Nos últimos dias nas redes sociais (ao menos no meu caso, principalmente no facebook) muitas mulheres usaram a hastag #meuamigosecreto para iniciar frases em que lembravam histórias, experiências de machismo, misoginia, etc. Ao menos que eu tenha notado, em alguns casos eram experiências específicas, em outros estavam mais para condensados de todo um conjunto de vivências ligadas ao tema.
Gosto muito de iniciativas deste tipo. Elas abrem um espaço extra para que mulheres possam compartilhar essas situações. Suponho que deve existir muita gente que não tinha coragem de se posicionar mas em situações como essa se sentiu mais forte ao perceber que era parte de uma coletividade. Mas também é muito boa para que os homens tenham um entendimento um pouquinho melhor do que é a experiência concreta de ser mulher, algo que jamais teremos, por motivos óbvios. Sentir empatia é necessário, mas não é a mesma coisa que viver na pele, e nunca vai ser.
Mais aí começam os artifícios que de mil formas diferentes tentam corroer a luta. Uma que vi algumas vezes foi a chatura do coitadismo. Vi vários caras numa assim: "#meuamigosecreto é mulher, feminista mas fica generalizando como se todos os homens do mundo fossem misóginos e estupradores". Bem, pra começar o grau de egoísmo de quem faz isso é inacreditável. A pessoa acha que a campanha é para atacar os homens. Caras, acordem: feminismo não é sobre homens. É sobre as mulheres. Não importa o que vocês ouviram da mamãe, vocês não são o centro do universo. Aceitem. Aí o cara vem "ay o feminismo não devia ser desse jeito porque aí eu fico magoado e histérico". Uma campanha para dar voz as mulheres sobre a desigualdade de gênero vira uma campanha mundial para machucar o coração de um pobre coitado.
Claro que choca ler certas postagens falando como se todo homem fosse um estuprador em potencial. Mas meus pobres amiguinhos coitados: aproveitem a campanha e leiam com atenção o que elas estão contando. Só que as histórias que eu li quase sem exceção não são fatos isolados. São coisas que elas vivem diariamente, em todos os lugares, não há pra onde escapar. O que inclui o medo do estupro. Pode ser que a pessoa que postou isso inclusive tenha sofrido algum tipo de abuso, algo mais comum do que se possa imaginar. Quem pode saber o que levou essa pessoa a dizer isso? Que homem sabe que tipo de experiência pode construir uma visão dessas? Mais importante que tudo, o que faz do mundo um lugar melhor: 1) uma mulher berrar para o mundo uma mágoa que tem e tentar lidar melhor com ela enquanto nós nos chocamos num primeiro momento mas sabemos que nunca fizemos nada com ela e não levamos para o lado pessoal; 2) a mulher continuar sofrendo em silêncio para não machucar o coração de quem não consegue se deslocar um centímetro para entender o outro?
Um outro ponto mais sutil mas que vai na mesma direção: homens (real ou supostamente) aliados do feminismo que começam a postar coisas tipo "#meuamigosecreto é um vizinho que paga de moralista mas estuprou as filhas", sei lá, algo assim. Quando vejo isso penso em particular nas minhas amigas historiadoras. Além da experiência concreta de ser mulher num mundo machista, elas ainda tem o adicional de saber perfeitamente bem o quanto homens sempre falaram em nome das mulheres. Aí depois de décadas de luta a coisa melhora (ainda está longe do ideal, mas melhorou), e quando a pessoa abre sua rede social vê um bando de homens pretendendo falar em nome das mulheres em 2015.
CARAS, AS MULHERES SABEM FALAR. Elas não precisam que falemos por elas. Aliás a campanha tem justamente a ver com isso. Com mulheres falando do que vivem. Assumindo o protagonismo. O nosso papel é apoiar, aplaudir e PRINCIPALMENTE ouvir com atenção o que elas têm a dizer para tentar melhorar nosso comportamento. Nossa função aqui não é falarmos como se fossemos uma delas. Isso foi feito por MILÊNIOS e ainda é feito. Parem de tentar roubar a fala delas. Apenas parem.
quarta-feira, 25 de novembro de 2015
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
Por que precisamos do dia da consciência negra
Quem conhece alguma coisa sobre meu trabalho acadêmico sabe a importância que o tema do racismo tem para mim. Não é dificil entender por que. Cresci numa cidade com muitos negros, tive muitos amigos negros a vida toda. Mas nasci em 1972. Fui criado em um mundo em que se achava que fazer piada racista era normal. E quando falo "piada racista" estou falando em coisas absolutamente escancaradas tipo "por que o mundo é redondo? para os pretos não cagarem nos cantinhos". Meus amigos negros de infância tinham apelidos como "sombra", "nublado", etc. Cansei, mas cansei, de chamar gente de macaco e ver outros fazendo o mesmo. Ao mesmo tempo dizíamos que não havia racismo, que tudo isso era brincadeira e tal.
Na Unicamp ouvi, em meados dos anos 90, um professor, historiador bem famoso, falar assim: "ah, gente, disciplinar negro não dá, né?". Veja o quão recente é o racismo aberto em qualquer lugar. Pra quem não sabe: a Unicamp é referência nacional na área de escravidão, talvez seja a grande especialidade daquele grupo de professores. E há 20 anos se podia ouvir isso de um autor nacionalmente reconhecido perante a complacência de quase toda a turma, inclusive eu. Esse foi o mundo em que me criei. Então não tem essa de "tenho amigos negros" não. Fui criado num mundo extremamente racista. Querer dizer que fiquei imune à isso seria me considerar alguém acima do mundo em que vive.
Sei que há gente de bom coração que acredita genuinamente que não é racista. As entendo, mas infelizmente elas estão erradas. Ter amigos negros e amar a todos não quer dizer que você não é racista. O cara que mata a esposa pode amar a mãe, a irmã, etc. e nem por isso deixa de ser machista. Possivelmente na cabeça dele ele ame até a esposa que matou. Tem pesquisa inclusive mostrando que o racismo é particularmente violento em familias em que coexistem brancos e negros. Um ponto em que a militância negra tem muita razão é justamente em denunciar o caráter "discreto" do nosso racismo. Tem uma pesquisa que mostra que a imensa maioria dos brasileiros acredita que há racismo no país mas não se julgam racistas. Racista sempre é o outro.
