domingo, 29 de setembro de 2013

O Brasil visto de fora

Uma coisa extraordinária de sair do Brasil é o deslocamento que isso nos proporciona. Coisas que temos como naturais e imutáveis, encaradas a partir de outra realidade, passam a ser vistas como o que são: construções sociais que existem por nossa opção, e por nossa opção podem ser mudadas quando quisermos. É, a meu ver, a grande vantagem de conhecer culturas diferentes. Não o que se aprende de novidade, mas sim o novo olhar que a experiência proporciona em relação a nós mesmos. Vou escrever um pouco sobre isso nos próximos dias. Começo falando de futebol, mas não estritamente sobre isso. Quem não se interessa pelo assunto pode seguir a leitura sem stress. Vi dois jogos no estádio. Torino X Verona e Torino x Juventus, ambos no Estádio Olímpico de Turim. Jogos fracos. O primeiro, um encontro entre duas equipes da metade da tabela do campeonato italiano. A maioria dos jogadores não teria a menor chance em clubes grandes brasileiros. Teriam que se contentar com times fracos da primeira divisão ou até atuar na série B. Vi jogos na nossa segunda divisão melhores que esse de quarta feira. Hoje vi o clássico Torino x Juventus, um encontro entre um time fraco e outro forte, mas desfalcado de um par de jogadores importantes. Foi melhor que o de quarta, mas fraco. Todo domingo vemos no Brasil jogos melhores do que esse. Há mais. Há torcedores organizados violentos, tal como aqui. A imprensa, então, é um capítulo à parte. Na quarta usei minha credencial de jornalista para ver o jogo da tribuna da imprensa. Os caras literalmente se comportam como torcedores. Na minha frente um radialista várias vezes passou a palavra ao repórter de campo, fechou o microfone e danou a xingar o juiz, algo que nunca tinha visto. Ou seja, nada muito empolgante. Mas a experiência de ver o jogo é completamente diferente. Voce compra ingresso antes, com lugar marcado, não enfrenta fila para entrar, não é incomodado, não paga preços exorbitantes por comida e bebida, pode chegar faltando 1 minuto para começar o jogo e estar sentado quando a bola rola. O estádio não tem nada de espetacular mas é confortável e bem cuidado, o gramado é excelente e o placar eletrônico dá todas as informações necessárias. Em suma, o espetáculo em si é o que temos aqui, ao menos os jogos que vi. Mas a vida do torcedor é mil vezes melhor. E eu me pergunto: é impossível fazer isso aqui? Até onde me dou conta, das coisas que vi no estádio e que são melhores do que temos no Brasil, nenhuma depende de grandes investimentos. Por que não fazemos? Por que nós, torcedores, aceitamos passivamente sermos tão maltratados, apesar de sermos consumidores que financiam o espetáculo? Somos um país mais pobre que a Itália. Não dá para querer que nossos times tenham jogadores como Buffon, Pirlo, Balotelli e outros do tipo. Mas convenhamos: não precisa ser um país de primeiro mundo para organizar decentemente uma partida de futebol e dar conforto ao torcedor, certo?

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Homossexualismo, religião, política e liberdade


