Uma vez um amigo moçambicano me fez uma observaçao que deu o que pensar. Segundo ele (que vive ha muitos anos por aqui) nos brasileiros somos megalomaniacos. Achamos que tudo aqui é o melhor ou o pior do mundo. E que achamos que ha infinitas coisas, boas e ruins, que so existem aqui. Uma especie de sindrome da particularidade: em nossa cabeça, somos um lugar unico, e nada do que acontece aqui existe em outros lugares, para o bem e para o mal. So aqui ha corrupçao, problemas na educaçao, saude e transporte, nossa elite é a mais perversa, nossos impostos sao os mais altos, nosso carnaval é insuperavel, nossas mulheres sao as mais lindas, jogamos futebol como ninguém, e por ai vai.
Tudo isso me ocorria semana passada, quando estava na fila da Policia Federal para tomar meu voo para Milao. A fila era grande, as pessoas se indignavam e berravam "terceiro mundo é foda, so aqui mesmo que acontece isso, que pais de merda". Sim, havia muito de viralatismo tao presente nas nossas classes média e alta ali. Passei varias vezes pelo Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, sempre pegando filas muito maiores e enfrentando uma bagunça absurda. Logo na chegada a Milao peguei uma fila gigante para tomar minha conexao para Istambul. Mas la fora brasileiro nao reclama: tira selfie todo feliz para postar no instagram "eu na Europa", e coisas assim.
Em março estive em Atenas. Passei quatro dias vendo carros parados em cima da calçada e outros cenarios que achamos que so existem no Brasil. Na hora de ir embora paguei o hotel e recebi uma nota fiscal de 0,50 euros, prova evidente de sonegaçao de impostos. Em Istambul roubar na hora de dar o troco é uma verdadeira instituiçao, todo mundo faz. Aqui na Italia nao ha cobrador no transporte publico. Teoricamente voce paga o bilhete numa maquina e entra. Mas a maioria esmagadora nao paga nada, simplesmente entra no metro, onibus ou bonde e viaja de graça. Hoje estava em um bonde, dois fiscais entraram para ver os bilhetes dos passageiros e era tanta gente trapaceando que eles desceram dois pontos depois, apos darem multas em profusao.
Esta semana meu computador faleceu de velhice. E eu tinha de comprar outro, pois um dos motivos para estar em Turim é ter paz para escrever um texto importante longe das chateaçoes da vida diaria. Falei com um amigo profissional da area, que fez telefonemas e me levou para comprar um novo. Nao em uma loja. Com um cara de uns 60 anos que nos encontrou num suburbio, abriu o porta-malas de seu carro e mostrou as opçoes. Meu amigo testou todos e me indicou um. 350 euros em um computador com valor de mercado de 1.500. Paguei em dinheiro sem nota fiscal nem garantia.
Nao estou dizendo que a Europa é igual ao Brasil, muito menos embarcando naquela auto condescendencia que adoramos ter. O velho continente tem inumeras vantagens que parecem um verdadeiro sonho para nos. Educaçao, saude e transporte publico excelentes (ainda que os métodos educacionais sejam francamente ultrapassados, inclusive nas universidades), a vida nas cidades é muito melhor que nas nossas, a desigualdade social é muitissimo menor e por ai vai. Na média a vida aqui é bem melhor que no Brasil, e so um imbecil discordaria disso.
O que nao quer dizer que tenhamos de seguir achando que tudo no Brasil é pior que aqui. Nem falo de carnaval, samba, mulheres e musica. A Italia, onde estou agora, tem uma politica absurdamente corrupta, e possui muitos habitantes que acham que Mussolini era um otimo governante. Insultos racistas sao muito comuns. Ontem ouvi alguns das pessoas que estavam atras de mim na fila do supermercado. Se referiam a mim em termos que nem tenho coragem de repetir aqui. Acharam que eu era do leste europeu, que nao entendia italiano e disseram coisas que nunca vou esquecer.
Mais que isso. Em termos economicos, uma larga parte da Europa tem crescido bem menos que o Brasil. Aqui na Italia é dificil encontrar alguem de 25 ou 30 anos com emprego estavel. A chamada "geraçao Berlusconi" pagou o pato das reformas feitas pelo governo frente à crise que assola o pais. As coisas seguem muito bem para a gigantesca parcela da populaçao que tem mais de 40 anos e chegou à maturidade nos tempos do Estado de Bem Estar Social. Para quem chegou depois, as coisas nao vao nada bem. Ouço falarem do Brasil com admiraçao. Nao pelas mulatas, mas pela economia e pelo crescimento mesmo (tambem acham que vivemos num clima de 50 graus e vivemos no meio da floresta, mas ai é outra conversa)
O Brasil precisa melhorar muito. Mas muito mesmo. So que ja deu pra essa conversa vira lata de sermos os piores do universo. Nunca fomos, e continuamos nao sendo. Mesmo as coisas ruins que temos nem sempre sao especificidades nossas. Precisamos entender que andamos muito tempo no caminho errado, e em varias coisas continuamos assim. Mas melhoramos em muita coisa nas ultimas decadas. E vale compreender tambem que nossos modelos de perfeiçao nem sempre sao essa maravilha toda. Em suma, que melhoremos, mas tendo o entendimento que o viralatismo nao vai nos levar a lugar nenhum.
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