Justamente por isso não acho que o alvo das campanhas devam ser essa facção lunática de religiosos que sai por ai invadindo terreiro e quebrando imagem de divindades de religiões afro-brasileiras. Essas pessoas são lunáticas. São tema para policiais e psiquiatras. Não vão ser convencidas de nada. Talvez devam ser estudadas pela medicina para se descobrir como viver sem cérebro. Acho que o tema é outro: que as pessoas entendam que por mais que sejam bem intencionadas e gostem genuinamente de alguns negros são racistas assim mesmo. Aprendam a reconhecer isso e ajam tentando mudar.
Aqui vai uma historinha real. Minha irmã é mais morena que eu e se casou com um negro. Sendo assim, tiveram uma filha negra, que hoje tem, se não me engano, seis anos (a senilidade precoce não ajuda a guardar esse tipo de coisa). Segundo ela, quando leva a filha pra brincar na pracinha as crianças brancas se afastam com ajuda das mães. Uma linda menina inocente que inunda qualquer espaço em que esteja de alegria e vida tendo de passar por isso. Quando penso nisso e no que mais ela terá de passar tenho vontade de sair por aí dando porrada em todo mundo. Infelizmente não é específico dela. Há vasta bibliografia sobre isso, que mostra inclusive que crianças muito novas já discriminam barbaramente os coleguinhas negros. Professores também.
Claro que nada disso deveria existir. E há exemplos disso. Minha sobrinha tem dois irmãos, um casal de gêmeos filhos da minha irmã de um relacionamento anterior. São muito brancos e já chegaram na adolescência. Todo mundo pergunta a eles como podem ter uma irmã negra. Eles não entendem. Pra eles essa categorização racial simplesmente não faz sentido. Na cabeça deles não é "somos brancos, minha mãe também, e temos uma irmã negra como o marido da minha mãe". Essa não é uma questão pra eles e ponto final. Deveríamos viver em um mundo só com pessoas assim.
Mas não vivemos. E uma das coisas que aprendi com a história é que privilegiados nunca concedem direitos. Eles têm de ser arrancados à fórceps pelos subalternos. Tudo o que os negros conseguiram melhorar nos últimos 120 anos foi devido à luta deles. Então tem de ter dia da consciência negra sim. Só não pode virar festa, dia de branco ir ver espetáculo de samba, capoeira, maracatu, etc. para se sentir descolado e galeroso. Tem de ser dia de luta. De esfregar o racismo na cara da sociedade. Fazer com que todos sejam obrigados a encarar aquilo que muita gente quer varrer pra baixo do tapete, por escrotidão, visão privilegiada de mundo ou falta de reflexão e conhecimento. Tem de ir pro confronto. Não há outra solução possível.
Na Unicamp ouvi, em meados dos anos 90, um professor, historiador bem famoso, falar assim: "ah, gente, disciplinar negro não dá, né?". Veja o quão recente é o racismo aberto em qualquer lugar. Pra quem não sabe: a Unicamp é referência nacional na área de escravidão, talvez seja a grande especialidade daquele grupo de professores. E há 20 anos se podia ouvir isso de um autor nacionalmente reconhecido perante a complacência de quase toda a turma, inclusive eu. Esse foi o mundo em que me criei. Então não tem essa de "tenho amigos negros" não. Fui criado num mundo extremamente racista. Querer dizer que fiquei imune à isso seria me considerar alguém acima do mundo em que vive.
Sei que há gente de bom coração que acredita genuinamente que não é racista. As entendo, mas infelizmente elas estão erradas. Ter amigos negros e amar a todos não quer dizer que você não é racista. O cara que mata a esposa pode amar a mãe, a irmã, etc. e nem por isso deixa de ser machista. Possivelmente na cabeça dele ele ame até a esposa que matou. Tem pesquisa inclusive mostrando que o racismo é particularmente violento em familias em que coexistem brancos e negros. Um ponto em que a militância negra tem muita razão é justamente em denunciar o caráter "discreto" do nosso racismo. Tem uma pesquisa que mostra que a imensa maioria dos brasileiros acredita que há racismo no país mas não se julgam racistas. Racista sempre é o outro.
Justamente por isso não acho que o alvo das campanhas devam ser essa facção lunática de religiosos que sai por ai invadindo terreiro e quebrando imagem de divindades de religiões afro-brasileiras. Essas pessoas são lunáticas. São tema para policiais e psiquiatras. Não vão ser convencidas de nada. Talvez devam ser estudadas pela medicina para se descobrir como viver sem cérebro. Acho que o tema é outro: que as pessoas entendam que por mais que sejam bem intencionadas e gostem genuinamente de alguns negros são racistas assim mesmo. Aprendam a reconhecer isso e ajam tentando mudar.
Aqui vai uma historinha real. Minha irmã é mais morena que eu e se casou com um negro. Sendo assim, tiveram uma filha negra, que hoje tem, se não me engano, seis anos (a senilidade precoce não ajuda a guardar esse tipo de coisa). Segundo ela, quando leva a filha pra brincar na pracinha as crianças brancas se afastam com ajuda das mães. Uma linda menina inocente que inunda qualquer espaço em que esteja de alegria e vida tendo de passar por isso. Quando penso nisso e no que mais ela terá de passar tenho vontade de sair por aí dando porrada em todo mundo. Infelizmente não é específico dela. Há vasta bibliografia sobre isso, que mostra inclusive que crianças muito novas já discriminam barbaramente os coleguinhas negros. Professores também.