Vários amigos, companheiros esquerdistas, compartilharam imagens de duas mulheres apanhando e sendo presas por se beijar num evento promovido por Marcos Feliciano. Qualquer pessoa que me conhece sabe que detesto esse cidadão e acho um absurdo o que houve com as moças. Mas vou dizer uma coisa: elas estavam completamente erradas. Por dois motivos.
O primeiro é teórico. Se queremos viver numa sociedade livre temos de aceitar o pensamento de qualquer pessoa, por pior que ele nos pareça, ao menos que ameace o direito dos outros de ter seu próprio pensamento. E a liberdade religiosa é um dos valores mais caros da democracia. Permitiu que gerações inteiras vivessem suas próprias experiências fora da religião dominante. Permite que seja possível ser ateu, ou professar candomblé, espiritismo ou qualquer outra crença em um país católico como o nosso.
Só que liberdade não pode ser a liberdade de fazer aquilo que a gente acha legal. Tem de ser toda a liberdade para todos. E certamente aquelas duas achariam intolerável que alguém protestasse contra os homossexuais na parada gay. Por que acharam que podiam afrontar a crença alheia em um evento religioso que nada tinha a ver com homossexualismo?
Porque estão cansadas de serem definidas em termos de sua orientação sexual. Ok, tá certo. Compartilho desse sentimento. Também me parece inaceitável que a orientação sexual seja motivo para discriminação. Mas a liberdade inclui o direito de ter ideias que nos parecem imbecis. E aquelas pessoas que estavam naquele evento não estavam lá para fazer nada contra homossexuais. Nada justifica aquela atitude, como nada justifica a ação de pessoas que foram encher o saco do Feliciano num vôo. Ali ele era um cidadão viajando, nada mais. Aquelas pessoas aceitariam que o Jean Wyllys recebesse o mesmo tratamento por expressar o que ele pensa?
Mas há um segundo conjunto de razões, que é político. Quanto mais atacamos Feliciano, mais o engordamos. Temos de fazer essa autocrítica: ele era um parlamentar evangélico como tantos outros. Quem o transformou em ícone não foram os evangélicos. Fomos nós. Demos uma importância que ele não tinha, e o transformamos numa celebridade nacional. Proporcionamos a ele um discurso defensivo que ele não tinha. Quando o trollamos num vôo, quando vamos lá beijar pessoas do mesmo sexo num evento religioso que nada tinha a ver com isso, damos a ele, e a muitos outros, argumentos para se considerarem perseguidos numa ditadura gay. O argumento é absurdo, mas embasado em atitudes nossas. Temos muito a ver com esse monstro, muito mais do que queremos admitir.
Que lutemos contra a discriminação contra orientação sexual. Mas que saibamos como fazer isso. Eventos religiosos não são o espaço para isso, pois ferir o princípio da liberdade religiosa não ajuda em nada. Dar argumentos para eles se mostrarem como vítimas tampouco vai ajudar. Há formas muito mais efetivas de agir. Por exemplo: se indignar com o fato de as paradas gays terem se transformado em eventos comerciais que nem fingem tentar ajudar a causa da igualdade civil. Que tal começarmos por aí?

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A "vitória" petista no Supremo

Na minha modesta opinião, a aceitação, pelo STF, dos embargos infringentes, foi uma enorme derrota para o governo. E vou explicar por que.
Primeiro: a opinião pública já decidiu que os réus são culpados. Gostemos disso ou não, é um fato. Uma eventual absolvição dos envolvidos ajudaria apenas a eles. Se ocorrer, apenas reforçará em muita gente a desconfiança perante as instituições e a certeza de que a impunidade dos poderosos reina no Brasil. Quem acha que o governo petista tem a corrupção como marca principal não mudará um milímetro de opinião caso um novo julgamento tenha resultado diferente.
Segundo: um novo julgamento é tudo o que a oposição quer. Uma vez que a opinião pública já deu seu veredito, o ideal para o lulo-petismo seria a resolução rápida para a questão, para que o tema saia da pauta o quanto antes. Para a oposição, um novo julgamento é a chance de manter o mensalão no centro do debate. Um novo julgamento é uma oportunidade extra para a oposição não precisar expressar seus projetos para o país, não ter de responder pergunta embaraçosas sobre privatizações e navegar alegremente na indignação dos "cansados". Para a oposição isso é ir para o céu sem precisar morrer.
Terceiro: para a galera da indignação seletiva (aqueles que só odeiam a corrupção do PT) é absolutamente perfeito. Hoje farão trilhões de posts nas redes sociais histéricos com a decisão, como se ela fosse sinônimo de absolvição. Passarão meses mostrando como são politizados e engajados protestando contra a impunidade. E quando houver o novo julgamento (que dificilmente absolverá alguém, já que é o mesmo caso com os mesmos juízes), exultarão de alegria e mostrarão seu interesse pela política festejando a nova condenação. Vai ser difícil explicar como é possível que tenham achado o Supremo o máximo quando condenou os réus, ridículo quando aceitou os embargos infringentes e maravilhoso de novo ao condenar em caráter definitivo. Mas quem liga para detalhes?
O governo não ganhou nada com essa decisão, nem o PT. Quem ganhou foram os réus, a oposição e os indignados apolíticos. Para eles, um futuro brilhante se desenha

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Por que não teremos um golpe


