Antes de responder à pergunta proposta no título, vou dizer algumas coisas para as quais não servimos. Não damos lições para o futuro. O nome disso é cartomante. Não damos exemplos para a juventude se espelhar. O nome disso é família. Não somos juízes do passado. O nome disso é burro, idiota, ignorante ou débil mental. Pode escolher qualquer um que está valendo. Quem diz essas coisas não sou eu. São historiadores muito melhores que eu jamais serei, e que qualquer aspirante a historiador lê no primeiro semestre de graduação.
Uma das nossas principais funções é saber que as coisas não acontecem no vazio. Todas elas têm seu contexto. Por isso, e não por sermos comunistas é que abominamos o que uma certa direita anda fazendo com nossa profissão. Pegam coisas que aconteceram décadas atrás e as analisam como se elas tivessem acontecido hoje. Aí acham que Hitler era socialista, Dilma terrorista sem nunca ter participado de qualquer ação armada (mas por algum motivo Aloysio Nunes Ferreira, braço direito de Marighella e participante de várias ações não era), só o comunismo matou, enquanto o capitalismo sempre foi gente boa, e por aí vai.
Uma coisa muito difícil é saber até onde vão a burrice e a ignorância e onde começa a má fé. As duas coisas estão tão mescladas nesse combo de imbecilidade que é difícil discernir. E honestamente eu nem tenho interesse em fazer isso. Só estava pensando aqui em alguns contra-exemplos relacionados aos liberais. Sim, pois quem fala isso tudo aí se define como liberal, defensor da liberdade e da ausência do Estado na economia. Vamos então olhar para o passado liberal com os mesmos olhos deles.
Ao longo de todo o século XIX os liberais não queriam ouvir falar em povo votando. Fizeram tudo o que puderam para evitar o voto universal. Nos EUA e no Brasil defenderam a escravidão. Foram os esteios ideológicos da Primeira República, dominada por coronéis e voto de cabresto, em que o Estado usava todos os recursos que tinha para garantir artificialmente o preço do café. Apoiaram o golpe de 64 assim como inúmeras outras ditaduras latino americanas. Sabe quem era ministro do governo Castello Branco? ele mesmo, Roberto Campos, ídolo dos economistas liberais brasileiros.
Não julgo o liberalismo enquanto visão de mundo por nada disso. Primeiro pelo simples fato de saber que conceitos se materializam na ação de pessoas, necessariamente imperfeitas. Mais importante, porque sei que visões de mundo significam coisas diferentes ao longo do tempo. Não acho que o PSDB defende a escravidão porque sei que ser liberal no Brasil do século XIX não é a mesma coisa que ser liberal no Brasil de hoje. E finalmente, porque estudei. E não foi pouco. Caminho para um quarto de século dedicado à história. Não sou simplesmente um canalha ignorante que pensa que a história é apenas um meio para agredir seus adversários políticos. A história é minha vida.
Mas tem algo mais que eu aprendi com a história. E logo no primeiro semestre de graduação. Ela não é o estudo do passado, mas da mudança. Pois as coisas sempre mudam. Pior pior que as coisas pareçam, por mais negro que seja o cenário, por mais que pareçamos estar prestes a ser engolidos pela ignorância, a burrice e o mau caratismo, tudo é temporário. O sol nasce todo dia para todos. Fiquem atentos e fortes e se aguentem aí.
sábado, 26 de setembro de 2015
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
Como viciar o debate sobre cidadania e direitos humanos
Quem enxerga um palmo à frente do nariz está plenamente ciente que essa brigalhada governo x oposição não é a questão central do momento. O que vemos é um amplo, e nem sempre explícito, debate sobre direitos humanos, cidadania e definição do que é uma sociedade democrática. Basta ver como inúmeros temas que estão discutindo tem essa questão como pano de fundo: cotas, violencia policial, direitos civis aos homossexuais, respeito á diversidade religiosa, violência de gênero, etc. No fundo todos esses debates são o mesmo.
Me parece claro que a história joga a favor dos defensores dos direitos humanos. Seus detratores têm em mente um mundo que já acabou se é que um dia existiu. E hoje todos podem falar o que querem. Não dá pra ficar tomando atitudes autoritárias e imaginar que ninguém vai perceber ou se manifestar. O mundo mudou, ainda que muitos não tenham percebido. Sei que é difícil acreditar no que estou dizendo quando se olha à volta e vê essa montoeira de lixo que nos cerca. Mas já disse antes e repito: essas pessoas estão histéricas justamente por perceber que a derrota é inevitável. Tentam ganhar no grito como último recurso.
Uma das estratégias desesperadas é criar um fantasma, utilizando um recurso conhecido no estudo da lógica como "falácia do espantalho". Um recurso argumentativo muito tosco, mas que engana os mais desatentos ou burros. No caso consiste em criar uma caricatura: o bobo alegre que acha que "bandido" é tudo gente boa (mas como são hipócritas, dizem que acham isso só que não levam um único bandido pra morar com eles, veja que absurdo), que não conhece a realidade, que quer destruir a família brasileira e sacrifica 800 animais por dia em terreiros de candomblé.
Tenho quase 43 anos. Nasci e cresci numa família esquerdista. Me formei politicamente numa cidade metalúrgica com um forte sindicato de esquerda e onde o eleitorado brizolista era franca maioria. Daqui a pouco farei um quarto de século vivendo o cotidiano dos cursos de história. Em suma, conheci trilhões de pessoas que defendem direitos humanos e cidadania para todos. Nunca ouvi uma única vez alguém defendendo ideias como as que o espantalho reaça defende. Nunca ouvi político ou intelectual de esquerda dizendo isso. Pode ser que haja quem pense essas coisas de verdade (se há quem vote no Bolsonaro, tudo pode acontecer) mas impossível dizer que são representativos do que pensamos, tanto em termos quantitativos como qualitativos.
Mas não interessa: diariamente essa caricatura aparece, podendo ou não ser associada à esquerda ou, imaginem, ao comunismo (não precisa ser de esquerda pra defender nada disso, conheço dezenas de eleitores do Aécio que pensam exatamente como eu nessas questões). Às vezes me pergunto como alguém pode ter ideias tão toscas e sem sentido ou vínculo com a realidade. Acredito que muitos são burros mesmo. Existem pessoas burras, não tem jeito. Há muitos que são apenas ignorantes. Nem conhecem gente de esquerda mas imaginam que somos como aparecemos na Veja. Essas coisas existem. Mas não é só isso.
Mas tem o tipo cínico também. Aquela pessoa que sabe perfeitamente que adora o governo carioca, pois prefere mil vezes ir a uma praia só com gente branca e dourada do que em uma com negros e pobres. A pessoa que acha o Malafaia meio desagradável mas se incomoda muito mais com um casal gay se beijando na rua que com 20 mil assassinatos homofóbicos. Aquele cidadão de bem que diz "não voto no Bolsonaro, mas ele é corajoso, fala umas coisas que ninguém diz". A pessoa que não entrou no curso que queria e bota a culpa nas cotas. E por aí vai. Só que ela não quer confessar seus reais pensamentos. Sabe que vai soar mal e faria cair sua máscara de pessoa legal, bem pensante, etc.
Aí cria esse recurso lógico em que no fim das contas ela está apenas se defendendo, quando na verdade está oprimindo quem sempre se fodeu. Mas nesse discurso ela pode evitar assumir que não gosta de pobre, que é racista, misógino e homofóbico, etc. Ela não é nada disso. Ela só é contra esse pessoalzinho de esquerda que quer entregar o mundo na mão dos bandidos, bando de hipócritas. Ele só quer garantir que o mundo não continue dominados por bichas histéricas, feminazis e coisas do tipo. Enfim, um pobre coitado sitiado por uma multidão de carniceiros, apoiados pela esquerda, pela mídia, pelo Foro de São Paulo e demais delírios do tipo.
Me parece claro que a história joga a favor dos defensores dos direitos humanos. Seus detratores têm em mente um mundo que já acabou se é que um dia existiu. E hoje todos podem falar o que querem. Não dá pra ficar tomando atitudes autoritárias e imaginar que ninguém vai perceber ou se manifestar. O mundo mudou, ainda que muitos não tenham percebido. Sei que é difícil acreditar no que estou dizendo quando se olha à volta e vê essa montoeira de lixo que nos cerca. Mas já disse antes e repito: essas pessoas estão histéricas justamente por perceber que a derrota é inevitável. Tentam ganhar no grito como último recurso.
