segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Homofobia, racismo, machismo e privilégios

Fiquei estarrecido com as declarações de Levy Fidelix sobre o medo de uma invasão militar do comunismo bolivariano ao Brasil e, mais ainda (muito mais) com o que ele falou sobre os homossexuais. Sim, é um anão irrelevante, um oportunista que só está na política para enriquecer administrando verbas que seu partido recebe. Mas o simples fato de qualquer pessoa pensar coisas assim é chocante. E, como a humanidade nunca acha o fundo do poço, ainda tivemos de ver pessoas apoiando o que ele disse. Alunos meus, de história, jovens de vinte e poucos anos, inclusive (felizmente uma minoria total, mas ainda assim...)

Fiquei pensando como a direita brasileira pôde ter chegado tão fundo nessa lama toda. Ser de direita não tem qualquer implicação nesse sentido, ao menos teoricamente. A ala histórica do PSDB jamais diria coisas assim. Acho impossível imaginar gente como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas ou Franco Montoro dizendo barbaridades do tipo. Na verdade não me lembro de ninguém na cúpula do partido endossando esse tipo de pauta. Mas entre candidatos mais jovens isso já é verificável. E em outros segmentos da direita então, a coisa campeia livremente. Me pergunto: por que? Como chegamos nisso?

Vejo três motivos. Dois dos quais me parecem óbvios. O primeiro: vivemos num país em que grande parte da população vê o mundo dessa maneira. Ser gay é doença, qualquer pessoa que usa maconha é vagabundo e passa o dia drogado sem trabalhar nem ligar para a família, aborto é assassinato (mas se a filha engravidar de "vagabundo" são outros quinhentos), cotas são algo desnecessário, bastando melhorar a educação para resolver o problema, ao invés de inventar esse instrumento que nós levará a uma guerra racial, etc. Para uma oposição que nada tem a propor além de um estado mínimo (algo que a população não quer ouvir nem falar), é um bom gancho para tentar conquistar corações e mentes numa eleição em que parecem destinados à derrota.

Outro componente óbvio é o fator religioso. Nesse caso específico principalmente os evangélicos. Não que todos os evangélicos pensem essas coisas (nem sei se a maioria pensa) ou que outras religiões tenham necessariamente pensamentos mais progressistas. A questão é que os evangélicos tem duas armas muito poderosas, que os diferenciam de outras religiões: uma bancada muito forte que todos os candidatos temem desagradar e uma multidão que obedece seus pastores em todos os campos. Em suma, certos setores protestantes são mais bem organizados politicamente do que qualquer outro grupo religioso, o que os ajuda a fazer valer sua agenda medieval.

O terceiro elemento é especificamente político. Independente da opinião que se tenha sobre o atual governo, ele é aprovado pela maioria da população. O que deixou a oposição à direita absolutamente perdida. Só concordam em uma coisa: o estado mínimo, e não podem usar isso, já que o eleitorado não quer nem ouvir falar do assunto. Basta notar a absoluta miséria argumentativa das últimas duas candidaturas presidenciais tucanas. Não podem dizer seu real programa, já que isso os inviabilizaria eleitoralmente. Se oferecerem um Estado ativo na diminuição de diferenças, soaria forçado e se igualariam às candidaturas governistas. Não sobra muito o que fazer.

Para os setores mais lunáticos da direita, a solução apareceu na forma de lamentação do fardo do pobre homem branco hetero de classe média oprimido por um governo que rouba tudo deles, os impede de viver, falar e pensar como querem e dá o país de mão beijada para negros que usam as cotas para roubar vagas na universidade dos filhos deles, feministas raivosas que odeiam homens, homossexuais que dominam o mundo mas só sabem reclamar e estudantes da área de humanas que torram nossos impostos fumando maconha o dia todo na universidade. Um argumento completamente delirante e esdrúxulo, sem qualquer âncora no mundo real, mas que serviu como norte para muitos descontentes não só com o atual governo, mas com o fato de termos superado a idade média.