A crescente radicalização da política brasileira (e latinoamericana), com dois lados se odiando cada dia mais, tem levado muita gente a temer a possibilidade de mais um golpe de estado. Entendo a preocupação, já que somos um continente com um longo histórico de instabilidade política. Mas não vejo nenhum motivo para que algo assim aconteça.
Nesse ponto, a história brasileira se assemelha à dos vizinhos. Após a enorme instabilidade do século XIX, marcado pela consolidação dos estados nacionais, no século XX a grande maioria das quebras da normalidade democrática se deram em dois momentos muito específicos: a ascensão do autoritarismo anti-liberal no entre guerras (um fenômeno mundial) e o contexto da guerra fria, em que os EUA patrocinavam ditaduras mundo afora para barrar o comunismo.
Nesses contextos havia elementos que não existem hoje. Nos anos 30/40 havia o descrédito generalizado no liberalismo, e a democracia passou a ser vista como algo pouco relevante, em um momento em que se salvar da catastrófica crise econômica era o mais importante. Não há nada parecido hoje.
A geração seguinte de golpes em massa tinha outra característica. Os EUA estavam dispostos a tolerar de tudo para impedir a repetição da Revolução Cubana em seu quintal. Os militares, fortemente ideologizados, tinham um projeto de nação, que não se resumia a bloquear o comunismo. No caso brasileiro, a manutenção do nacional-desenvolvimentismo, mas com "segurança" (leia-se: sem sindicatos, críticas, oposição, etc.)
Não é o caso atual. A América Latina não é o foco das preocupações norte-americanas, e na verdade os governantes de lá estão felizes de entregar ao Brasil o gerenciamento da geopolítica regional, para não ter de lidar com isso. Os militares não se vêem nem são vistos pela sociedade como atores políticos, e não têm nada parecido com um projeto para o país.
E há mais. Por mais que seja agressiva com o governo, a oposição brasileira não tem nada de golpista. Por mais que os defensores mais histéricos do lulo-petismo vejam golpismo na oposição brasileira, ninguém em sã consciência pode imaginar Marina Silva ou Aécio Neves apoiando uma quebra da normalidade democrática. Isso simplesmente não vai acontecer.
Existe sim, uma oposição raivosa. Mas mesmo sendo eleitor do governo petista, tenho de reconhecer: não é esse o papel dela? Não era isso o que fazíamos nos anos 90? Tenhamos autocrítica: criticávamos inclusive as coisas boas do governo FHC, pois estávamos na oposição. Não podemos reclamar de eles fazerem isso hoje em dia.
Sobram os protestos, dos indignados, cansados, moralistas, e sei lá o que mais. Mas ali não há nada para embasar um golpe. Não há armas, projeto político (a agenda é puramente negativa), ideologia ou políticos que verbalizem a causa (que também não existe). Os democratas podem dormir em paz. Um golpe simplesmente não é uma possibilidade atualmente.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Por que todo latino americano deveria amar Victor Jara


Victor Jara foi assassinado há 40 anos. Não era um guerrilheiro nem um representante de uma ditadura comunista. Era um músico que apoiava um governo eleito nas urnas. Morto cruelmente por uma ditadura.
A morte cruel de Victor Jara (dezenas de tiros, dedos quebrados, etc.) nos coloca diante de um dilema. Uma encruzilhada que a América Latina vive, e não é de hoje.
De um lado estão os que há 200 anos estão do lado vencedor. A narrativa deles é simples e direta. Os chilenos foram imbecis por terem votado em Allende, o continente é formado por retardados que insistem em votar em gente que não sabe o que faz, mas graças a deus existem os EUA e os militarem para reestabelecer a racionalidade do universo.
Do outro lado estão os que acham que os latinoamericanos têm o direito de escolher seus governantes. Gente que acha que o resultado das urnas deve ser respeitado. Esse era o dilema naquele tempo, e é o mesmo de hoje.
Hoje vemos por aí gente que está muito gorda, graças ao dinheiro da elite. Para eles, que apoiaram todas as ditaduras do continente, governar para os mais necessitados é ditadura. É ser insuportável. É ser populista e demagógico. Do alto de seus escritórios com ar condicionado insistem que ajudar os que mais precisam é uma forma de demagogia.
Do outro lado, está a América Latina profunda. Aquela que nunca viu médico, professor ou dinheiro antes dos governos que estão aí. É essa América Latina que elege os governantes do continente. Cientes de que se defrontaram com o primeiro governo que reconheceu sua existência e fez algo por eles.
Dizem que eles são burros, ignorantes e apolíticos. Como se, caso isso fosse verdade, os que governaram o continente nos últimos 200 anos nada tivessem com isso. Como se essa gente toda não tivesse nenhuma responsabilidade nesse cenário. Como se eles não tivessem tido todo o tempo e todos os meios para mudar isso, sem terem feito nada, por escolha deles.
Nas cidades, os favorecidos esperneiam de raiva nas redes sociais. Mas na América Latina profunda, esses tidos como ladrões demagogos são heróis. Isso é a melhor parte: esses abandonados pelo Estado só existem porque essa gente nunca ligou para eles. E agora os mantém bem longe do poder. Victor Jara acharia o máximo