Uma das estratégias desesperadas é criar um fantasma, utilizando um recurso conhecido no estudo da lógica como "falácia do espantalho". Um recurso argumentativo muito tosco, mas que engana os mais desatentos ou burros. No caso consiste em criar uma caricatura: o bobo alegre que acha que "bandido" é tudo gente boa (mas como são hipócritas, dizem que acham isso só que não levam um único bandido pra morar com eles, veja que absurdo), que não conhece a realidade, que quer destruir a família brasileira e sacrifica 800 animais por dia em terreiros de candomblé.
Tenho quase 43 anos. Nasci e cresci numa família esquerdista. Me formei politicamente numa cidade metalúrgica com um forte sindicato de esquerda e onde o eleitorado brizolista era franca maioria. Daqui a pouco farei um quarto de século vivendo o cotidiano dos cursos de história. Em suma, conheci trilhões de pessoas que defendem direitos humanos e cidadania para todos. Nunca ouvi uma única vez alguém defendendo ideias como as que o espantalho reaça defende. Nunca ouvi político ou intelectual de esquerda dizendo isso. Pode ser que haja quem pense essas coisas de verdade (se há quem vote no Bolsonaro, tudo pode acontecer) mas impossível dizer que são representativos do que pensamos, tanto em termos quantitativos como qualitativos.
Mas não interessa: diariamente essa caricatura aparece, podendo ou não ser associada à esquerda ou, imaginem, ao comunismo (não precisa ser de esquerda pra defender nada disso, conheço dezenas de eleitores do Aécio que pensam exatamente como eu nessas questões). Às vezes me pergunto como alguém pode ter ideias tão toscas e sem sentido ou vínculo com a realidade. Acredito que muitos são burros mesmo. Existem pessoas burras, não tem jeito. Há muitos que são apenas ignorantes. Nem conhecem gente de esquerda mas imaginam que somos como aparecemos na Veja. Essas coisas existem. Mas não é só isso.
Mas tem o tipo cínico também. Aquela pessoa que sabe perfeitamente que adora o governo carioca, pois prefere mil vezes ir a uma praia só com gente branca e dourada do que em uma com negros e pobres. A pessoa que acha o Malafaia meio desagradável mas se incomoda muito mais com um casal gay se beijando na rua que com 20 mil assassinatos homofóbicos. Aquele cidadão de bem que diz "não voto no Bolsonaro, mas ele é corajoso, fala umas coisas que ninguém diz". A pessoa que não entrou no curso que queria e bota a culpa nas cotas. E por aí vai. Só que ela não quer confessar seus reais pensamentos. Sabe que vai soar mal e faria cair sua máscara de pessoa legal, bem pensante, etc.
Aí cria esse recurso lógico em que no fim das contas ela está apenas se defendendo, quando na verdade está oprimindo quem sempre se fodeu. Mas nesse discurso ela pode evitar assumir que não gosta de pobre, que é racista, misógino e homofóbico, etc. Ela não é nada disso. Ela só é contra esse pessoalzinho de esquerda que quer entregar o mundo na mão dos bandidos, bando de hipócritas. Ele só quer garantir que o mundo não continue dominados por bichas histéricas, feminazis e coisas do tipo. Enfim, um pobre coitado sitiado por uma multidão de carniceiros, apoiados pela esquerda, pela mídia, pelo Foro de São Paulo e demais delírios do tipo.
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Rumo ao fascismo
Não gosto nem um pouco de uma coisa que apareceu nos últimos anos, de chamar tudo o que não gostamos de "fascismo". E não é só frescura de historiador: o nazi-fascismo foi algo muito específico e sempre achei, e continuo achando, que sair por aí usando esse nome pra tudo é banalizar uma experiência horrível que espero que nunca mais aconteça.
Mas hoje dei uma aula sobre o assunto. Enquanto falava não conseguia parar de ver paralelismos com certas coisas que vemos todo dia. Aquele mesmo amor por um passado idealizado que nunca existiu em que não existiam homossexuais, em que todos eram brancos lindos, em que não havia trânsito ou violência, em que as mulheres eram submissas. Enfim, um mundo em que os subalternos aceitavam passivamente seu papel secundário. Isso NUNCA existiu. Mas era o modelo desse regime, assim como é o dos eleitores dos Bolsonaros da vida (assim como o dos que dizem coisas tipo "não voto nele, mas concordo com umas coisas", enfim, o bolsonarismo travestido de "sou um cara legal, pago meus impostos", blablabla).
E o choque foi ainda mais brutal por causa do público que me ouvia. Meus alunos são nordestinos, a maioria de origem humilde, muitos não são brancos, não poucos são homossexuais, a maioria é eleitora do PT. Ou seja, eles são os típicos alvos das versões repaginadas dos amantes do Mussolini. Simplesmente por existir e serem quem são. São meninos e meninas lutando para ter uma vida melhor que a de seus pais, algo que eu sei exatamente como é, e que são demonizados pelo simples fato de não se encaixarem num modelo absolutamente escroto e excludente em que só é legal quem é homem branco hetero e reaça.
Nem preciso dizer o quanto não me identifico com nada disso. Nasci e cresci com todo o orgulho do mundo numa família operária, neto de camponeses analfabetos. À minha volta todo mundo era assim. Pessoas que vieram lá de baixo e tentavam dar a seus filhos uma vida que eles nunca puderam ter. Minha experiência de vida foi ver aquele monte de operários de mãos grossas indo votar no Brizola. Então esse mundo de tons fascistas não me pertence. O que não quer dizer que eu não conviva com ele. Afinal, ser de um país neutro não te impede de ser baleado numa guerra.
Pois essas coisas nos cercam diariamente. Nos comentários de notícias, nos ônibus, no comércio, não há um dia em que você não se sinta violentado por pessoas que querem que os subalternos se fodam. E a maior loucura de todas é que os autores são subalternos também. Que o cara que mora nos Jardins ou no Leblon se sinta incomodado pela ascensão de grupos que historicamente nunca tiveram voz é algo que seria de se esperar. É o papel deles, é o ponto de vista classista, egoísta e babaca deles. Não me incomoda ver essas pessoas odiando ciclofaixa, faixa exclusiva para ônibus, redução da velocidade máxima no trânsito. Todos eles tem carrões. Pra eles tudo isso são incômodos. Ok.
Foda mesmo é ver gente classe média ou pobre concordando com isso tudo. Pobre imbecil achando que as pessoas deveriam se armar, sendo que ele é um alvo em potencial. Classe média idiota que não quer pagar impostos mas reclama do governo por não proporcionar serviços de nível escandinavo. Pior: toda essa gente acaba achando que a vida é uma droga e a culpa é de quem vota no PT. Em sua insanidade misturam PT, movimento LGBT, feminismo, cotas, ciclofaixa e tudo o que eles não gostam. Chamam isso de comunismo. Se sentem oprimidos que precisam de um libertador que os salve.
O que descrevi no último parágrafo foi o sentimento que gerou Hitler e Mussolini. Não estou dizendo que o que vivemos levará a isso. Mas quem estuda história sabe: o que vivemos hoje é um convite ao aparecimento de alguém desse tipo. Você conhece gente assim. E sabe que não são poucos. Não acho que teremos fascismo por aqui. Mas que o clima é muito favorável ao surgimento de um Mussolini da vida, isso é.
Mas hoje dei uma aula sobre o assunto. Enquanto falava não conseguia parar de ver paralelismos com certas coisas que vemos todo dia. Aquele mesmo amor por um passado idealizado que nunca existiu em que não existiam homossexuais, em que todos eram brancos lindos, em que não havia trânsito ou violência, em que as mulheres eram submissas. Enfim, um mundo em que os subalternos aceitavam passivamente seu papel secundário. Isso NUNCA existiu. Mas era o modelo desse regime, assim como é o dos eleitores dos Bolsonaros da vida (assim como o dos que dizem coisas tipo "não voto nele, mas concordo com umas coisas", enfim, o bolsonarismo travestido de "sou um cara legal, pago meus impostos", blablabla).