Claro que nada disso deveria existir. E há exemplos disso. Minha sobrinha tem dois irmãos, um casal de gêmeos filhos da minha irmã de um relacionamento anterior. São muito brancos e já chegaram na adolescência. Todo mundo pergunta a eles como podem ter uma irmã negra. Eles não entendem. Pra eles essa categorização racial simplesmente não faz sentido. Na cabeça deles não é "somos brancos, minha mãe também, e temos uma irmã negra como o marido da minha mãe". Essa não é uma questão pra eles e ponto final. Deveríamos viver em um mundo só com pessoas assim.
Mas não vivemos. E uma das coisas que aprendi com a história é que privilegiados nunca concedem direitos. Eles têm de ser arrancados à fórceps pelos subalternos. Tudo o que os negros conseguiram melhorar nos últimos 120 anos foi devido à luta deles. Então tem de ter dia da consciência negra sim. Só não pode virar festa, dia de branco ir ver espetáculo de samba, capoeira, maracatu, etc. para se sentir descolado e galeroso. Tem de ser dia de luta. De esfregar o racismo na cara da sociedade. Fazer com que todos sejam obrigados a encarar aquilo que muita gente quer varrer pra baixo do tapete, por escrotidão, visão privilegiada de mundo ou falta de reflexão e conhecimento. Tem de ir pro confronto. Não há outra solução possível.
domingo, 15 de novembro de 2015
Muçulmanos
Profissionais que estudam temas culturais sabem muito bem que identidades se constroem pelo contraste. Ou seja, sempre privilegiaremos o que nos diferencia do outro na hora de construirmos nosso lugar no mundo. Um exemplo simples: o arroz com feijão é consumido em larga escala de norte a sul do país. Mas justamente por isso não é marcador de identidade regional de nenhum lugar do Brasil, pois não serve como diferenciador. Se usam coisas bem menos consumidas (bode aqui no nordeste, churrasco no RS, etc.) mas que cumprem esse papel diferenciador.
O Ocidente pretende se diferenciar do resto do mundo por uma narrativa da modernidade que teria, entre seus traços particulares, o respeito e a tolerância pelas diferenças. Supostamente seríamos os únicos com essa capacidade. O que significa que seríamos uma ilha de racionalidade em um planeta de bárbaros. Uma definição identitária como essa demanda desesperadamente por um Outro bárbaro, incivilizado e intolerante. Os muçulmanos acabaram assumindo esse papel em nosso imaginário. Dizia para meus alunos semana passada: criamos um combo que associa islamismo, árabes, fanatismo e intolerância. Algo completamente irracional que visa justificar a imagem de que somos os únicos racionais.
Talvez não seja demais esclarecer que quando digo que essa é uma concepção irracional não quero dizer que não existam aquelas coisas. Mas são generalizações francamente abusivas. Há centenas de milhões de muçulmanos que não são árabes (iranianos e indonésios, por exemplo), e a ideia de que todos islâmicos são jihadistas é de chorar. 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) são muçulmanas. Se todas fossem terroristas o mundo nem existiria mais.
Tão ruim quanto isso é a nossa auto imagem. Acreditamos sinceramente que somos uma civilização tolerante. Criamos o nazismo, matamos judeus e muçulmanos, temos pena de morte, somos racistas, machistas e homofóbicos, mas embora vejamos isso diariamente achamos que os muçulmanos são piores. Que eles não são humanos como nós, não têm compaixão, não enterram seus mortos e não amam seus filhos. Eles não são humanos como nós. Por isso, se muçulmanos matam um de nós podemos matar um milhão deles como vingança. Eles não são como nós.
Por tudo isso a questão dos refugiados de guerra da Síria gerou tanto alarde. Muita gente, inclusive na esquerda, se disse temerosa com medo de uma invasão de muçulmanos homofóbicos e machistas. Como se pessoas que votam em Berlusconi e Le Pen precisasse de alguém que os ensinasse essas coisas. Como se a Síria não fosse um dos países mais laicos da região. O fato de serem muçulmanos dispensa maiores explicações: só podem ser machistas, homofóbicos, homens-bomba e gente que não possui a nossa humanidade.
Só tive uma experiência limitada com muçulmanos, na semana que passei em Istambul. Antes de ir falei com duas pessoas. Uma brasileira que mora lá me disse que Istambul era tranquilo, que eu não me preocupasse com nada diferente do que eu precisava me cuidar no Brasil. Uma turca que era vizinha da minha então namorada italiana avisou que não havia nada de muito diferente, exceto não existir porco ou Cristo, uma definição que me fez rir muito, mas se mostrou real: muçulmanos não comem carne de porco mesmo. Mas fazem o capeta com cordeiro, então tudo bem.
Tinham me falado maravilhas de Istambul. Mas não achei essa coisa toda. Gostei muito, mas achei superestimada. A parte histórica é infartante. Para um brasileiro, conhecer construções do século VI é mais que um sonho. Comida também é excelente. Nada que soe exótico pra nós. Diferente da nossa, bem temperada, mas nada que nos faça pensar que estamos em outro planeta. A cerveja também é muito decente.
As pessoas são um capítulo à parte. Istambul é parte européia e parte asiática. É um ponto de convergência. No aeroporto já fiquei fascinado por nunca ter visto gente de tantos tipos, cores e tamanhos diferentes. No painel de chegadas e partidas tinha vôo de tudo que é lugar do mundo. Impossível achar que quem vive num lugar assim seja esse mar de intolerância, pois simplesmente não há como. Cheguei, o aeroporto estava uma zona (havia caído um temporal master, impedindo os vôos de pousar, e quando acabou todos pousaram de uma vez), mostrei meu passaporte para o fiscal da imigração, ele viu de onde eu era, perguntou "e o 7 a 1, hein?", riu, carimbou o passaporte e fui atrás de um táxi. Tudo bem comum.
Nas ruas as mulheres usam vários tipos de roupas. Muitas com vestimentas que associamos ao islamismo, outras em trajes ocidentais. Porteiro do hotel me explicava que a Turquia é um país laico e eles têm muito orgulho dessa característica, que atribuem ao fundador do país, Mustafá Kemal, o "Ataturk", cuja foto está por todos os lugares. Se no Brasil o futebol é uma mania nacional, lá é muito mais que isso. Quando percebiam que eu era brasileiro, 11 a cada 10 pessoas vinham falar de futebol. Ronaldinho Gaúcho, em particular, era um tema da curiosidade e admiração.