domingo, 15 de setembro de 2013

Sobre o julgamento do mensalão: um "post-pergunta"


Acho que a maioria dos que me lêem está cansada de saber disso, mas não custa lembrar: sou bacharel, mestre e doutor em história. Não tenho nenhuma formação ou experiência jurídica. Tudo que segue abaixo está condicionado a isso.
Por outro lado, tenho mais de 20 anos de vida acadêmica, e isso me ensinou algo muito importante: é essencial ter toda a cautela do mundo em relação a conclusões definitivas, sobretudo se se trata de leigos na matéria (no caso, eu estou entre eles) guiados por sentimentos, muito mais do que pelo conhecimento.
Este post é motivado pelo seguinte. Nos últimos dias meu facebook foi inundado por posts de pessoas (várias das quais merecem toda a consideração do universo, pois são pessoas maravilhosas e tenho certeza de que são bem intencionadas) que estão à beira de um ataque nervoso com o julgamento que se desenrola no STF.
A avaliação dessas pessoas é que o STF está prestes a anular a condenação dos réus do mensalão, em mais uma prova irrefutável de que a corrupção neste país é livre, e que os malditos políticos têm salvo-conduto para nos roubar à vontade.
Leigo que sou, procurei me informar sobre o assunto. E pelo que li, não é nada disso que está acontecendo. A questão é que há legislação garantindo o direito a um novo julgamento para aqueles que tiveram ao menos quatro votos a favor no STF. E que se trata justamente de decidir se essa legislação ainda é vigente. Se for, eles têm direito a um novo julgamento, garantido por lei. Se não, o julgamento está mantido.
Não sou criança. Claro que sei que interpretação da lei é algo subjetivo, que envolve muitas coisas, que incluem a convicção política. Mas isso não vale apenas para esse caso particular, vale para qualquer julgamento, inclusive o do mensalão, que essas mesmas pessoas agora indignadas tanto festejaram.
Posso estar enganado, mas até onde sei, um dos pressupostos da existência dos três poderes é justamente a existência de um deles (o judiciário), formado por pessoas cujos empregos não dependem de votos nem das flutuações do humor da opinião pública. Nesse sentido, estritamente institucional, a condenação de réus que integraram o governo mais popular da história do país foi uma vitória. Uma eventual decisão de que alguns dos réus têm direito legal a um novo julgamento, no ápice da histeria moralista desencadeada pelos protestos teria o mesmo valor. Reafirmando: falo em termos teóricos, institucionais, não falo do mérito, do qual sequer tenho elementos para opinar.
Melhor ficarmos calmos. A verdade é que ninguém será declarado culpado ou inocente pelo voto de Celso de Mello. O que será decidido é se a lei dá ou não o direito a um novo julgamento a alguns desses réus. A complexidade da questão, do ponto de vista jurídico, é suficientemente evidenciada pela votação apertada. Se nem os especialistas em direito da mais alta corte jurídica do país conseguem chegar vagamente perto de uma unanimidade, por que nós, leigos ignorantes, poderíamos ter tanta certeza sobre qual seria a decisão correta?
Já carregamos um fardo pesado demais. Somos uma sociedade corrupta, que elege políticos corruptos e tolera a impunidade, a despeito da gritaria hipócrita (frequentemente quem condena o político ladrão é a mesma pessoa que sonega imposto ou dá a graninha pra ser liberado pelo guarda). Já é insuportável demais.
Se decidirem que não vai haver um novo julgamento, nada muda. Se decidirem que vai haver, nada impede que a decisão seja a mesma, até porque os juízes serão os mesmos. Essa decisão não tem essa importância toda. Não há razão para tanto nervosismo.
Mas é o que disse: sou leigo na matéria. Se eu estiver errado, me avisem.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Chile, 40 anos depois


