exceto para os que sempre se dão bem: elite, políticos e capital.
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