Claro que não são pessoas perfeitas. Inclusive em várias coisas lembram os brasileiros, e sejam até piores. Tentar roubar na hora de dar o troco é uma doença nacional. Um dia pegamos um taxi, o cara fez um comentário super machista sobre mulheres dirigirem mal, minha então namorada italiana fez comentários indignados comigo e o taxista começou a passear só pra nos sacanear (pessoas de Istambul aparentemente sabem algo sobre todas as línguas do mundo). No mítico mercado público, do século XV, tentam se aproveitar de você de todas as maneiras possíveis (mas a visita vale demais assim mesmo).
Ao menos nessa viagem, o que vi foi que muçulmanos são gente como nós. Amam seus filhos, choram seus mortos, amam futebol, fazem uma comida ótima e são trambiqueiros. E comem aquelas coisas que a gente pensa que só existem na Biblia, tipo tâmaras. Ao menos pelo que vi a imagem ocidental não se sustenta por um segundo. Certamente deve haver intolerância, como também há de sobra no Ocidente. Em suma, não vi nada muito diferente do que conhecemos. No máximo diferenças culturais, como senti também na Itália, na Holanda ou em outras partes do Brasil, o que é completamente normal.
Termino este post com a sensação de só ter dito coisas óbvias. Mas vivemos em um mundo em que ver o óbvio virou uma virtude.
O Ocidente pretende se diferenciar do resto do mundo por uma narrativa da modernidade que teria, entre seus traços particulares, o respeito e a tolerância pelas diferenças. Supostamente seríamos os únicos com essa capacidade. O que significa que seríamos uma ilha de racionalidade em um planeta de bárbaros. Uma definição identitária como essa demanda desesperadamente por um Outro bárbaro, incivilizado e intolerante. Os muçulmanos acabaram assumindo esse papel em nosso imaginário. Dizia para meus alunos semana passada: criamos um combo que associa islamismo, árabes, fanatismo e intolerância. Algo completamente irracional que visa justificar a imagem de que somos os únicos racionais.
Talvez não seja demais esclarecer que quando digo que essa é uma concepção irracional não quero dizer que não existam aquelas coisas. Mas são generalizações francamente abusivas. Há centenas de milhões de muçulmanos que não são árabes (iranianos e indonésios, por exemplo), e a ideia de que todos islâmicos são jihadistas é de chorar. 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) são muçulmanas. Se todas fossem terroristas o mundo nem existiria mais.
Tão ruim quanto isso é a nossa auto imagem. Acreditamos sinceramente que somos uma civilização tolerante. Criamos o nazismo, matamos judeus e muçulmanos, temos pena de morte, somos racistas, machistas e homofóbicos, mas embora vejamos isso diariamente achamos que os muçulmanos são piores. Que eles não são humanos como nós, não têm compaixão, não enterram seus mortos e não amam seus filhos. Eles não são humanos como nós. Por isso, se muçulmanos matam um de nós podemos matar um milhão deles como vingança. Eles não são como nós.
Por tudo isso a questão dos refugiados de guerra da Síria gerou tanto alarde. Muita gente, inclusive na esquerda, se disse temerosa com medo de uma invasão de muçulmanos homofóbicos e machistas. Como se pessoas que votam em Berlusconi e Le Pen precisasse de alguém que os ensinasse essas coisas. Como se a Síria não fosse um dos países mais laicos da região. O fato de serem muçulmanos dispensa maiores explicações: só podem ser machistas, homofóbicos, homens-bomba e gente que não possui a nossa humanidade.
Só tive uma experiência limitada com muçulmanos, na semana que passei em Istambul. Antes de ir falei com duas pessoas. Uma brasileira que mora lá me disse que Istambul era tranquilo, que eu não me preocupasse com nada diferente do que eu precisava me cuidar no Brasil. Uma turca que era vizinha da minha então namorada italiana avisou que não havia nada de muito diferente, exceto não existir porco ou Cristo, uma definição que me fez rir muito, mas se mostrou real: muçulmanos não comem carne de porco mesmo. Mas fazem o capeta com cordeiro, então tudo bem.
Tinham me falado maravilhas de Istambul. Mas não achei essa coisa toda. Gostei muito, mas achei superestimada. A parte histórica é infartante. Para um brasileiro, conhecer construções do século VI é mais que um sonho. Comida também é excelente. Nada que soe exótico pra nós. Diferente da nossa, bem temperada, mas nada que nos faça pensar que estamos em outro planeta. A cerveja também é muito decente.
As pessoas são um capítulo à parte. Istambul é parte européia e parte asiática. É um ponto de convergência. No aeroporto já fiquei fascinado por nunca ter visto gente de tantos tipos, cores e tamanhos diferentes. No painel de chegadas e partidas tinha vôo de tudo que é lugar do mundo. Impossível achar que quem vive num lugar assim seja esse mar de intolerância, pois simplesmente não há como. Cheguei, o aeroporto estava uma zona (havia caído um temporal master, impedindo os vôos de pousar, e quando acabou todos pousaram de uma vez), mostrei meu passaporte para o fiscal da imigração, ele viu de onde eu era, perguntou "e o 7 a 1, hein?", riu, carimbou o passaporte e fui atrás de um táxi. Tudo bem comum.
Nas ruas as mulheres usam vários tipos de roupas. Muitas com vestimentas que associamos ao islamismo, outras em trajes ocidentais. Porteiro do hotel me explicava que a Turquia é um país laico e eles têm muito orgulho dessa característica, que atribuem ao fundador do país, Mustafá Kemal, o "Ataturk", cuja foto está por todos os lugares. Se no Brasil o futebol é uma mania nacional, lá é muito mais que isso. Quando percebiam que eu era brasileiro, 11 a cada 10 pessoas vinham falar de futebol. Ronaldinho Gaúcho, em particular, era um tema da curiosidade e admiração.