Há 40 anos o governo democrático, eleito e constitucional, comandado por Salvador Allende, era derrubado por um golpe militar liderado por Augusto Pinochet. Um fato tão repleto de significados que não há post que dê conta do assunto.
Para começar, não há dúvidas de que dentre todos os golpes militares que a América Latina conheceu naqueles anos, nenhum doeu mais do que o de 11 de setembro de 1973. Até onde sei, Allende foi o único humano da história universal a chegar ao poder de forma democrática propondo levar seu país ao socialismo. Assim, o Chile foi o único país a ir as urnas e eleger um chefe de Estado com uma proposta clara e inequivocamente marxista. O que dá muito o que pensar.
Ignorantes e mal intencionados adoram repetir a seguinte frase: "no capitalismo é possível ser socialista. mas no socialismo é impossível ser capitalista". MENTIRA. O capitalismo historicamente investiu tremendamente em impedir a auto-determinação dos povos quando ela ameaçava o sistema econômico dominante. Allende foi eleito democraticamente. O governo venceu de forma inquestionável as eleições parlamentares de 1973. O presidente chileno foi derrubado unicamente por comandar um governo ideologicamente socialista num hemisfério capitalista. Uma lembrança de que o capitalismo jamais tolerou oposição. Só passou a aceitar os socialistas quando o regime que defendiam deixou de ser uma possibilidade real. Quando ameaçado, reagia com a mesma brutalidade e intolerância ditatoriais que, em seu discurso, são exclusividade de Stalin, Mao e Fidel.
Há mais. A derrubada de Allende levou a um extremo imensurável a fórmula que sempre garantiu a manutenção do poder nas mãos da elite tradicional latino-americana. A princípio, não houve muita novidade: militares, burgueses, fazendeiros, imprensa e religiosos, fartamente financiados pelos EUA, garantindo que a massa despossuída seguisse na miséria. De fato foi isso mesmo. Mas em um nível que não se vê em outros episódios do tipo. É possível argumentar que parte significativa das sociedades brasileira e argentina quisessem o fim dos governos Goulart e Isabelita. Mas é indefensável a ideia de que a queda de Allende tivesse respaldo popular. Foi, mais claramente do que qualquer um, um golpe dos privilegiados contra a vontade popular. E foi apenas o ponto final de uma trajetória de sabotagem e jogo sujo. E nesse caso os EUA simplesmente dispensaram qualquer formalidade pseudo-democrática: sua marinha estava estacionada no limite das águas territoriais chilenas. Se algo desse errado, eles invadiriam o país e resolveriam o problema rapidamente.
Mas talvez o mais doloroso de tudo tenha sido o caráter simbólico do golpe. O Brasil era uma ditadura há 9 anos. A Argentina tentava retomar a democracia, mas se mantinha instável há décadas. Até o Uruguai, talvez o maior bastião da democracia sul-americana, havia caído nas mãos de uma ditadura. Até 11 de setembro de 1973 o Chile era a ultima barreira. Ainda melhor: uma barreira construída pelo seu povo, principalmente os mais pobres e necessitados. Quando essa barreira caiu, nada restou. Há 40 anos, a América do Sul entrava de forma indiscutível no mundo das trevas. Há 40 anos atrás acabava toda a esperança de mudar a triste realidade do nosso continente. A esperança saiu de campo, para só retornar muitos anos depois.