E o choque foi ainda mais brutal por causa do público que me ouvia. Meus alunos são nordestinos, a maioria de origem humilde, muitos não são brancos, não poucos são homossexuais, a maioria é eleitora do PT. Ou seja, eles são os típicos alvos das versões repaginadas dos amantes do Mussolini. Simplesmente por existir e serem quem são. São meninos e meninas lutando para ter uma vida melhor que a de seus pais, algo que eu sei exatamente como é, e que são demonizados pelo simples fato de não se encaixarem num modelo absolutamente escroto e excludente em que só é legal quem é homem branco hetero e reaça.
Nem preciso dizer o quanto não me identifico com nada disso. Nasci e cresci com todo o orgulho do mundo numa família operária, neto de camponeses analfabetos. À minha volta todo mundo era assim. Pessoas que vieram lá de baixo e tentavam dar a seus filhos uma vida que eles nunca puderam ter. Minha experiência de vida foi ver aquele monte de operários de mãos grossas indo votar no Brizola. Então esse mundo de tons fascistas não me pertence. O que não quer dizer que eu não conviva com ele. Afinal, ser de um país neutro não te impede de ser baleado numa guerra.
Pois essas coisas nos cercam diariamente. Nos comentários de notícias, nos ônibus, no comércio, não há um dia em que você não se sinta violentado por pessoas que querem que os subalternos se fodam. E a maior loucura de todas é que os autores são subalternos também. Que o cara que mora nos Jardins ou no Leblon se sinta incomodado pela ascensão de grupos que historicamente nunca tiveram voz é algo que seria de se esperar. É o papel deles, é o ponto de vista classista, egoísta e babaca deles. Não me incomoda ver essas pessoas odiando ciclofaixa, faixa exclusiva para ônibus, redução da velocidade máxima no trânsito. Todos eles tem carrões. Pra eles tudo isso são incômodos. Ok.
Foda mesmo é ver gente classe média ou pobre concordando com isso tudo. Pobre imbecil achando que as pessoas deveriam se armar, sendo que ele é um alvo em potencial. Classe média idiota que não quer pagar impostos mas reclama do governo por não proporcionar serviços de nível escandinavo. Pior: toda essa gente acaba achando que a vida é uma droga e a culpa é de quem vota no PT. Em sua insanidade misturam PT, movimento LGBT, feminismo, cotas, ciclofaixa e tudo o que eles não gostam. Chamam isso de comunismo. Se sentem oprimidos que precisam de um libertador que os salve.
O que descrevi no último parágrafo foi o sentimento que gerou Hitler e Mussolini. Não estou dizendo que o que vivemos levará a isso. Mas quem estuda história sabe: o que vivemos hoje é um convite ao aparecimento de alguém desse tipo. Você conhece gente assim. E sabe que não são poucos. Não acho que teremos fascismo por aqui. Mas que o clima é muito favorável ao surgimento de um Mussolini da vida, isso é.
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Crise e histeria: quando gente boa opta por se tornar massa de manobra
Tenho falado bem menos de política do que normalmente faço, e por dois motivos. O primeiro é que o cenário deste momento é tão deprimente que sequer dá vontade de falar alguma coisa. O segundo é que nesse contexto eu percebo que 99% dos textos que leio, quase todos escritos por pessoas com alto nível educacional e muito politizadas, lêem a situação pelo ângulo de um militante secundarista. Os governistas olham para o outro lado e só vêem uma coisa: golpismo. Os oposicionistas quando fazem o mesmo só enxergam uma coisa: corrupção. Triste ver gente lida por vezes por milhares de pessoas olhando para um cenário tão complexo com um olhar tão rasteiro.
O governo se beneficia da existência desses blogs todos fazendo parecer que qualquer pessoa que critica o governo quer um golpe. Claro: pregar "golpista" na testa de QUALQUER pessoa que faz QUALQUER crítica ao governo é um jeito de desqualificar qualquer uma dessas críticas. Para quem está no poder sempre é bom que não falte quem acredite que o governo não tem culpa de nada, que tudo é a crise de 2008, que Zé Dirceu é um mártir, que estão querendo derrubar Dilma porque ela investiga a corrupção, etc. Enfim, o governo não erra e quem não gosta é golpista.
Por outro lado, a oposição também se beneficia dessa visão extremamente primária de que todos os problemas do Brasil derivam de termos um governo corrupto (ou, numa versão menos péssima, mal administrado). Aí é o contrário: a oposição é honesta, nunca existiu crise em 2008, de forma que os problemas atuais são todos do governo, o PT é uma quadrilha assaltando os cofres públicos, e por isso estamos com problemas econômicos, etc. Em suma, para a oposição é excelente esse clima de histeria. E a grande mídia, naturalmente, cumpre seu papel histórico ao fomentar esse clima.
Me impressiona particularmente ver quanta gente se dispõe voluntariamente a ser otário a ponto de ser massa de manobra desse pessoal. Pois é exatamente disso que se trata. Ao aceitar alegremente o convite de olhar para um contexto altamente complexo com o olhar de um militante secundarista, essas pessoas todas nada mais fazem que se tornar fantoches a serviços do interesse alheio. Interesses que, em sua histeria, eles nem percebem quais são. Como diria um professor que tive na faculdade, nem sabem em que molho estão sendo comidos.
Os que abraçam a ideia pífia de que todos os que criticam Dilma são golpistas estão avalizando os cortes absurdos feitos pelo governo em áreas como a educação. As pessoas que trabalham em universidade federal já estão plenamente cientes que devem estar satisfeitos se tiverem calças para vestir em 2018. Alunos estão perdendo bolsas, pagamentos estão atrasando, verbas cortadas por todos os lados... mas vá falar isso: sempre aparece alguém para te lembrar que você está repetindo o discurso da "mídia golpista". A histeria antigolpista legitima qualquer ação do governo.
Do lado oposicionista o mais inacreditável é ver como há gente de classe média comprando insanamente um discurso que só beneficia a elite e posando de politizada por causa disso. Pelo que me contam, hoje um editorial da Folha sugere duas alternativas a Dilma: renúncia ou cortes na educação, saúde e previdência como forma de combater a crise. Claro que isso foi lido como "golpismo" pelos governistas, mas não é nada disso. É apenas chantagem. Estão dizendo: se você quer sobreviver no poder, faça os pobres pagarem pela crise e não mexa com o empresariado. É luta de classes, não é golpismo.
Pois essa sim é a grande questão do momento, algo que surpreendentemente muita gente não percebeu: quem vai pagar pela crise. Até agora Dilma, muito enfraquecida, cedeu a todas as pressões e vem fazendo com que os mais necessitados paguem sozinhos. A CPMF foi uma tentativa de mudar um pouco isso. Ela é uma forma mais justa de minimizar os efeitos da crise do que os cortes feitos até agora em programas voltados para os que mais precisam. Embora não seja o ideal, ao menos ela incide na mesma proporção para todos (o ideal seria um tributo que incidisse mais sobre os que podem mais, mas já é uma melhora). Pois não é que muitas pessoas que criticavam cortes na educação ficaram histéricas? Claro, em sua lógica seletiva, serão contra tudo o que o governo fizer. Em sua histeria, não vêem como estão fazendo papel de trouxa.
Para efeito ilustrativo. Suponhamos uma família de classe média com uma receita de 10 mil reais. O máximo que essa família vai pagar por mês será 20 reais de CPMF. Dinheiro que essa família deve gastar todo dia com o lanche dos filhos na escola. Nada. Mas imbecilmente repetem que nem papagaios que o governo roubou e agora a população é que paga a conta. Não, seu trouxa. A CPMF era uma primeira tentativa de colocar a elite para arcar com alguma parte que seja do ajuste. Justamente por não querer pagar, essa elite botou na rua o discurso citado acima e a classe média comprou como sempre.
Tudo o que essa elite não quer é pagar pela crise. Quer que o morador da periferia que chegou à universidade pública e que o aposentado pague. Então tudo o que importa para eles, muito mais do que quem é o presidente, é garantir que não vão pagar nada no ajuste. Pobre de quem acha que a elite está preocupada com Dilma ou Aécio. No momento a prioridade deles é uma só: manter coisas como imposto sobre grandes fortunas muito longe da pauta política. Interessa manter o governo Dilma pressionado e encurralado para que ceda fácil às demandas dessa gente. E os otários de classe média, que nada têm a ganhar com nada disso, ficam aí berrando que o governo é corrupto, achando que são super politizados, quando apenas estão sendo fantoches de banqueiros e empresários.