Claro que não são pessoas perfeitas. Inclusive em várias coisas lembram os brasileiros, e sejam até piores. Tentar roubar na hora de dar o troco é uma doença nacional. Um dia pegamos um taxi, o cara fez um comentário super machista sobre mulheres dirigirem mal, minha então namorada italiana fez comentários indignados comigo e o taxista começou a passear só pra nos sacanear (pessoas de Istambul aparentemente sabem algo sobre todas as línguas do mundo). No mítico mercado público, do século XV, tentam se aproveitar de você de todas as maneiras possíveis (mas a visita vale demais assim mesmo).
Ao menos nessa viagem, o que vi foi que muçulmanos são gente como nós. Amam seus filhos, choram seus mortos, amam futebol, fazem uma comida ótima e são trambiqueiros. E comem aquelas coisas que a gente pensa que só existem na Biblia, tipo tâmaras. Ao menos pelo que vi a imagem ocidental não se sustenta por um segundo. Certamente deve haver intolerância, como também há de sobra no Ocidente. Em suma, não vi nada muito diferente do que conhecemos. No máximo diferenças culturais, como senti também na Itália, na Holanda ou em outras partes do Brasil, o que é completamente normal.
Termino este post com a sensação de só ter dito coisas óbvias. Mas vivemos em um mundo em que ver o óbvio virou uma virtude.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Fui um abusador
Difícil demais dizer isso. Mas é a verdade. Já fui alguém que abusou de mulheres. Nunca fiz nada fora da lei, nunca estuprei ou bati em mulher. Mas quando era mais novo fiz aquelas coisas que entre homens são tidas como "normais": encoxar, passar a mão, etc. Quando mais novo fiz tudo isso muitas vezes. E estive em grupos em que caras contavam uns aos outros essas coisas, sempre rindo muito.
Talvez a pior parte disso é que tudo aquilo era (e ainda é) socialmente aceito. Nós homens não somos treinados para encarar como relevante o desejo feminino. Somos ensinados que o mundo é nosso. Só isso pode explicar pessoas de bom coração (acredite, eu era) cometendo esse tipo de abusos achando sinceramente que era divertido.
Isso é algo tão forte que me lembro perfeitamente de, em plenos anos 90, fazendo História na Unicamp, colegas irem para festas exclusivamente com essa finalidade. Nessa época eu já encarava isso como algo que não fazia muito sentido, ainda que não tivesse elaborado nada mentalmente. Mas me lembro nitidamente de gente que inclusive hoje é historiador reconhecido contando vantagem de ter "alisado" a fulana, para inveja geral.
E naqueles mesmos anos eu tive contato mais direto com o feminismo pela primeira vez. De forma completamente imatura. Eu via minhas colegas de faculdade na militância mas ainda não conseguia me deslocar minimamente. Achávamos que elas eram um bando de chatas que criavam caso por nada. Era um olhar mais para condescendente. Não odiávamos elas por isso, várias eram nossas amigas, mas aquilo nos soava muito mimimi.
Precisei ter uma amiga ultrafeminista, minha parceira de trabalho, uma norte americana que segurou meu rosto e me mandou parar de agir como se fosse um imbecil. Foi ela que me mostrou o quanto as ações que eu achava normais reproduziam uma cultura que degradava as mulheres, ignorava seus desejos e as via como objetos a serem fruidos por nós. Imagino que para uma mulher isso deve ser ininteligível, mas fazendo doutorado em história eu ainda não tinha entendido isso. Pois não é o recado que recebemos. O que nos dizem o tempo todo é exatamente o oposto.
Claro que eu lamento muito isso tudo. Tenho plena consciência que nunca vou superar o fato de ter sido criado para acreditar que somos os donos do mundo. Na verdade não apenas eu: todos os homens recebem essa mensagem 24 horas por dia. Mas eu lamento ainda mais que muitos nunca consigam sequer problematizar isso. Gente velha que continua assumindo o papel de vítima perante o feminismo. Gente que inventa idiotices tipo "femismo", etc. Esses só conseguem ver seu próprio umbigo. Nem dá pra discutir.
Talvez a pior parte disso é que tudo aquilo era (e ainda é) socialmente aceito. Nós homens não somos treinados para encarar como relevante o desejo feminino. Somos ensinados que o mundo é nosso. Só isso pode explicar pessoas de bom coração (acredite, eu era) cometendo esse tipo de abusos achando sinceramente que era divertido.
Isso é algo tão forte que me lembro perfeitamente de, em plenos anos 90, fazendo História na Unicamp, colegas irem para festas exclusivamente com essa finalidade. Nessa época eu já encarava isso como algo que não fazia muito sentido, ainda que não tivesse elaborado nada mentalmente. Mas me lembro nitidamente de gente que inclusive hoje é historiador reconhecido contando vantagem de ter "alisado" a fulana, para inveja geral.
E naqueles mesmos anos eu tive contato mais direto com o feminismo pela primeira vez. De forma completamente imatura. Eu via minhas colegas de faculdade na militância mas ainda não conseguia me deslocar minimamente. Achávamos que elas eram um bando de chatas que criavam caso por nada. Era um olhar mais para condescendente. Não odiávamos elas por isso, várias eram nossas amigas, mas aquilo nos soava muito mimimi.
Precisei ter uma amiga ultrafeminista, minha parceira de trabalho, uma norte americana que segurou meu rosto e me mandou parar de agir como se fosse um imbecil. Foi ela que me mostrou o quanto as ações que eu achava normais reproduziam uma cultura que degradava as mulheres, ignorava seus desejos e as via como objetos a serem fruidos por nós. Imagino que para uma mulher isso deve ser ininteligível, mas fazendo doutorado em história eu ainda não tinha entendido isso. Pois não é o recado que recebemos. O que nos dizem o tempo todo é exatamente o oposto.
