segunda-feira, 16 de junho de 2014

A nova estratégia dos favorecidos: o roubo da fala dos prejudicados

Eu juro que não queria mais falar sobre política. Nenhum tipo de política. O ambiente está tão contaminado, tão saturado, tão cheio de gritaria e tão vazio de argumentos minimamente minimamente lógicos, que racionalmente eu acho que deveria me abster de falar disso. Não porque eu me sinta superior, mas por achar que ao menos eu tento sustentar meus argumentos em termos racionais, algo muito trivial mas que está absolutamente em falta no debate atual.

Mas hoje eu tive o desprazer de presenciar mais uma histeria da direita brasileira. A novidade é: eles chegaram onde chegaram apenas pelo seu esforço e mérito pessoal, carregam o país nas costas, e são vítimas de racismo. Isso porque Lula atribuiu as ofensas absolutamente inaceitáveis à presidente Dilma à "elite branca". A partir daí deram vazão ao seu eterno coitadismo. Aquele velho argumento que conhecemos, só que mais explícito que nunca: a pobre elite é o que há de melhor no país, mas tem o mundo contra ela, das massas rudes e incultas a um governo que tem a inacreditável insolência de cobrar impostos.

É tanta idiotice reunida que renderia um livro ao menos para refutá-la. Como este é apenas um blog (e eu francamente tenho mais o que fazer), vou me ater a um único ponto, que me parece o mais importante de todos. Não o preconceito de classe, a alergia a pobres e a qualquer mudança que beneficie quem mais precisa de ajuda expressos nessa visão. Isso a gente já está cansado de conhecer. Fico com o seguinte ponto: essa gente está tentando, com todas as forças, desqualificar a luta de quem quer um mundo menos machista, sexista e homofóbico. Fazem isso através da vulgarização.

Pois há um lado muito óbvio nesse discurso anti-mudança. O discurso "querem virar o mundo de ponta cabeça". Lutar contra o racismo é querer oprimir os brancos. Brigar pelo fim da homofobia é ser partidário de uma ditadura gay. Ser contra a opressão das mulheres é sonhar com um mundo de mulheres raivosas, de pernas cabeludas que odeiam homens comandando o mundo. Isso é muito velho. Como historiador, me deparo com discursos exatamente nessa linha há 100 anos. É o eterno ódio à mudança de todos os favorecidos de todas as épocas. Conhecemos bem isso aí.

Mas tem um outro lado, menos óbvio. É a tentativa de vulgarizar essas lutas, agindo como se a discriminação fosse uma via de mão dupla. No caso específico, isso aparece assim: Lula ter falado em "elite branca" é a MESMÍSSIMA coisa que gerações e gerações de negros enfrentarem muito mais barreiras que os brancos para conseguirem se estabelecer. Um comentário como esse é colocado no mesmo patamar de 400 anos de escravidão e 100 anos de racismo. Aí fica aquela coisa: "existe preconceito dos brancos, mas também existe dos negros, é tudo a mesma coisa". Ou, numa formulação ainda pior: "racistas mesmo são os negros. pobres de nós, brancos oprimidos" (o mesmo vale para lutas como as das mulheres e dos homossexuais).

O grau de cretinice nesse tipo de argumentação é algo que eu não tenho como medir. Quem me conhece pessoalmente sabe que sou homem, branco, heterossexual e de classe média. Estou do lado favorecido em todas essas questões. Então posso falar muito a vontade o seguinte: gente como eu não tem o menor, o mais ínfimo direito de se sentir oprimido em relação às questões citadas. Nunca. Em hipótese alguma.

Isso não quer dizer que eu nunca tenha me sentido desconfortável. Me senti sim. Mas vamos pensar na seguinte hipótese. Em algum ambiente qualquer eu me sinto estereotipado por ser branco. Vou achar chato. Mas não me colocarei no papel de oprimido. Por um motivo absolutamente óbvio: basta eu sair daquele ambiente e pronto. Vivo num mundo que favorece os brancos. Se há espaços em que ser branco é um handicap, são espaços absolutamente pontuais. O planeta é para os brancos. Podemos eventualmente nos sentir estereotipados ou até discriminados. Mas oprimidos, nunca.

Outra coisa, totalmente diferente, é ser um não branco. Se um negro (ou indígena, etc.) se sente discriminado em alguma situação, ele sabe perfeitamente que não adianta sair dali. Se fizer isso, ele irá para qualquer outro lugar, e nele sofrerá o mesmo tipo de opressão. Um episódio de discriminação para eles não é, como é para mim, apenas um episódio. É algo experimentado cotidianamente desde o dia que nascem até o dia em que morrem. Cada episódio é uma lembrança de que se vive num mundo que é programado para te prejudicar.

Igualar um momento de desconforto a uma vida de descriminação não é apenas uma idiotice. Também é uma cretinice inominável. É algo que vulgariza barbaramente o sofrimento e as lutas alheias. Vindo de pessoas que geralmente nunca tiveram dificuldades maiores que pagar a prestação do seu apartamento num bairro de classe média. Julgando e reduzindo a importância que as desigualdades têm na vida da maioria esmagadora da nossa população.

Não subestime esse tipo de discurso. Ele é sim, fruto de uma brutal incapacidade de ver o mundo de um ponto de vista diferente do seu próprio. É isso também. São pessoas que algum dia não entenderam alguma gíria num ambiente de maioria gay e acham que isso é exatamente a mesma coisa que ser rejeitado pela família, ser alvo de preconceito todos os dias e sofrer o permanente risco de violência. Essas pessoas eventualmente podem ser apenas isso: mimadas e incapazes de entender o outro. Mas o fato é que estão reproduzindo discursos que buscam esvaziar completamente de sentido algumas das lutas mais importantes do nosso tempo contra a desigualdade.

Um comentário:

  1. Dia desses, deixei de publicar palavras como as suas: "Quem me conhece pessoalmente sabe que sou homem, branco, heterossexual e de classe média. Estou do lado favorecido em todas essas questões. Então posso falar muito a vontade o seguinte: gente como eu não tem o menor, o mais ínfimo direito de se sentir oprimido em relação às questões citadas. Nunca. Em hipótese alguma."

    Mas eram referentes à essas reclamações que os conservadores vêm fazendo contra o governo, que agora finalmente se volta para os mais pobres, o que implica em alguém ter que pagar essa conta.

    Sim, sempre tivemos tudo, somos classe media, brancos, temos os melhores empregos, e os mais oprimidos sempre pagaram um preço alto.

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