Tem gente que gosta de falar que não tem mais bobo no futebol. Tem sim, e bastante. Onde não tem bobo é na política. Nesse debate atual há muitas pautas diferentes, muitos interesses, muitos conflitos, cada grupo com sua própria agenda. Nada mais natural que tentem mobilizar o público para o seu lado, preferencialmente fazendo parecer que são movidos por causas nobres. Trouxa é quem acha que tudo o que está acontecendo agora é uma luta entre bem e mal, seja governistas x golpistas, seja honestos x corruptos. A pessoa que tem estudo, acompanha política há tempos e mesmo assim opta por ser massa de manobra sem ganhar nada com isso é só isso mesmo: trouxa.
O governo se beneficia da existência desses blogs todos fazendo parecer que qualquer pessoa que critica o governo quer um golpe. Claro: pregar "golpista" na testa de QUALQUER pessoa que faz QUALQUER crítica ao governo é um jeito de desqualificar qualquer uma dessas críticas. Para quem está no poder sempre é bom que não falte quem acredite que o governo não tem culpa de nada, que tudo é a crise de 2008, que Zé Dirceu é um mártir, que estão querendo derrubar Dilma porque ela investiga a corrupção, etc. Enfim, o governo não erra e quem não gosta é golpista.
Por outro lado, a oposição também se beneficia dessa visão extremamente primária de que todos os problemas do Brasil derivam de termos um governo corrupto (ou, numa versão menos péssima, mal administrado). Aí é o contrário: a oposição é honesta, nunca existiu crise em 2008, de forma que os problemas atuais são todos do governo, o PT é uma quadrilha assaltando os cofres públicos, e por isso estamos com problemas econômicos, etc. Em suma, para a oposição é excelente esse clima de histeria. E a grande mídia, naturalmente, cumpre seu papel histórico ao fomentar esse clima.
Me impressiona particularmente ver quanta gente se dispõe voluntariamente a ser otário a ponto de ser massa de manobra desse pessoal. Pois é exatamente disso que se trata. Ao aceitar alegremente o convite de olhar para um contexto altamente complexo com o olhar de um militante secundarista, essas pessoas todas nada mais fazem que se tornar fantoches a serviços do interesse alheio. Interesses que, em sua histeria, eles nem percebem quais são. Como diria um professor que tive na faculdade, nem sabem em que molho estão sendo comidos.
Os que abraçam a ideia pífia de que todos os que criticam Dilma são golpistas estão avalizando os cortes absurdos feitos pelo governo em áreas como a educação. As pessoas que trabalham em universidade federal já estão plenamente cientes que devem estar satisfeitos se tiverem calças para vestir em 2018. Alunos estão perdendo bolsas, pagamentos estão atrasando, verbas cortadas por todos os lados... mas vá falar isso: sempre aparece alguém para te lembrar que você está repetindo o discurso da "mídia golpista". A histeria antigolpista legitima qualquer ação do governo.
Do lado oposicionista o mais inacreditável é ver como há gente de classe média comprando insanamente um discurso que só beneficia a elite e posando de politizada por causa disso. Pelo que me contam, hoje um editorial da Folha sugere duas alternativas a Dilma: renúncia ou cortes na educação, saúde e previdência como forma de combater a crise. Claro que isso foi lido como "golpismo" pelos governistas, mas não é nada disso. É apenas chantagem. Estão dizendo: se você quer sobreviver no poder, faça os pobres pagarem pela crise e não mexa com o empresariado. É luta de classes, não é golpismo.
Pois essa sim é a grande questão do momento, algo que surpreendentemente muita gente não percebeu: quem vai pagar pela crise. Até agora Dilma, muito enfraquecida, cedeu a todas as pressões e vem fazendo com que os mais necessitados paguem sozinhos. A CPMF foi uma tentativa de mudar um pouco isso. Ela é uma forma mais justa de minimizar os efeitos da crise do que os cortes feitos até agora em programas voltados para os que mais precisam. Embora não seja o ideal, ao menos ela incide na mesma proporção para todos (o ideal seria um tributo que incidisse mais sobre os que podem mais, mas já é uma melhora). Pois não é que muitas pessoas que criticavam cortes na educação ficaram histéricas? Claro, em sua lógica seletiva, serão contra tudo o que o governo fizer. Em sua histeria, não vêem como estão fazendo papel de trouxa.
Para efeito ilustrativo. Suponhamos uma família de classe média com uma receita de 10 mil reais. O máximo que essa família vai pagar por mês será 20 reais de CPMF. Dinheiro que essa família deve gastar todo dia com o lanche dos filhos na escola. Nada. Mas imbecilmente repetem que nem papagaios que o governo roubou e agora a população é que paga a conta. Não, seu trouxa. A CPMF era uma primeira tentativa de colocar a elite para arcar com alguma parte que seja do ajuste. Justamente por não querer pagar, essa elite botou na rua o discurso citado acima e a classe média comprou como sempre.
Tudo o que essa elite não quer é pagar pela crise. Quer que o morador da periferia que chegou à universidade pública e que o aposentado pague. Então tudo o que importa para eles, muito mais do que quem é o presidente, é garantir que não vão pagar nada no ajuste. Pobre de quem acha que a elite está preocupada com Dilma ou Aécio. No momento a prioridade deles é uma só: manter coisas como imposto sobre grandes fortunas muito longe da pauta política. Interessa manter o governo Dilma pressionado e encurralado para que ceda fácil às demandas dessa gente. E os otários de classe média, que nada têm a ganhar com nada disso, ficam aí berrando que o governo é corrupto, achando que são super politizados, quando apenas estão sendo fantoches de banqueiros e empresários.
Tem gente que gosta de falar que não tem mais bobo no futebol. Tem sim, e bastante. Onde não tem bobo é na política. Nesse debate atual há muitas pautas diferentes, muitos interesses, muitos conflitos, cada grupo com sua própria agenda. Nada mais natural que tentem mobilizar o público para o seu lado, preferencialmente fazendo parecer que são movidos por causas nobres. Trouxa é quem acha que tudo o que está acontecendo agora é uma luta entre bem e mal, seja governistas x golpistas, seja honestos x corruptos. A pessoa que tem estudo, acompanha política há tempos e mesmo assim opta por ser massa de manobra sem ganhar nada com isso é só isso mesmo: trouxa.
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
CPMF e a indignação seletiva
Vi algumas pessoas falando coisas tipo "os eleitores da Dilma deviam pagar pelo ajuste fiscal". O tipo de argumento que é tão coisa de débil mental que fica até difícil argumentar. A mesma lógica deveria significar que só os eleitores do PT poderiam fazer os concursos abertos nos últimos 12 anos, por exemplo. Que nos anos FHC deveria haver dois tipos de preços: uns para os eleitores do PSDB e outros, ainda com inflação, para quem não votou nele. Ah, claro, FHC também arranjou uma dívida externa enorme, que deveria ser integralmente paga por seus eleitores. E só quem votou nele deveria pagar os 26% de juros, que eram a taxa quando ele entregou o governo a Lula.
Sobretudo é um argumento de quem não entendeu o que é democracia. Não ouvi nenhum deles dizendo que só eleitores do Alckmin deveriam ter racionamento de água. Que só eleitores do Sartori deveriam ter parcelamento de salário. Que apenas eleitores de Sérgio Cabral e Eduardo Paes deveriam pagar pelos imensos gastos da Olimpíada. São simplesmente pessoas que não sabem perder. Não entendem que o jogo democrático é esse mesmo. Todo mundo vota em quem acha que deve, quem tem mais votos governa. Achar que o governo é horrível é direito de todos, pois graças a Deus e à luta de gerações de pessoas hoje vivemos uma democracia. E é ótimo que exista uma oposição crítica. Não me importo minimamente com a oposição tanto à direita como à esquerda fazer seu papel, que é criticar o governo.