Claro que eu lamento muito isso tudo. Tenho plena consciência que nunca vou superar o fato de ter sido criado para acreditar que somos os donos do mundo. Na verdade não apenas eu: todos os homens recebem essa mensagem 24 horas por dia. Mas eu lamento ainda mais que muitos nunca consigam sequer problematizar isso. Gente velha que continua assumindo o papel de vítima perante o feminismo. Gente que inventa idiotices tipo "femismo", etc. Esses só conseguem ver seu próprio umbigo. Nem dá pra discutir.
domingo, 8 de novembro de 2015
Que viva a esquerda!
Sábado a Revolução Russa fez 98 anos. É uma data tão importante pra mim que nem sei o que pensar.
Sou de uma família esquerdista. Cresci nos anos 80 e vivi todo aquele clima da redemocratização. E em uma cidade operária onde o brizolismo reinava. Daí embarquei diretamente no mundo dos historiadores, um universo que com todos os seus problemas e suas chatices sempre tende a ser progressista. No início dos anos 90, quando eu estava na graduação, lembro que brincávamos que o comunismo só existia em Cuba e no nosso curso.
Em suma, em duas semanas farei 43 anos vivendo em um universo de esquerda. Provavelmente por isso não sei como é ser de direita. Pode ser que esse ponto do arco político tenha virtudes, mas eu não vejo nenhuma. Só vejo pessoas que tem como meta o ódio a quem já se ferra o tempo todo. Seja qual for o contexto. Os judeus, prostitutas e homossexuais no nazismo, os esquerdistas nas ditaduras militares latinoamericanas, os homossexuais, negros e nordestinos hoje, as mulheres e pobres desde sempre. Só consigo imaginar essas pessoas se unindo para odiar. E sempre odiando gente subalterna. Sempre com pena dos dominantes que são favorecidos. Por algum motivo na cabeça dessa gente a vida se resume a sentir pena dos brancos, dos heteros, dos homens, enfim, dos que já têm tudo. Em alguma lógica isso faz sentido pra eles.
Na minha lógica isso tudo é coisa de quem só pensa em si. Culpa dessa maldita formação esquerdista. Pra nós existe no mundo uma coisa chamada empatia, que significa tentar ver a vida com os olhos de quem não é como nós e tentar entender o ponto de vista de quem precisa de ajuda. Também existe uma coisa chamada generosidade, que é tentar pensar num mundo além do que é bom para nós mesmos. Podem nos chamar de sonhadores utópicos, mas vemos a vida assim. Achamos que só está bom se for bom para todos e não apenas para nós.
Também não entendo direito essa coisa de quem é de direita se definir em função daquilo que odeia. Eu me defino em função daquilo que eu quero. Um mundo justo, sem que ninguém tenha de pagar por ser quem é. Simplesmente isso. Que todos possam ser quem quiserem sem ter de sofrer. Aliás, foi exatamente em nome disso tudo que as melhores pessoas da geração dos meus pais (inclusive eles mesmos) arriscaram suas vidas e muitos pagaram por elas. Para que cada um de nós possa falar, escrever, comentar a idiotice que for sem ter de se explicar a ninguém. Inclusive para que quem é idiota a esse ponto ache que eles é que eram autoritários. Eles ouvem isso e não querem proibir que isso seja dito. A ditadura proibia que falassem mal dela e essas pessoas não se importam. Paciência. Isso é democracia.
Para nós, ser esquerdista é uma eterna alegria. É compartilhar o sonho de um mundo generoso. Cada um a seu modo, é o que nos une. Somos todos legais? Nem pensar. O que queremos é uma utopia? Pode ser. Mas dormimos em paz. E nossas vidas não são guiadas pelo ódio. Já é uma grande coisa.
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Ter consciência de que faz parte do grupo opressor: uma necessidade urgente
Ontem fui ao supermercado. Estava na fila do caixa. Vi que atrás de mim tinha uma mulher que ia comprar apenas um iogurte. Na minha frente um casal passava uma compra imensa. Pensei que não havia mal nenhum em deixar a mulher passar na minha frente, já que a compra dela era mínima, e a minha era mediana, uma feirinha semanal. Ela agradeceu, passou à minha frente, mas ficou nitidamente sem saber o que fazer. Não sabia se eu estava sendo gentil ou tendo segundas intenções. Me senti tão constrangido ao me dar conta disso que passei o resto do tempo olhando pra baixo, para não dar nenhuma dúvida de que só queria passar minhas compras.
Esse é o tipo de situação na qual os olavistas, os reaças e todo o lixo que temos na nossa sociedade vão culpar o feminismo por tudo o que aconteceu. Na leitura dessas pessoas eu fui oprimido naquela situação por causa de um bando de feminazis que criam um antagonismo entre homens e mulheres que está poluíndo o mundo. Culpa da maldita "teoria de gênero". Para esse tipo de bosta humana eu é que sou o sofredor da história. Eu é que sou o coitadinho oprimido. Culpa dos comunistas, das feminazis, do Jean Wyllys, vamos lá apoiar o Bolsonaro que tem coragem de nos defender dessa gente maldita que está dominando o mundo.
Essas pessoas são completamente idiotas. Não são dotadas de algo que qualquer humano deveria sentir: empatia. Como qualquer subalterno, as mulheres experimentam desvantagens cotidianas que eu sequer posso imaginar, mas que ao menos tento entender. Nós nunca vamos saber o que é. Sendo muito sincero aqui, durante muitos anos da minha vida achei divertido mexer com mulheres quando andava de carro. Pra mim era uma coisa meio infantil mas muito engraçada. Até o dia em que minhas primas me falaram que isso podia soar horrivel para quem convive diariamente com o medo do estupro. E parei.
Todos os dias homens matam mulheres. Estupram mulheres. Agridem mulheres fisicamente. Nenhum de nós homens pode saber concretamente o efeito que isso causa. Nunca vamos saber o que é não ter ideia se o próximo cara que aparecer pelo seu caminho vai querer fazer uma dessas coisas. E não adianta pensar "ah, mas eu não faço nada disso". Eu também não faço. Nunca faria. Mas a mulher da fila do supermercado tem como saber disso? Lógico que não. Eu era apenas um indivíduo do sexo masculino pra ela. Que podia estar fazendo uma pequena gentileza ou vislumbrando uma possibilidade de estupro. Não havia como ela saber.