domingo, 8 de setembro de 2013

Conhecendo o Brasil

No último fim de semana conheci o interior de Pernambuco pela primeira vez. E conheci com força: passei o fim de semana sem TV a cabo, internet, celular. Aqui vai o que concluí dessa experiência. Nada que eu não pensasse antes. Mas ver ao vivo, sentir na pele, vivenciar, é outra coisa.
Há quem veja essa gente como preguiçosa e indolente. Pessoas que fazem filhos a vontade para se esbaldarem no bolsa família. Imbecis analfabetos que votam no PT pela falta de estudos. São burros, não tem capacidade de pensar, e tomam decisões baseados em instintos. Em suma: animais domesticados.
Não foi nada disso que eu vi. Me deparei com pessoas que eu morro de orgulho de serem meus compatriotas. Gente que trabalha muito, mesmo enfrentando todas as adversidades que se possa imaginar. No interior do nordeste chove pouco, a terra não é boa e o Estado nunca ajudou. Celular não tem sinal., não há fornecimento de água, bancos nem sonham em chegar perto.Viver em lugares assim não é fácil. Estudar é muito dificil, não há oportunidade de se desenvolver profissionalmente.
Passei a ter mais ódio do que nunca de quem vive em cidade grande, e no conforto do ar condicionado, e despreza essa gente. Para eles, dificuldade é não poder viajar para onde quer nas férias. Quando não conseguem comprar suas passagens para ir desfrutar a Europa culpam os imbecis do interior, os idiotas que se vendem por um bolsa familia. Detestam pagar impostos. Acham que sustentam preguiçosos.
Imagine que voce vive no interior do nordeste. Que gasta uma hora para andar alguns quilometros, pois as estradas são horrorosas. Sem ter água encanada em casa. Falar em celular é um sonho. O Estado nunca fez nada de bom para você. O pouco que você tem, foi conquistado na raça.
Bolsa família, Vale Gás. Cisternas, Luz Para todos. Para você, privilegiado, pode ser esmola que compra voto. Para os beneficiados, é a diferença entre a vida e a morte. Caros privilegiados, vocês nunca vão entender nem uma palavra deste post.
Mas quem mora no interior do nordeste sabe muito bem. Grande abraço ao Seu João e a Dona Severina. Vocês me deram a melhor aula sobre o Brasil. E nem desconfiam disso. E quem acha que nordestinos votam no PT no estilo voto de cabresto nunca saberão que vocês existem. Azar deles.
PS: Relendo o post me dei conta de uma generalização indevida. Claro que nem todos os que vivem no interior nordestino têm a experiencia de vida à qual me referi. Há experiências bem diferentes. Quis me referir a um tipo de estilo de vida, infelizmente muito comum.


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Brasil 191


"Vocês brasileiros são muito engraçados. Acham que são os melhores ou os piores do mundo em tudo. Não há meio termo". Assim me falava um grande amigo, nascido fora daqui, mas morando por essas terras há muitos anos. O pior é que ele tinha toda a razão: somos assim mesmo.
Somos os mais simpáticos, os mais animados, os mais divertidos, temos o melhor futebol, a melhor música, o melhor carnaval, a melhor natureza, as praias mais lindas, as mulheres mais perfeitas, a maior diversidade, a melhor comida. Também temos a pior elite, a maior desigualdade, a classe média mais fascista, a pior educação, e assim vai. É um tipo muito particular de megalomania. Não somos os 33os, os 78os ou os 112os em nada. Somos os melhores ou os piores.
Isso vale, claro, para nossa Independência. Em nossa cabeça, todos os países do planeta que um dia foram colônias se libertaram após uma genuína e heróica luta popular, enquanto nós recorremos a um pacífico e chinfrim arranjo interno da família real portuguesa. Pior ainda, isso ainda seria uma espécie de pecado original. Olhamos para esse fato como se ali estivesse contido tudo o que viria a acontecer depois. A origem de tudo o que deu errado depois estaria naquele arranjo entre a alta elite, sem nenhuma participação popular, como mostra o mítico quadro de Pedro Américo.
Infelizmente nossa história vive uma fase em que impera o mais ridículo revisionismo, em que livros são escritos para o grande público tentando mostrar como a história do Brasil é ridícula e absurda. Escritos por historiadores e jornalistas de direita, esses livros vendem horrores, contando uma história descontextualizada, que só tem como objetivo vender a ideia de que temos a classe política mais patética que já existiu na humanidade. O que é uma forma de bater indiretamente no atual governo, claro.
Se esse revisionismo estivesse genuinamente interessado em rever pra valer a história do Brasil, deveria se voltar para a Independência. Se fizessem isso, notariam que a grande especificidade da nossa independência foi uma só: ao contrário de todas as outras, que cultuam até hoje uma memória heroica e combativa dos libertadores, nós sempre fizemos questão de apresentar a nossa como isenta de conflitos. Em suma, a diferença é essencialmente no campo da memória, mais que na história.
A verdade é que muito sangue rolou no nosso processo de independência. Ao contrário do que diz a lenda, a coisa não se resumiu a uma espada no ar e um grito às margens do Ipiranga. Dali para frente houve muita luta, que só terminaria em julho seguinte. Se quiséssemos ser justos, deveríamos comemorar nossa data magna em 2 de julho, quando os portugueses foram expulsos da Bahia. Mas aí teríamos de contar uma história em que negros, escravos e pobres deram sua vida pela luta libertadora, o que, francamente, nunca interessou a muita gente. Sempre pareceu mais seguro aos dominantes mostrar um processo em que o protagonismo coube exclusivamente a eles, enquanto o povo ficava ali no cantinho, olhando aterrorizado.
Mas não é só isso. No resto do continente, os governantes do século XIX utilizavam com gosto a memória das lutas pela independência como forma de se legitimar. Aqui isso causaria um mal-estar: éramos um império governado primeiro pelo filho e depois pelo neto do rei português quando da separação. Depois que se proclamou a república então, nem pensar em celebrar uma luta liderada por um imperador.
Deixemos de viralatismo. Nossa independência foi na mesma linha das outras. Liderada pela elite local, desejosa de se auto-governar, e com muito sangue subalterno derramando. Não há vergonha nisso. É o procedimento padrão, infelizmente. Não é a história mais perfeita do mundo, mas não é pior que a de ninguém. E nem melhor também. É nossa história. Celebremos o 7 de setembro. Sem culpa, sem senso de superioridade, e muito menos de viralatismo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A Surpresa em relação a Obama se justifica?