Mas existe uma diferença. A oposição à esquerda critica muito. Às vezes concordo, às vezes discordo, mas eles respeitam o resultado das urnas. Nunca desqualificam os 54 milhões de eleitores que reconduziram Dilma à presidência. Em suma, fazem seu papel. O eleitor médio da oposição à direita não é assim. Acha que tem o direito de chamar a maioria de idiota, burra, vendida e ladra. Comparam o ato totalmente cidadão de votar naquilo que se acredita a ser um criminoso, só por a opção da maioria ter sido diferente da sua. Se comportam como crianças mimadas que querem levar a bola embora quando seu time leva gol. Quem não pensa como eles é um idiota vendido.
E aqui vale um parêntesis sobre o quanto nossas classes médias e altas são mimadas, verdadeiras crianças egocêntricas, quando falam de política. Desconhecem o conceito de bem comum, elemento chave da democracia. Só querem tudo para si. Quando não têm, ficam indignadas. Vou dar apenas um exemplo, as medidas de Fernando Haddad sobre o trânsito paulistano. Não moro lá, não sou especialista no assunto, não tenho capacidade para analisar se as medidas são corretas. Mas uma coisa eu sei. Xingar a "indústria da multa" quando você é pego por um radar andando acima da velocidade permitida não justifica. Você não sabia a velocidade máxima permitida? Não escolheu andar acima dela? Amigo, você escolheu correr o risco. Mas como são apenas crianças mimadas, botam a culpa nos outros. Claro. Nunca é culpa delas.
Bem, então vamos a CPMF. Mais um enorme erro político do governo, que a cada dia parece mais perdido que no anterior, se é que isso é possível. Num país em que há a percepção generalizada (correta ou equivocada, pouco importa aqui) de que se paga impostos demais para sustentar corrupção e privilégios, um governo no auge da impopularidade elege recriar um imposto como solução. Convenhamos, é implorar para ser criticado. Ainda mais com uma oposição tão raivosa que reclama de coisas absolutamente irrelevantes. Dilma deu a eles um prato cheio e eles não desperdiçaram.
No fim das contas a minha impressão é que a CPMF não volta, o governo não tem a menor condição de aprovar isso. Será apenas um desgaste político absolutamente idiota e desnecessário. O que chama muito minha atenção na verdade é ver mais uma vez como a indignação pode ser seletiva e violenta. Pessoas que pagaram CPMF sem reclamar durante os 8 anos de governo FHC e são simpatizantes do PSDB se pronunciando com ódio frente à possibilidade de o imposto voltar. São pessoas que achavam tudo bem termos juros de 26% ao ano, desemprego de 20% e inflação nos 10%, desde que seja no governo do partido em que votaram. O que me dá nojo nessa história toda é a indignação seletiva. A falta de espelho em casa. A total ausência de escrúpulos disfarçada de luta ética. O clima de "posso falar o que quiser desde que tenha tom de indignação contra o governo".
Fui contra a CPMF no governo FHC e sou contra agora. Fui contra o governo FHC se aliar com todo o lixo político do país e sinto o mesmo em relação à Dilma. Minha indignação contra a corrupção é rigorosamente a mesma quando se trata de Zé Dirceu ou Aécio. Se as pessoas que conheço e não gostam do governo fossem assim eu conversaria com eles, e certamente teríamos muito mais em comum do que de discordância. Mas eles não são assim. Ali só vejo indignação seletiva. Não têm água para tomar banho, não tem metrô, cuja entrega já foi adiada mil vezes, mas acham que só o PT não sabe administrar. Com gente assim não dá pra conversar.
Sobretudo é um argumento de quem não entendeu o que é democracia. Não ouvi nenhum deles dizendo que só eleitores do Alckmin deveriam ter racionamento de água. Que só eleitores do Sartori deveriam ter parcelamento de salário. Que apenas eleitores de Sérgio Cabral e Eduardo Paes deveriam pagar pelos imensos gastos da Olimpíada. São simplesmente pessoas que não sabem perder. Não entendem que o jogo democrático é esse mesmo. Todo mundo vota em quem acha que deve, quem tem mais votos governa. Achar que o governo é horrível é direito de todos, pois graças a Deus e à luta de gerações de pessoas hoje vivemos uma democracia. E é ótimo que exista uma oposição crítica. Não me importo minimamente com a oposição tanto à direita como à esquerda fazer seu papel, que é criticar o governo.
Mas existe uma diferença. A oposição à esquerda critica muito. Às vezes concordo, às vezes discordo, mas eles respeitam o resultado das urnas. Nunca desqualificam os 54 milhões de eleitores que reconduziram Dilma à presidência. Em suma, fazem seu papel. O eleitor médio da oposição à direita não é assim. Acha que tem o direito de chamar a maioria de idiota, burra, vendida e ladra. Comparam o ato totalmente cidadão de votar naquilo que se acredita a ser um criminoso, só por a opção da maioria ter sido diferente da sua. Se comportam como crianças mimadas que querem levar a bola embora quando seu time leva gol. Quem não pensa como eles é um idiota vendido.
E aqui vale um parêntesis sobre o quanto nossas classes médias e altas são mimadas, verdadeiras crianças egocêntricas, quando falam de política. Desconhecem o conceito de bem comum, elemento chave da democracia. Só querem tudo para si. Quando não têm, ficam indignadas. Vou dar apenas um exemplo, as medidas de Fernando Haddad sobre o trânsito paulistano. Não moro lá, não sou especialista no assunto, não tenho capacidade para analisar se as medidas são corretas. Mas uma coisa eu sei. Xingar a "indústria da multa" quando você é pego por um radar andando acima da velocidade permitida não justifica. Você não sabia a velocidade máxima permitida? Não escolheu andar acima dela? Amigo, você escolheu correr o risco. Mas como são apenas crianças mimadas, botam a culpa nos outros. Claro. Nunca é culpa delas.
Bem, então vamos a CPMF. Mais um enorme erro político do governo, que a cada dia parece mais perdido que no anterior, se é que isso é possível. Num país em que há a percepção generalizada (correta ou equivocada, pouco importa aqui) de que se paga impostos demais para sustentar corrupção e privilégios, um governo no auge da impopularidade elege recriar um imposto como solução. Convenhamos, é implorar para ser criticado. Ainda mais com uma oposição tão raivosa que reclama de coisas absolutamente irrelevantes. Dilma deu a eles um prato cheio e eles não desperdiçaram.
No fim das contas a minha impressão é que a CPMF não volta, o governo não tem a menor condição de aprovar isso. Será apenas um desgaste político absolutamente idiota e desnecessário. O que chama muito minha atenção na verdade é ver mais uma vez como a indignação pode ser seletiva e violenta. Pessoas que pagaram CPMF sem reclamar durante os 8 anos de governo FHC e são simpatizantes do PSDB se pronunciando com ódio frente à possibilidade de o imposto voltar. São pessoas que achavam tudo bem termos juros de 26% ao ano, desemprego de 20% e inflação nos 10%, desde que seja no governo do partido em que votaram. O que me dá nojo nessa história toda é a indignação seletiva. A falta de espelho em casa. A total ausência de escrúpulos disfarçada de luta ética. O clima de "posso falar o que quiser desde que tenha tom de indignação contra o governo".
Fui contra a CPMF no governo FHC e sou contra agora. Fui contra o governo FHC se aliar com todo o lixo político do país e sinto o mesmo em relação à Dilma. Minha indignação contra a corrupção é rigorosamente a mesma quando se trata de Zé Dirceu ou Aécio. Se as pessoas que conheço e não gostam do governo fossem assim eu conversaria com eles, e certamente teríamos muito mais em comum do que de discordância. Mas eles não são assim. Ali só vejo indignação seletiva. Não têm água para tomar banho, não tem metrô, cuja entrega já foi adiada mil vezes, mas acham que só o PT não sabe administrar. Com gente assim não dá pra conversar.
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
As delícias de ser privilegiado...
"A Europa deve aceitar os novos refugiados filhos do capitalismo global e herdeiros do colonialismo mas em troca deve fixar regras claras que privilegiem o estilo de vida europeu"
O que vai aí em cima é uma citação de Slavoj Zizek, darling da esquerda mundial nos últimos anos. Que elabora todo um discurso baseado em clássicos da esquerda ("capitalismo global", "colonialismo) para no fim deixar clara sua real preocupação. Gostamos dessas pobres vítimas, precisamos acolher todas elas, desde que não mexam com nosso maravilhoso mundinho.