Some-se a isso a imensa quantidade de pequenas violências cotidianas que todo subalterno conhece bem. A ideia de que uma mulher está desprotegida sem um homem por perto. O conceito de que homossexuais querem transar com todas as pessoas do mesmo sexo que eles. O pressuposto de que todo negro é pobre, favelado e sabe sambar. Nordestinos são todos pobres, moram no sertão e votam em troca de alguma coisa. E por aí vai. Nossa personalidade é formada não só pela genética: existem as experiências que moldam nossa forma de ver o mundo e o ambiente que nos cerca. E uma experiência subalterna num ambiente adverso ensina a desconfiar de todos os que fazem parte do grupo dominante. Basta ter um mínimo de empatia que isso se torna óbvio.
Nós, que estamos do lado dominante na maior parte dos temas precisamos entender minimamente isso tudo. Que por mais que nos esforcemos para ser as melhores pessoas que pudermos, nunca deixaremos de representar a opressão para os subalternos. Parar de ficar com esse papo absurdo de "tadinho de mim" sendo que está do lado privilegiado, e começar a tentar ver o mundo como o oprimido o vê a partir de sua experiência de vida. Como já disse antes: nascer num mundo assim não foi escolha de ninguém, mas ser um babaca escroto que acha que os privilegiados são coitadinhos quando não podem oprimir à vontade e quando quiserem é questão de escolha. Ninguém é obrigado a ser um completo imbecil.
Esse é o tipo de situação na qual os olavistas, os reaças e todo o lixo que temos na nossa sociedade vão culpar o feminismo por tudo o que aconteceu. Na leitura dessas pessoas eu fui oprimido naquela situação por causa de um bando de feminazis que criam um antagonismo entre homens e mulheres que está poluíndo o mundo. Culpa da maldita "teoria de gênero". Para esse tipo de bosta humana eu é que sou o sofredor da história. Eu é que sou o coitadinho oprimido. Culpa dos comunistas, das feminazis, do Jean Wyllys, vamos lá apoiar o Bolsonaro que tem coragem de nos defender dessa gente maldita que está dominando o mundo.
Essas pessoas são completamente idiotas. Não são dotadas de algo que qualquer humano deveria sentir: empatia. Como qualquer subalterno, as mulheres experimentam desvantagens cotidianas que eu sequer posso imaginar, mas que ao menos tento entender. Nós nunca vamos saber o que é. Sendo muito sincero aqui, durante muitos anos da minha vida achei divertido mexer com mulheres quando andava de carro. Pra mim era uma coisa meio infantil mas muito engraçada. Até o dia em que minhas primas me falaram que isso podia soar horrivel para quem convive diariamente com o medo do estupro. E parei.
Todos os dias homens matam mulheres. Estupram mulheres. Agridem mulheres fisicamente. Nenhum de nós homens pode saber concretamente o efeito que isso causa. Nunca vamos saber o que é não ter ideia se o próximo cara que aparecer pelo seu caminho vai querer fazer uma dessas coisas. E não adianta pensar "ah, mas eu não faço nada disso". Eu também não faço. Nunca faria. Mas a mulher da fila do supermercado tem como saber disso? Lógico que não. Eu era apenas um indivíduo do sexo masculino pra ela. Que podia estar fazendo uma pequena gentileza ou vislumbrando uma possibilidade de estupro. Não havia como ela saber.
Some-se a isso a imensa quantidade de pequenas violências cotidianas que todo subalterno conhece bem. A ideia de que uma mulher está desprotegida sem um homem por perto. O conceito de que homossexuais querem transar com todas as pessoas do mesmo sexo que eles. O pressuposto de que todo negro é pobre, favelado e sabe sambar. Nordestinos são todos pobres, moram no sertão e votam em troca de alguma coisa. E por aí vai. Nossa personalidade é formada não só pela genética: existem as experiências que moldam nossa forma de ver o mundo e o ambiente que nos cerca. E uma experiência subalterna num ambiente adverso ensina a desconfiar de todos os que fazem parte do grupo dominante. Basta ter um mínimo de empatia que isso se torna óbvio.
Nós, que estamos do lado dominante na maior parte dos temas precisamos entender minimamente isso tudo. Que por mais que nos esforcemos para ser as melhores pessoas que pudermos, nunca deixaremos de representar a opressão para os subalternos. Parar de ficar com esse papo absurdo de "tadinho de mim" sendo que está do lado privilegiado, e começar a tentar ver o mundo como o oprimido o vê a partir de sua experiência de vida. Como já disse antes: nascer num mundo assim não foi escolha de ninguém, mas ser um babaca escroto que acha que os privilegiados são coitadinhos quando não podem oprimir à vontade e quando quiserem é questão de escolha. Ninguém é obrigado a ser um completo imbecil.
domingo, 1 de novembro de 2015
O que Herzog diz sobre o Brasil de hoje
Fim de semana passado eu estava internado e não pude escrever sobre os 40 anos da morte de Vladimir Herzog. Um jornalista que não tinha nada a ver com a luta armada mas que foi assassinado pelos carniceiros da ditadura. Sua morte marcou o início do fim da ditadura. Por culpa de três pessoas: Dom Paulo Evaristo Arns, Reverendo Jaime Wright e o Rabino Henry Sobel.
A versão oficial da morte de Herzog falava em suicídio. Como suicida ele jamais poderia ser enterrado em um cemitério judeu, segundo as leis de sua religião. Mas esses três religiosos ignoraram a versão oficial. Fizeram um culto ecumênico na Catedral da Sé que era por si só um enorme ato de resistência àquela ditadura horrorosa que vivíamos.