Nem todo o oposicionismo aderiu a essa loucura. Há os que agem como se o PT tivesse inventado a corrupção. Há os que ignoram absolutamente todos os números e pesquisas e insistem que o Brasil só piorou nesses 12 anos. Mas muitos entraram nessa linha de "crítica ao marxismo cultural". Pois esse é um ponto importante. Eles olham coisas como cotas, descriminalização das drogas e do aborto, que são temas discutidos ou já adotados nos países capitalistas desenvolvidos, e concluem, da forma mais esdrúxula possível, que essas coisas são passos para a implantação do comunismo no Brasil.

Daí o clima de terrorismo. Descriminaliza a maconha? Todas as pessoas vão ficar chapadas 24 horas por dia. Faz o mesmo com o aborto? Todas as pessoas serão obrigadas a abortar e a humanidade vai se extinguir. Faz lei contra a homofobia? Seremos obrigados a virar gays. Cotas nas universidades? Negros vão dominar esse país. Sim, pois essas pessoas pensam a partir do ponto de vista de que toda sociedade tem de ter privilegiados. Então quando os privilegios deles acabam, supõem automaticamente que o outro grupo passou a ser o privilegiado. Não conseguem vagamente imaginar um mundo sem privilégios. Para eles isso não faz sentido. A questão é apenas quem vai ser o privilegiado. E tem de ser eles, claro.

E eu digo isso porque me parece ser um ponto que muitos que estão do nosso lado genuinamente não compreenderam. Não conseguem entender como tanta gente se sente incomodada com o que outras pessoas fazem. Não percebem que nós estamos lutando por direitos iguais, mas essas pessoas entendem de forma completamente distinta. Nessas lutas a única coisa que eles conseguem enxergar é a perda de privilégios. Na cabeça deles um mundo sem privilégios é algo que sequer pode ser imaginado. Então se sentem atingidos quando subalternos conquistam direitos. Pois mesmo que isso não mexa em nada com a vida deles, sentem como se tivessem perdido algo.

Aproveitando uma expressão muito usada nas redes sociais recentemente: não fique aí achando que o problema dessas pessoas é quererem legislar sobre o cu alheio. Isso é muita ingenuidade. A questão real está bem mais embaixo: elas estão falando sobre distinção e privilégio. O cu é apenas um detalhe.

Um comentário:

  1. A direita brasileira não tem projeto consistente, mas infelizmente as ideias segregadoras reverberam na maior parte da sociedade.
    Discordo de você com relação ao alcance do discurso do Fidelix. Numa universidade, e ainda mais no curso de história, onde por sinal sou graduado, é natural que esse pensamento seja minoria.
    Infelizmente a maioria da população concorda com ele, mas não tem coragem de falar daquele modo estúpido e agressivo. Trabalho num instituto federal de educação, e encontrei muitos idiotas que defenderam o Levy com aquele argumento falacioso de que ele tava apenas emitindo opinião, e os gays querem muitos direitos (tenho náuseas quando ouço isso). E o pior é que muita gente pobre (ou seja, desassistidos de muitos direitos elementares) pensa dessa forma, alimentadas por fatores como mídia, religião e o conservadorismo ao seu redor.
    Cheguei a ouvir o absurdo de um rapaz que diz temer pelo fim da tal da família tradicional, dizendo que isso é "o certo", mas ao mesmo tempo ele mesmo diz que seu casamento é uma merda, que a única coisa que presta é o filho, e que trai sua esposa o tempo todo. Quanta contradição! Cadê a família perfeita?
    No fim das contas, a mola propulsora é a manutenção dos privilégios, como você bem argumentou, e as questões morais acabam dando força a esse tipo de segregação, que infelizmente tem muito eco.
    Ainda bem que hoje em dia os grupos oprimidos estão indo para o embate (errando na forma em muitas situações), e isso revolta os conservadores, que sentem saudade dos tempos que podiam ser preconceituosos sem o menor problema.
    A briga pelos direitos é difícil, mas deve intensificar e se qualificar.

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