Gozado é ver gente de esquerda defendendo isso, dizendo que ele se preocupa com o avanço de ideias racistas, sexistas e homofóbicas com a chegada desses imigrantes. Amigos, quem no mundo pode achar que europeus precisam de imigrantes para ensiná-los a serem racistas, sexistas e homofóbicos? Eles sempre foram assim. E quem, em sã consciência, acha que a principal bagagem desses imigrantes miseráveis, fodidos por uma guerra absurda, é essa? Baseado em que? Só no preconceito mesmo? Aparentemente sim.
Pois sentir empatia com os que sofrem é ter humanidade. Sendo homem branco hetero de classe média tenho o maior apreço por causas como o feminismo, o movimento negro, o movimento anti homofobia e outros que tais. Até aí tudo bem. Isso apenas significa que não sou um completo imbecil. Olhar no espelho e se ver como privilegiado, alguém que não chegou onde chegou apenas por seus méritos, mas por viver numa sociedade em que tudo te favorece, aí é outra coisa.
Vejo por aí um bando de homem privilegiado, principalmente caras que nunca tiveram com o que se preocupar na vida, se dizendo "feministas". E, tão acostumados estão com seu lugar privilegiado, que sequer conseguem entender como isso é ofensivo, como isso é pretender ser um dominante falando em nome de um subalterno que nessa visão não sabe se expressar sozinho. E há coisa ainda pior, homem querendo ensinar mulher a ser feminista, mas aí eu prefiro nem comentar. O tema aqui é "dominantes bem intencionados que não conseguem ver como sua posição é a posição dos dominantes".
Europeus causaram as maiores guerras da história da humanidade. Inventaram o racismo. Foi lá que fui chamado de "macaco" por gente que achou que eu não entendia a língua deles (claro, sul americano é tudo burro). Também foi lá que vi uma amiga me contando ter sido chamada de prostituta pela professora do mestrado por ser brasileira. Não me venham com essa de que europeus são menos preconceituosos e mais abertos não. Vão lá e vocês vão descobrir que não é por aí não. Europeus são mais ricos que nós, terceiro mundistas, e isso é fato. Mas não me venham com esse papo de que são mais abertos. Quem vota em Berlusconi, Le Pen e coisas do tipo são eles, não nós.
Mas um lado de mim entende o Zizek. Não passa dia que não ouça revolucionários desse tipo. A universidade tem milhões deles. Gente que se compadece genuinamente dos que vieram de baixo mas os olham com olhar superior. Não é por mal. Sei que não é. Estamos falando de perspectiva de classe. É disso que se trata. Quem é privilegiado nunca vai olhar o subalterno como igual. Porque não é mesmo. O professor universitário que sempre teve a barriga cheia e nunca se preocupou com nada nunca vai olhar o aluno favelado e ver um igual. E nem pode. Pois não é mesmo.
Do seu ponto de vista privilegiado, Zizek acha que imigrantes são todos mutiladores genitais com turbantes que adoram um Deus estranho e é preciso salvar o "estilo de vida europeu" desses bárbaros. Claro. Ele é um europeu. Foi treinado desde sempre para pensar assim. E mesmo um historiador não particularmente marxista como Carlo Ginzburg já colocou esse tipo de coisa em termos de "não se escapa de sua experiência de classe". Ele está apenas sendo o que é: um europeu privilegiado. Já não tenho a mesma compaixão de gente subalterna que vê o mundo com esses olhos. Aí já acho coisa de otário mesmo.
O que vai aí em cima é uma citação de Slavoj Zizek, darling da esquerda mundial nos últimos anos. Que elabora todo um discurso baseado em clássicos da esquerda ("capitalismo global", "colonialismo) para no fim deixar clara sua real preocupação. Gostamos dessas pobres vítimas, precisamos acolher todas elas, desde que não mexam com nosso maravilhoso mundinho.
Gozado é ver gente de esquerda defendendo isso, dizendo que ele se preocupa com o avanço de ideias racistas, sexistas e homofóbicas com a chegada desses imigrantes. Amigos, quem no mundo pode achar que europeus precisam de imigrantes para ensiná-los a serem racistas, sexistas e homofóbicos? Eles sempre foram assim. E quem, em sã consciência, acha que a principal bagagem desses imigrantes miseráveis, fodidos por uma guerra absurda, é essa? Baseado em que? Só no preconceito mesmo? Aparentemente sim.
Pois sentir empatia com os que sofrem é ter humanidade. Sendo homem branco hetero de classe média tenho o maior apreço por causas como o feminismo, o movimento negro, o movimento anti homofobia e outros que tais. Até aí tudo bem. Isso apenas significa que não sou um completo imbecil. Olhar no espelho e se ver como privilegiado, alguém que não chegou onde chegou apenas por seus méritos, mas por viver numa sociedade em que tudo te favorece, aí é outra coisa.
Vejo por aí um bando de homem privilegiado, principalmente caras que nunca tiveram com o que se preocupar na vida, se dizendo "feministas". E, tão acostumados estão com seu lugar privilegiado, que sequer conseguem entender como isso é ofensivo, como isso é pretender ser um dominante falando em nome de um subalterno que nessa visão não sabe se expressar sozinho. E há coisa ainda pior, homem querendo ensinar mulher a ser feminista, mas aí eu prefiro nem comentar. O tema aqui é "dominantes bem intencionados que não conseguem ver como sua posição é a posição dos dominantes".
Europeus causaram as maiores guerras da história da humanidade. Inventaram o racismo. Foi lá que fui chamado de "macaco" por gente que achou que eu não entendia a língua deles (claro, sul americano é tudo burro). Também foi lá que vi uma amiga me contando ter sido chamada de prostituta pela professora do mestrado por ser brasileira. Não me venham com essa de que europeus são menos preconceituosos e mais abertos não. Vão lá e vocês vão descobrir que não é por aí não. Europeus são mais ricos que nós, terceiro mundistas, e isso é fato. Mas não me venham com esse papo de que são mais abertos. Quem vota em Berlusconi, Le Pen e coisas do tipo são eles, não nós.
Mas um lado de mim entende o Zizek. Não passa dia que não ouça revolucionários desse tipo. A universidade tem milhões deles. Gente que se compadece genuinamente dos que vieram de baixo mas os olham com olhar superior. Não é por mal. Sei que não é. Estamos falando de perspectiva de classe. É disso que se trata. Quem é privilegiado nunca vai olhar o subalterno como igual. Porque não é mesmo. O professor universitário que sempre teve a barriga cheia e nunca se preocupou com nada nunca vai olhar o aluno favelado e ver um igual. E nem pode. Pois não é mesmo.
Do seu ponto de vista privilegiado, Zizek acha que imigrantes são todos mutiladores genitais com turbantes que adoram um Deus estranho e é preciso salvar o "estilo de vida europeu" desses bárbaros. Claro. Ele é um europeu. Foi treinado desde sempre para pensar assim. E mesmo um historiador não particularmente marxista como Carlo Ginzburg já colocou esse tipo de coisa em termos de "não se escapa de sua experiência de classe". Ele está apenas sendo o que é: um europeu privilegiado. Já não tenho a mesma compaixão de gente subalterna que vê o mundo com esses olhos. Aí já acho coisa de otário mesmo.
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
Patriarcalismo e proteção aos poderosos: homenagem à minha avó
Hoje faz 97 anos que nasceu minha avó Francisca Maciel, posteriormente Francisca Maciel Gomes. Sempre houve uma situação meio silenciada na família envolvendo ela. Aproveitei o fato de ser historiador e pesquisei sobre o assunto. E o que achei me pareceu absolutamente ilustrativo sobre o país em que vivemos.
A questão é que na certidão de nascimento dela não existia um pai. Só o nome da mãe. Historiador em germe, fiz perguntas sobre isso, e soube que minha bisavó era doméstica na casa de uma família poderosa. Um dia, depois de forçar muito, consegui o nome do pai dela. Não vou citar aqui, por não achar que ele merece ser lembrado, por motivos que ficarão claros adiante. Mas eram três sobrenomes ilustres da elite quatrocentona paulista. Sobrinho de presidente da República.
