domingo, 14 de dezembro de 2014

O estupro nosso de cada dia

Seria muito fácil pra mim escrever um post indignado contra a babaquice conservadora personificada em Jair Bolsonaro enfatizando sua defesa da ditadura. Minha vida tem tudo a ver com isso. Meus pais e tios sofreram com ela. O post sairia de forma automática, sem que eu precisasse sequer pensar nele. Mas poderia soar como legislação em causa própria. Vou abordar a questão por outro ângulo então. Um ângulo que mexe com questões que eu nunca vivi, e em relação às quais eu estou do lado "vencedor".

Neste miserável ano de 2014 ouvi duas amigas de faculdade contando que foram estupradas há muito tempo. Uma foi encurralada no caminho de casa. Foi estuprada enquanto ouvia os moradores dos prédios vizinhos gritando "aeeeeeee". A outra foi vítima de estupro DUAS vezes. Uma, quando era uma garotinha pré adolescente. Outra, já na pós graduação, tendo como algoz um dos mais famosos intelectuais da nossa área. Nenhuma das duas teve coragem de denunciar o agressor. A primeira estava de minissaia e achou que seria considerada culpada por usar uma roupa assim num lugar vazio. A outra por, mesmo tendo ficado com ossos quebrados na cama por meses, temer ser vista como aproveitadora tentando tirar uma casquinha da fama de um sujeito importante na nossa área.

Elas estão muito bem hoje. Uma é professora de uma grande universidade pública paulista, outra ocupa posto semelhante no Rio de Janeiro. Não faço ideia do que elas sentem a respeito. Só posso imaginar o que deve ter sido a dor de uma agressão desse tipo somada à impotência, e a posterior tristeza de silenciar sobre o assunto por concluir que o agressor não seria punido. Quanto a isso não tenho nada a dizer.

Mas este post é exatamente sobre isso. Sou homem branco de classe média e heterossexual. Há 42 anos ando pelas ruas sem o menor medo de ser estuprado. Nunca precisei me preocupar com portas giratórias de banco se fechando. Sempre pude me vestir terrivelmente mal, com roupas horríveis e velhas sem medo de ser revistado ou ser considerado suspeito. Minha orientação sexual jamais me fez ter motivos para me preocupar. Andei de mãos dadas com minhas namoradas sempre que quis.

E é nesse contexto que aparece o pesadelo dos pesadelos. Um tipo que defende o aumento da opressão aos gays e fala de estupro como se fosse algo que só acontece com quem merece. Em suma, defende que a opressão aos subalternos da nossa sociedade é muito pouco, e precisa aumentar muito ainda. O que não teria importância, se não fosse o fato de: 1) esse lixo tenha sido reeleito deputado mais uma vez com uma votação consagradora graças à multidão que concorda com ele; 2) pior de tudo, a postura dele ser vista por essas pessoas como sintoma de coragem e honestidade.

Ou seja, para uma fatia nada desprezível dos brasileiros defender a opressão aos que já são oprimidos é um gesto de coragem. Vociferar contra quem já sofre todo santo dia é ser honesto. Ameaçar uma parlamentar eleita pelo povo de seu estado é "dizer a verdade". Sim, meus amigos, essa é a terrível verdade: esse é o país em que vivemos.

Este post não vai ter um fim. Pois vou ali chorar um montão. Pensar nisso tudo é deprimente. Ate mais.

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