quarta-feira, 1 de abril de 2015

Quando o racismo alheio escancara o nosso

Ontem jogavam Corinthians x Danubio, do Uruguai, pela Libertadores. Rolava a bola em Itaquera, a partida seguia 0 a 0 quando aconteceu o lance que origina tudo o que virá a seguir. Em um lance confuso, o uruguaio Cristian González chamou o corinthiano Elias de "macaco". Uma atitude intolerável, abjeta, inominável, que segundo nossas leis é caso de cadeia. Salvo algum saudosista da escravidão, creio que isso é ponto pacífico. Mas o que veio depois merece reflexão.

Por motivos mais do que compreensíveis, Elias ficou transtornado, tenso, descontrolado. Eu nunca o havia visto daquele jeito. E fiquei feliz quando ele criou a jogada do segundo gol do Corinthians, vibrando com toda a emoção. Nitidamente encarou aquilo como um "quem é o macaco agora?". No intervalo, interpelado pelos repórteres se teria havido o comentário racista, respondeu: "Disse, mas eu preciso me concentrar na partida". Seus colegas de time confirmaram o que houve.

Do meu ponto de vista, Elias foi absolutamente digno. Ficou revoltado com o que ouviu, deixou isso absolutamente claro, aos berros e gestos. Se encheu de brios e se vingou da maneira que sabe: dentro de campo. Se vingou da maneira que conhece: com a bola nos pés. Possivelmente eu e você gostaríamos que não fosse assim. Que não houvesse xingamento. E se houvesse, que tivesse terminado em cadeia. Mas Elias se vingou da maneira que sabe: em campo.

Mas o pior ainda viria. Foi o jogo terminar e o jornalista Luis Augusto Simon, do UOL, postou numa rede social: "jogadores negros precisam aprender com jornalistas brancos como protestar contra o racismo". Deixando claro que o jornalista em questão é de esquerda e tem uma carreira admirável. Mas puxa vida, isso só piora a situação. Sério que ainda vivemos em um mundo em que os privilegiados se consideram na posição de dar aulas aos subalternos sobre como se comportar perante situações de discriminação? Ainda vivemos num mundo em que os dominantes simpáticos à causa dos privilegiados sentam no alto de uma montanha de condescendência perante os pobres e ignorantes excluídos e querem dar a eles lições de comportamento político?

E nem vamos entrar muito na questão dos "jornalistas brancos" como líderes da luta anti racista. "Jornalista branco" é Ali Kamel, que escreve livro dizendo que não existe racismo no Brasil. "Jornalista branco" é um termo que engloba um monte de gente que é contra as cotas, que diz que como o Brasil não teve apartheid não existe racismo, etc. (também tem muita gente boa, claro, cito os piores exemplos apenas para mostrar o despropósito de pensar na categoria "jornalistas brancos" como os verdadeiros defensores da causa negra). E como o Menon chegou a conclusão de que, apesar de esse monte de lixo racista escrito pelos "jornalistas brancos" esse grupo é a ponta de lança da luta contra o racismo brasileiro, o espelho em que os negros devem se mirar?

Mas não ficou por aí. O jogo seguiu, o Corinthians ganhou facilmente, e no balanço da partida o comentarista da Fox Sports se referiu ao episódio de racismo como "uma deselegancia". Sim, um branco chamando um negro de macaco é uma "deselegância". Nome do comentarista: Paulo Vinícius Coelho, um dos mais respeitados jornalistas esportivos brasileiros, e com toda a razão ("jornalista branco", como diria o Menon, aquele grupo que sabe melhor que os negros o que os negros devem fazer). O narrador o interrompeu e disse "deselegância não, isso é racismo, que é crime", no que fez muitíssimo bem.

Talvez se possa ter a condescendência com o comentarista em questão. Mas depois do jogo ele insistiu em usar o termo "raça negra", algo que caiu em descrédito há décadas. Dizer que brancos e negros são "raças" é como dizer que heterossexual e homossexual são "opções sexuais", algo absolutamente inaceitável. Palavras que seguem insistindo com a condescendência com a violência dos opressores sobre os oprimidos.

Em suma, Elias fez o que acreditava ser sua parte. Se indignou, protestou, lutou, deu o troco. Certamente saiu de campo com ódio, mas sabendo que tinha lutado com as armas que a sociedade lhe deu. E foi patrulhado, criticado, avacalhado, por gente que não faz idéia do que é sentir o preconceito na pele. Da parte de gente que olha bem de longe e acha que sabe o que é uma vida de subalternidade a ponto de querer ensinar a essas pessoas como reagir em situações assim.

E ao fim disso tudo todos fomos dormir em paz. Os jogos terminaram, as ofensas racistas serão esquecidas novamente, os "jornalistas brancos" seguirão considerando que têm o papel pedagógico de ensinar aos negros o que fazer. Mais uma oportunidade se perdeu. E vamos morrendo lentamente.

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