Com o nome do bisavô em mãos pesquisei. Vi que um mês antes da minha avó nascer ele foi nomeado professor numa cidade paulista bem distante de Guaratinguetá, onde minha avó, filha dele, nasceria logo depois. Indício óbvio de que a familia poderosa identificou um problema: um filho deles havia engravidado uma serviçal e era preciso encobrir o fato desagradável. Mandaram o filho pra longe, em um posto respeitável, e cuidaram da serviçal, que milagrosamente aparece logo em seguida em São Paulo, sendo empregada de outro membro da alta elite paulista, filho de gente com título de nobreza. O processo de silenciamento se completa.
Tudo isso foi em 1918, quando minha avó nasceu. Reencontro meu bisavô nos anos 30. Fazendeiro, rico e processado por ser ligado ao partido nazista brasileiro. Inocentado ao fim do processo, provavelmente por intercessão de parentes poderosos. Não muito tempo depois aparece nos jornais da cidade ciceroneando Ademar de Barros e fazendo discursos em homenagem a ele. Não consegui descobrir quando morreu, mas teve uma filha poetisa de idade próxima à da minha avó o homenageando como "pai exemplar".
Essa história me enoja do início ao fim. Nela está contido tudo o que eu odeio nesta vida. Machismo, sentimento de superioridade natural, as vantagens que os bem nascidos tem sobre os da "ralé", a tranquila sensação de felicidade daqueles que exploram quem não tem nada. Tudo isso é o Brasil que conhecemos. Essa história mostra bem como funciona a mente de quem está insatisfeito. Pra eles o mundo só existe para que eles possam fazer o que quiserem. Se não é assim, se sentem tristinhos e oprimidos. Cambada de filhos da puta. As coisas têm nome e esses nomes precisam ser ditos. São filhos da puta.
Da minha parte acho que foi ótimo nunca ter conhecido esse senhor nem fazer parte da sua família privilegiada, ainda que compartilhemos genes e façamos parte da mesma árvore genealógica. Dona Francisca foi uma avó e tanto, a despeito das diferenças que tivemos por conta de questões familiares. Se divertia comigo, foi muito generosa, impunha aquela rígida disciplina de quem vem de baixo (aquela que o pai dela jamais teve, riquinho mimado que sempre foi). E fazia os melhores doces de todos os tempos. Isso tudo vale 950 trilhões de títulos de nobreza.
A questão é que na certidão de nascimento dela não existia um pai. Só o nome da mãe. Historiador em germe, fiz perguntas sobre isso, e soube que minha bisavó era doméstica na casa de uma família poderosa. Um dia, depois de forçar muito, consegui o nome do pai dela. Não vou citar aqui, por não achar que ele merece ser lembrado, por motivos que ficarão claros adiante. Mas eram três sobrenomes ilustres da elite quatrocentona paulista. Sobrinho de presidente da República.
Com o nome do bisavô em mãos pesquisei. Vi que um mês antes da minha avó nascer ele foi nomeado professor numa cidade paulista bem distante de Guaratinguetá, onde minha avó, filha dele, nasceria logo depois. Indício óbvio de que a familia poderosa identificou um problema: um filho deles havia engravidado uma serviçal e era preciso encobrir o fato desagradável. Mandaram o filho pra longe, em um posto respeitável, e cuidaram da serviçal, que milagrosamente aparece logo em seguida em São Paulo, sendo empregada de outro membro da alta elite paulista, filho de gente com título de nobreza. O processo de silenciamento se completa.
Tudo isso foi em 1918, quando minha avó nasceu. Reencontro meu bisavô nos anos 30. Fazendeiro, rico e processado por ser ligado ao partido nazista brasileiro. Inocentado ao fim do processo, provavelmente por intercessão de parentes poderosos. Não muito tempo depois aparece nos jornais da cidade ciceroneando Ademar de Barros e fazendo discursos em homenagem a ele. Não consegui descobrir quando morreu, mas teve uma filha poetisa de idade próxima à da minha avó o homenageando como "pai exemplar".
Essa história me enoja do início ao fim. Nela está contido tudo o que eu odeio nesta vida. Machismo, sentimento de superioridade natural, as vantagens que os bem nascidos tem sobre os da "ralé", a tranquila sensação de felicidade daqueles que exploram quem não tem nada. Tudo isso é o Brasil que conhecemos. Essa história mostra bem como funciona a mente de quem está insatisfeito. Pra eles o mundo só existe para que eles possam fazer o que quiserem. Se não é assim, se sentem tristinhos e oprimidos. Cambada de filhos da puta. As coisas têm nome e esses nomes precisam ser ditos. São filhos da puta.
Da minha parte acho que foi ótimo nunca ter conhecido esse senhor nem fazer parte da sua família privilegiada, ainda que compartilhemos genes e façamos parte da mesma árvore genealógica. Dona Francisca foi uma avó e tanto, a despeito das diferenças que tivemos por conta de questões familiares. Se divertia comigo, foi muito generosa, impunha aquela rígida disciplina de quem vem de baixo (aquela que o pai dela jamais teve, riquinho mimado que sempre foi). E fazia os melhores doces de todos os tempos. Isso tudo vale 950 trilhões de títulos de nobreza.
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
Como uma criança morta mostrou que alguns são mais iguais que outros
Difícil falar da criança síria morta numa praia turca. Vi a foto e na verdade quis morrer. Por muitos motivos. Meu lado individualista pensou se fosse minha filha ou um dos meus sobrinhos e quis sair por aí matando todo mundo. Sei que fui super individualista nisso, mas duvido que qualquer pai ou mãe tenham pensado diferente. Todos sabemos que nosso pior pesadelo é esse. Pensar que nossos filhos morreram e não fomos capazes de impedir é algo que tortura qualquer pessoa que tenha filhos. Ou que tenha coração.
Como tenho muitos amigos jornalistas vi discussões sobre a publicação da foto. Acho que fizeram bem em publicar. Há momentos em que é necessário mostrar como a realidade pode ser horrorosa. Sim, vivemos num mundo de merda em que crianças são mortas. Nenhuma criança jamais deveria ser morta. Quando eu era criança só fazia duas coisas: estudar e jogar futebol. Pra mim é incompreensível pensar que alguma criança faça qualquer coisa que não estudar e se divertir. Morrer, então, é pra fechar a humanidade pra balanço.
E vi muita gente aproveitando a situação para, por incrível que pareça, dar recados políticos. Uma imagem tão torturante como a de uma criança morta ser usada para montagens criticando o PT? É muito lixo. Que se critique o PT e seu governo. Oposição existe pra isso mesmo. Mas usar uma montagem de uma foto de uma criança morta? Quem faz isso perdeu qualquer senso de limite.
O que a foto realmente diz é o quanto nós nos acostumamos com o sofrimento dos subalternos. Nos preocupamos mais com porcos presos num caminhão que com negros chacinados pela polícia paulista. Vamos pra rua de branco protestar contra a violência quando morre um branco rico, mas nos fodemos para a polícia carioca detendo ônibus que vão do subúrbio para a praia para tirar de dentro deles os negros. Para evitar violência, segundo eles. Toleramos, enfim, o apartheid no nosso quintal. Se for contra pobre a gente não liga pra nada.
Na verdade não ligamos para a exclusão. Ela existe, castiga a maioria da população todo santo dia, mas achamos que está tudo horrível pra nós, mesmo sendo sempre favorecidos. Vivemos no país em que Bolsonaro é considerado um cara "corajoso" "que fala a verdade" apenas por atacar quem sempre é prejudicado. Vemos o crescimento de religiões que usam a mensagem cristã, baseada no amor, para propagar o ódio. O mundo em que vivemos é esse. Nosso país é assim, gostemos ou não. Podemos tentar nos proteger nos cercando de quem pensa como nós mas não adianta, a realidade cedo ou tarde esmurra nossa cara.
Foi nesse mundo que a pequena criança síria nasceu, viveu e morreu. A questão não é o desprezível Estado Islâmico ou qualquer outra. A única questão aqui é que a humanidade não dá a mínima para quem sofre. No papel ninguém gosta do Estado Islâmico. Mas na prática aceitamos a opressão felizes da vida. E só por isso existem coisas como a que vimos naquela foto, que esfregou a verdade na nossa cara.