Vejo um crescente aborrecimento mundial em relação à política externa do presidente Obama. Claro, me refiro aos setores progressistas. Guantánamo está lá como sempre, violando os mais básicos direitos humanos, dissidentes que expõem as entranhas do sistema são caçados mundo afora, e estamos perto de ver a invasão de um país que nada fez contra os EUA. O tipo de coisa que se esperaria de Bush, mas não de Obama.
Ou será que deveríamos esperar isso mesmo? Analisemos aquelas que me parecem ser os fundamentos da ideia de que a política externa de Obama seria diferente.
1) Obama é democrata.
De fato democratas são mais progressistas que republicanos, e os partidos possuem divergências históricas em inúmeras questões. Democratas sobrevivem dos votos de operários, mulheres, intelectuais e minorias. Republicanos se refastelam no voto de fazendeiros, empresários, conservadores, religiosos e racistas. Ou seja, são partidos diferentes sim. Mas isso necessariamente levaria a uma política externa diferente?
A história não dá suporte a essa esperança. Presidências democratas se mostram historicamente intervencionistas e patrocinadoras de brutalidades e quebras da democracia. Harry Truman foi o único ser humano na história humana a ordenar o lançamento de bombas atômicas em alvos humanos. John Kennedy tentou invadir Cuba, criou o embargo contra o país e lançou o mundo na crise dos mísseis, que por um triz não chegou à 3a guerra. Lyndon Johnson patrocinou diversas quebras democráticas na América Latina, como as derrubadas dos presidentes João Goulart (Brasil/64) e Arturo Illia (Argentina/66).
2) OK, os democratas não são essa maravilha em política externa, mas esperava-se mais de Obama.
Esperava-se mais por que, exatamente? Porque Obama era jovem, negro, sorridente e carismático, prometendo ser a renovação que os EUA precisavam após os pavorosos anos Bush. Aqueles anos foram miseráveis para qualquer ser pensante, que nós respiramos aliviados com a chegada de Obama. E exatamente aí me parece estar o ponto para refletir.
Será viável esperar que algum presidente norte-americano (qualquer um) não seja intervencionista, não se meta onde não foi chamado, que, em suma, respeite sempre a soberania dos demais países?
Pra começar, deixemos de ingenuidade. Todos os países se metem onde podem. O Brasil se mete nos assuntos internos dos países vizinhos sempre que acredita ser conveniente. Ajudamos a derrubar, restaurar e colocar no poder governantes na nossa vizinhança um incontável número de vezes. No mundo real, essa é a lógica. E os EUA são a maior potência mundial. Então sempre haverá a tendência a intervir, independendo do nome e filiação partidária do governante de plantão.
E qualquer pessoa medianamente bem informada sabe: a cultura política norte-americana inclui a crença de que eles são os responsáveis supremos para garantir a democracia e a liberdade no mundo. Além do que, é um país com interesses econômicos espalhados pelo globo e a maior força militar do planeta.
Tendo em vista isso tudo, me parece que é muita ingenuidade esperar que um governante norte-americano não vá fazer coisas como as que Obama faz. A questão não é ele. A questão é entender que no mundo real as coisas funcionam sob uma lógica muito diferente daquela que gostaríamos.