Essa história não parou por aí. Juntos esses religiosos foram nomes centrais na luta pela redemocratização do país. Construíram o Brasil Nunca Mais, projeto essencial para que jamais sejam esquecidas as monstruosidades cometidas naquele regime nem seus culpados. E deram uma aula ao mundo de tolerância religiosa. Me lembro muito bem de ver um programa de entrevistas na TV Cultura nos anos 1990 em que perguntavam a Dom Paulo Evaristo Arns se as diferenças religiosas não tinham em algum momento tido algum papel na colaboração entre eles. A resposta foi "nunca perguntei a religião deles e eles nunca perguntaram a minha".
Seguramente essa história não foi fácil para os nomes citados. Na verdade, tanto entre católicos, como protestantes e judeus a maioria do clero não queria confusão com a ditadura. Arns, Wright e Sobel eram minoritários em suas religiões. Para essa maioria, eles estavam sendo progressistas demais e comprando brigas desnecessárias. O que nos leva à seguinte questão: sabemos perfeitamente quem são ou foram Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright e Henry Sobel. Seus nomes estão na história do Brasil. E seus oponentes? Sequer sabemos seus nomes.
Essa é uma parte muito boa de ser historiador. Saber olhar para o presente sem olhos imediatistas. No meu caso vejo essa gente histérica em relação a tudo e só consigo ver discursos descontrolados de quem quer ser eleito amanhã mas sequer será lembrado daqui a 20 anos. Não tenho a mais vaga dúvida que em um par de décadas Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Marco Feliciano serão nomes esquecidos, exatamente como a maioria dos religiosos que queria que a morte de Herzog passasse em branco há 40 anos.
Por outro lado, quando conto histórias como a de Herzog meus alunos me olham com cara de "mano, para de inventar, vai". Não por duvidarem dos meus conhecimentos, mas pela incapacidade deles em vislumbrar que o Brasil foi assim em um passado relativamente tão recente. E não tenho a menor dúvida que existirá um dia em que meus netos assistirão uma aula de história falando dessas antas que hoje nos matam de raiva e vão rir muito, achando impossível que alguém um dia tenha levado elas a sério.
Enfim, quando olho para Dom Paulo, Jaime wright e Henry Sobel sinto duas coisas. De um lado a infinita gratidão por quem teve a coragem de enfrentar aquela ditadura horrorosa, e por isso mesmo estarão para sempre entre as pessoas que mais amo no mundo. Mas por outro lado também vejo gente que escreveu seus nomes na história do nosso país por ser diferente do clero instituído. Diferente de gente que naqueles anos tinha poder, mas cujos nomes sequer sabemos hoje em dia. O fato a ser retido é esse: sabemos perfeitamente quem são eles, mas nem sabemos os nomes dos seus críticos histéricos da época.
(este post é uma homenagem a Dom Paulo Evaristo Arns, o maior ídolo que tenho nesta vida. Na minha modesta opinião, o maior brasileiro que já existiu)
A versão oficial da morte de Herzog falava em suicídio. Como suicida ele jamais poderia ser enterrado em um cemitério judeu, segundo as leis de sua religião. Mas esses três religiosos ignoraram a versão oficial. Fizeram um culto ecumênico na Catedral da Sé que era por si só um enorme ato de resistência àquela ditadura horrorosa que vivíamos.
Essa história não parou por aí. Juntos esses religiosos foram nomes centrais na luta pela redemocratização do país. Construíram o Brasil Nunca Mais, projeto essencial para que jamais sejam esquecidas as monstruosidades cometidas naquele regime nem seus culpados. E deram uma aula ao mundo de tolerância religiosa. Me lembro muito bem de ver um programa de entrevistas na TV Cultura nos anos 1990 em que perguntavam a Dom Paulo Evaristo Arns se as diferenças religiosas não tinham em algum momento tido algum papel na colaboração entre eles. A resposta foi "nunca perguntei a religião deles e eles nunca perguntaram a minha".
Seguramente essa história não foi fácil para os nomes citados. Na verdade, tanto entre católicos, como protestantes e judeus a maioria do clero não queria confusão com a ditadura. Arns, Wright e Sobel eram minoritários em suas religiões. Para essa maioria, eles estavam sendo progressistas demais e comprando brigas desnecessárias. O que nos leva à seguinte questão: sabemos perfeitamente quem são ou foram Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright e Henry Sobel. Seus nomes estão na história do Brasil. E seus oponentes? Sequer sabemos seus nomes.
Essa é uma parte muito boa de ser historiador. Saber olhar para o presente sem olhos imediatistas. No meu caso vejo essa gente histérica em relação a tudo e só consigo ver discursos descontrolados de quem quer ser eleito amanhã mas sequer será lembrado daqui a 20 anos. Não tenho a mais vaga dúvida que em um par de décadas Jair Bolsonaro, Silas Malafaia e Marco Feliciano serão nomes esquecidos, exatamente como a maioria dos religiosos que queria que a morte de Herzog passasse em branco há 40 anos.
Por outro lado, quando conto histórias como a de Herzog meus alunos me olham com cara de "mano, para de inventar, vai". Não por duvidarem dos meus conhecimentos, mas pela incapacidade deles em vislumbrar que o Brasil foi assim em um passado relativamente tão recente. E não tenho a menor dúvida que existirá um dia em que meus netos assistirão uma aula de história falando dessas antas que hoje nos matam de raiva e vão rir muito, achando impossível que alguém um dia tenha levado elas a sério.
Enfim, quando olho para Dom Paulo, Jaime wright e Henry Sobel sinto duas coisas. De um lado a infinita gratidão por quem teve a coragem de enfrentar aquela ditadura horrorosa, e por isso mesmo estarão para sempre entre as pessoas que mais amo no mundo. Mas por outro lado também vejo gente que escreveu seus nomes na história do nosso país por ser diferente do clero instituído. Diferente de gente que naqueles anos tinha poder, mas cujos nomes sequer sabemos hoje em dia. O fato a ser retido é esse: sabemos perfeitamente quem são eles, mas nem sabemos os nomes dos seus críticos histéricos da época.
(este post é uma homenagem a Dom Paulo Evaristo Arns, o maior ídolo que tenho nesta vida. Na minha modesta opinião, o maior brasileiro que já existiu)
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