Como tenho muitos amigos jornalistas vi discussões sobre a publicação da foto. Acho que fizeram bem em publicar. Há momentos em que é necessário mostrar como a realidade pode ser horrorosa. Sim, vivemos num mundo de merda em que crianças são mortas. Nenhuma criança jamais deveria ser morta. Quando eu era criança só fazia duas coisas: estudar e jogar futebol. Pra mim é incompreensível pensar que alguma criança faça qualquer coisa que não estudar e se divertir. Morrer, então, é pra fechar a humanidade pra balanço.
E vi muita gente aproveitando a situação para, por incrível que pareça, dar recados políticos. Uma imagem tão torturante como a de uma criança morta ser usada para montagens criticando o PT? É muito lixo. Que se critique o PT e seu governo. Oposição existe pra isso mesmo. Mas usar uma montagem de uma foto de uma criança morta? Quem faz isso perdeu qualquer senso de limite.
O que a foto realmente diz é o quanto nós nos acostumamos com o sofrimento dos subalternos. Nos preocupamos mais com porcos presos num caminhão que com negros chacinados pela polícia paulista. Vamos pra rua de branco protestar contra a violência quando morre um branco rico, mas nos fodemos para a polícia carioca detendo ônibus que vão do subúrbio para a praia para tirar de dentro deles os negros. Para evitar violência, segundo eles. Toleramos, enfim, o apartheid no nosso quintal. Se for contra pobre a gente não liga pra nada.
Na verdade não ligamos para a exclusão. Ela existe, castiga a maioria da população todo santo dia, mas achamos que está tudo horrível pra nós, mesmo sendo sempre favorecidos. Vivemos no país em que Bolsonaro é considerado um cara "corajoso" "que fala a verdade" apenas por atacar quem sempre é prejudicado. Vemos o crescimento de religiões que usam a mensagem cristã, baseada no amor, para propagar o ódio. O mundo em que vivemos é esse. Nosso país é assim, gostemos ou não. Podemos tentar nos proteger nos cercando de quem pensa como nós mas não adianta, a realidade cedo ou tarde esmurra nossa cara.
Foi nesse mundo que a pequena criança síria nasceu, viveu e morreu. A questão não é o desprezível Estado Islâmico ou qualquer outra. A única questão aqui é que a humanidade não dá a mínima para quem sofre. No papel ninguém gosta do Estado Islâmico. Mas na prática aceitamos a opressão felizes da vida. E só por isso existem coisas como a que vimos naquela foto, que esfregou a verdade na nossa cara.
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
O que aprendi com as mulheres da minha vida
Como qualquer pessoa minhas primeiras experiências com o sexo oposto foram familiares. A começar com minhas avós. Que nunca poderiam ter um discurso feminista. Eram camponesas analfabetas. Mas cada uma a sua maneira me ensinaram muito. Minha avó paterna tinha marido. Se adequava à sociedade patriarcal, inclusive por que não havia outra opção. Com ela aprendi que os subalternos podiam agir nos detalhes, no que não era dito. Como historiador eu aproveito muito isso (e os doces dela eram fenomenais, e nem quero pensar na farofa que ela fazia, a melhor da história)
Minha avó materna era diferente. Perdeu o marido muito cedo, aos 40 anos. Foi uma monstra, uma guerreira suprema. Nessa situação o espírito camponês teve um efeito muito pragmático. Assim como minha avó paterna não consigo reconhecer nela o retrato que os filhos pintaram de uma mãe muito exigente e dura. Pra mim foi uma avó absolutamente permissiva. Assim como minha outra avó, ela só queria fazer coisas que os netos gostassem. Lindamente se permitia cometer transgressões em todas as regras quando nossas mães não estavam olhando.
(um parêntensis. minhas duas avós não estavam nem aí para o que os filhos queriam para os filhos. queriam mais é avacalhar todas as regras, pois sabiam que isso não tinha importância, e por isso são responsáveis por muitas das melhores lembranças da minha vida)
Minha mãe é diferente. Não apenas por ser mãe. Me teve num momento muito difícil. Mas como diz uma amiga minha ela foi uma leoa. Naquele contexto horroroso, com aquela ditadura de merda ela me fez acreditar, com toda a justiça, que ela nunca deixaria nada acontecer comigo. E não aconteceu mesmo. Ela me ensinou algo muito importante: "ninguém mexe contigo quando eu estiver aqui" não é só uma frase, é um jeito de fazer com que as pessoas por quem você é responsável se sintam seguras.
Minha filha é de outra época e lida com outras questões. Pra ela a experiência camponesa das minhas avós é muito distante e não diz nada. Ela é jovem, tudo é urgente pra ela. Morre de raiva de mim por ser tão lento, burro e velho. Gosta de umas cantoras que eu na verdade nem sei quem são. Fica super desconfortável por eu ficar andando de samba canção em casa. Pra ela sou um velho burro que ela ama incondicionalmente. Finge que não, mas ouve meus conselhos, minhas opiniões, e me tem na conta de algo muito melhor que sou na verdade.
Falei de tudo isso para exemplificar o quanto aprendi com as mulheres da minha vida. Desde a zona rural do Vale do Paraíba, passando pelos bairros industriais de Volta Redonda e desembocando no Recife, minha vida sempre foi ligada a mulheres muito fortes e guerreiras, que desafiavam, cada uma a sua maneira, o estereótipo da mulher submissa.
Sou homem. Não tenho qualquer expectativa de saber o que é estar do outro lado. Tenho certeza que jamais entenderei o que é isso. Mas gosto de pensar que ter tido todos esses exemplos dentro de casa me fez alguém que ao menos consegue entender o quando precisa aprender sobre o assunto. Já seria alguma coisa.
Minha avó materna era diferente. Perdeu o marido muito cedo, aos 40 anos. Foi uma monstra, uma guerreira suprema. Nessa situação o espírito camponês teve um efeito muito pragmático. Assim como minha avó paterna não consigo reconhecer nela o retrato que os filhos pintaram de uma mãe muito exigente e dura. Pra mim foi uma avó absolutamente permissiva. Assim como minha outra avó, ela só queria fazer coisas que os netos gostassem. Lindamente se permitia cometer transgressões em todas as regras quando nossas mães não estavam olhando.
(um parêntensis. minhas duas avós não estavam nem aí para o que os filhos queriam para os filhos. queriam mais é avacalhar todas as regras, pois sabiam que isso não tinha importância, e por isso são responsáveis por muitas das melhores lembranças da minha vida)
Minha mãe é diferente. Não apenas por ser mãe. Me teve num momento muito difícil. Mas como diz uma amiga minha ela foi uma leoa. Naquele contexto horroroso, com aquela ditadura de merda ela me fez acreditar, com toda a justiça, que ela nunca deixaria nada acontecer comigo. E não aconteceu mesmo. Ela me ensinou algo muito importante: "ninguém mexe contigo quando eu estiver aqui" não é só uma frase, é um jeito de fazer com que as pessoas por quem você é responsável se sintam seguras.
Minha filha é de outra época e lida com outras questões. Pra ela a experiência camponesa das minhas avós é muito distante e não diz nada. Ela é jovem, tudo é urgente pra ela. Morre de raiva de mim por ser tão lento, burro e velho. Gosta de umas cantoras que eu na verdade nem sei quem são. Fica super desconfortável por eu ficar andando de samba canção em casa. Pra ela sou um velho burro que ela ama incondicionalmente. Finge que não, mas ouve meus conselhos, minhas opiniões, e me tem na conta de algo muito melhor que sou na verdade.
Falei de tudo isso para exemplificar o quanto aprendi com as mulheres da minha vida. Desde a zona rural do Vale do Paraíba, passando pelos bairros industriais de Volta Redonda e desembocando no Recife, minha vida sempre foi ligada a mulheres muito fortes e guerreiras, que desafiavam, cada uma a sua maneira, o estereótipo da mulher submissa.
Sou homem. Não tenho qualquer expectativa de saber o que é estar do outro lado. Tenho certeza que jamais entenderei o que é isso. Mas gosto de pensar que ter tido todos esses exemplos dentro de casa me fez alguém que ao menos consegue entender o quando precisa aprender sobre o assunto. Já seria alguma coisa.
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