domingo, 1 de setembro de 2013

Sobre jornais e pedidos de desculpa


Causou um certo furor nas redes sociais o fato de o jornal O Globo ter publicado um pedido de desculpas por seu apoio ao golpe militar de 1964. Há alguns anos a Folha de São Paulo fez algo bem parecido. O texto é histórico, evidente. Mas certamente não por mostrar a maior rede de comunicação do país arrependida do que fez.
Pois é óbvio que não está arrependida de nada. Basta ler o texto para perceber isso. Há uma "contextualização" que visa minimizar o apoio aos militares, com críticas a Jango e a lembrança de que Roberto Marinho protegia jornalistas de esquerda, para dar a imagem de que o grupo de comunicação de alguma forma manteve a isenção. E há uma inacreditável pirotecnia que tenta convencer o leitor de que o jornal manteve seu compromisso com a legalidade e a democracia. Fica a pergunta: onde está o compromisso com a legalidade e a democracia quando se apoia a derrubada de um governo eleito e a instauração de uma ditadura que matou, prendeu e torturou quem quis, tudo com o apoio explícito da Globo?
Mas o pior de tudo, o que evidencia a farsa definitivamente, é a tentativa de caracterizar o apoio ao golpe como um leve escorregão em uma longa trajetória democrática. A "prova" seria a postura crítica do jornal em relação ao Estado Novo. Nem uma palavra sobre o apoio ao golpismo que levou Vargas ao suicídio. Ou sobre a tentativa de roubar as eleições de 1982, tirando a vitória de Leonel Brizola, eleito nas urnas pela população. Sobre a manipulação que fingia que não havia comicios pelo país afora, em 1984, pedindo eleições diretas para presidente.
Tampouco se mencionou o fato de as Organizações Globo terem engordado monumentalmente com a ditadura. Em 1964 Roberto Marinho possuía um jornal e uma rádio, salvo engano meu. Ambos tinham penetração na cidade do Rio, mas longe de liderar seus segmentos. Quando a ditadura acaba, a empresa possui dezenas de veículos em todos os seguimentos, a maioria líder de audiência. O principal, a TV Globo, iniciada com recursos estrangeiros, algo que fere a lei brasileira, com apoio dos militares. Veja só que engraçado: quando acontece o golpe militar, as Organizações Globo tinham quase 40 anos de vida. Em 20 de ditadura multiplicaram infinitamente sua abrangência e patrimônio. Não é engraçado? Bem, a empresa ter se beneficiado imensamente da ditadura não foi mencionado.
Então é evidente que o pedido de desculpas não mostra nenhum arrependimento. Até porque o jornal seguiu envolvido na tentativa de demolir os políticos que não lhe agradam do ponto de vista ideológico e não lhe tragam ganho econômico. Faz isso até hoje. Não há arrependimento de nada, ou alguem duvida que um golpe contra um governo petista seria apoiado por eles do mesmo jeito? (calma, claro que isso nao vai acontecer, mas se acontecesse...)
A grande notícia não é o arrependimento que não existiu. O texto é histórico porque mostra um órgão essencial do maior grupo de comunicação do Brasil, que sempre fez o que quis, ser obrigado, a evidente contragosto, a dar uma satisfação à sociedade. Isso sim é algo que precisamos tentar entender melhor.
É possível que o jornal tenha se sentido encurralado. Não pelos protestos em sua porta. Acho que isso foi só o empurrão final. Acho que a coisa é mais complexa. Uma coisa é voce apoiar governos ditatoriais ou atacar políticos polêmicos, com Brizola. Outra, bem diferente, é ser contra o governo mais popular da história, e ainda por cima concorrendo com internet. Ou seja, não adianta eles mentirem como sempre, pois sempre poderão ser desmentidos nas redes sociais.
Além disso, existe a crise mundial dos jornais, que sofrem com a concorrência da internet. Some-se tudo isso aos protestos e pronto. Vemos um periódico do maior grupo de comunicação do país ser obrigado a dizer coisas que não queria, para tentar salvar algo de sua influência. Para quem, como eu, cresceu vendo as Organizações Globo, mentirem impunemente para defender seus interesses, o texto é histórico por esse motivo.

PS: para quem não leu, o pedido de desculpas se encontra no link http://oglobo.globo.com/pais/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604