Como qualquer pessoa que tenha algum coração e não esteja completamente cego pelo clima de ódio que se disseminou no debate político brasileiro, estou estarrecido com o que aconteceu ontem no Paraná. E claro, sendo alguém da área da educação isso me toca pessoalmente. Dói pensar que ajudei a formar centenas de professores e pensar que meus ex-alunos, muitos dos quais são excelentes profissionais, poderiam estar ali. Dói também pensar em como isso mostra como a educação é tratada neste país. Sem falar na absurda hipocrisia: todo mundo diz que professores não têm condições dignas de trabalho, mas quando eles vão reclamar acontece aquilo e muita gente ainda diz que são vândalos, etc.
Mas o post não é sobre nada disso. Um pouco por eu imaginar que quem me lê já sabe de tudo isso, um pouco por achar o que aconteceu tão inaceitável que não consigo encarar mais o tema. Também não aproveitarei para falar da hipocrisia dos eleitores do PSDB, que dia desses estavam super indignados com o "descalabro da educação no governo do PT" e simplesmente desapareceram hoje (não foram todos, mas muitos se encaixam na descrição). E também não vou entrar no tema "PSDB filho da puta". Inclusive porque o PT tem lá seus esqueletos no armário nesse campo. Não faz muito tempo a PM baiana assassinou uma dúzia de adolescentes desarmados e foi parabenizada pelo governador petista. Beto Richa é tucano, é um puta de um escroto, mas esse não será o tema do post.
Quero falar do seguinte. Políticos têm um instinto de sobrevivência gigante. E ninguém chega a ser governador de um estado como o Paraná sendo um burro. Se Beto Richa fez o que fez, foi porque se sentiu autorizado. Foi por ter certeza que isso não o deixaria indisposto com seu eleitorado. O mesmo vale para todos os outros governantes que jogam a PM em cima de grevistas, sindicalistas, favelados desarmados, etc. Políticos que fazem isso são filhos da puta sim. Mas vamos combinar: eles foram eleitos. Por pessoas que certamente sabiam quem eram eles. E os reelegem muitas vezes com votações consagradoras. Natural que se sintam autorizados a esse tipo de coisa.
A verdade é: estamos nos especializando na arte do auto engano. PT e PSDB monopolizam as eleições presidenciais há 20 anos. Como vivemos em um país em que achamos que tudo de bom e de ruim deve ser colocado na conta do executivo (não esqueçamos: nos matamos militando nas eleições presidenciais, sem atentar vagamente para o fato que se gerava o congresso mais grotesco da história do país), achamos que o país está dividido entre o liberalismo tucano e a social democracia petista. O que é um equívoco total. A grande verdade é: grande parte das pessoas que votaram em Dilma e Aécio são conservadoras. Por motivos variados petistas e tucanos tem protagonizado as eleições presidenciais, mas no Brasil real o buraco é bem mais embaixo.
O que estou tentando dizer é: o Brasil é um país super conservador. Morrendo de medo dessas forças conservadoras, nem PT nem PSDB fizeram nada para mudar o cenário. Se contentaram em fazer concessões aos políticos direitistas para ganhar seus apoios, arquivar agendas progressistas (casamento gay, aborto, drogas, etc.) em nome disso e pronto. Nenhum dos dois partidos parece vagamente interessado em mudar o cenário conservador em que vivemos. Pensam simplesmente que voto de conservador vale o mesmo que os outros então bora agradar esse eleitorado e os políticos que os representam em nome das vitórias eleitorais e da governabilidade.
E o pior é que a gente tenta não ver isso. Tentamos sinceramente achar que a coisa não é tão feia, que esse congresso esdrúxulo não é sinal seguro de que vivemos num país conservador, nos matamos com os tucanos, os dois lados achando que isso é o que importa, vamos tentando levar a vida. Aí chega o dia em que a realidade te dá um soco na cara. Ontem foi um dia assim. Xinguei muito o Beto Richa, mas na verdade o que lamentei mesmo não foi isso. Foi ver o oportunismo de gente que se diz preocupada com a educação sumindo, mostrando toda a sua hipocrisia. Foi ver gente se referindo aos professores como bandidos que tiveram o que mereciam. Ficou impossível não encarar de frente a hipocrisia e o conservadorismo do país em que vivemos.
Desde o ocaso do brizolismo me converti em eleitor do PT. Me engalfinhei em debates infinitos com os tucanos. Hoje tenho, mais claro que nunca, que os dois grupos estão completamente equivocados nessa estratégia. Hoje, mais do que nunca, vejo que essa é uma questão importante, mas que não pode esconder outras, tão ou mais importantes. Como o fato de vivermos num país autoritário e conservador em todos os sentidos. E com PT e PSDB, os únicos que poderiam fazer algo para mudar isso, acomodados com a situação e sem a menor vontade de mexer em vespeiro, o cenário não é animador.
quarta-feira, 29 de abril de 2015
O anarcoliberalismo. Ou: tem pouca idiotice no mundo. Precisamos de mais
Uma das certezas que tenho nesta vida é: a humanidade nunca cansa de nos surpreender, e geralmente no mau sentido. Um exemplo é algo que é provavelmente uma contribuição do século XXI ao pensamento (?) político: o anarcoliberalismo. Que consiste basicamente em uma mistura absolutamente indigesta de duas visões de mundo que estão em campos absolutamente opostos desde o século XIX.
A visão anarcoliberal do mundo é estruturada pelo liberalismo, especialmente em sua formulação que é mais conhecida como "neoliberalismo". Desconfiam profundamente do Estado, que vêem como lento, ineficiente e ineficaz, optando por glorificar a iniciativa privada, que de seu ponto de vista é a saída para todos os males, já que cultuam o Deus Mercado. Até aí tudo bem. Não compartilho minimamente essa visão, mas posso reconhecer como algo legítimo e defensável. O pensamento liberal tem mais de dois séculos e inclusive produziu pensadores altamente qualificados. Não concordo mas acho que faz parte do jogo. Sem problemas.
Mas aí tem um problema. Os anarcoliberais forçam os limites do liberalismo clássico, já que não gostam da agenda que se impôs no século XXI. Falo de temas como drogas, aborto, homossexualidade, cotas, diversidade cultural, etc. O escopo do liberalismo clássico é receptivo a isso tudo. Para dar um exemplo doméstico, não consigo imaginar Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas vendo essas coisas com ódio. Poderiam discordar, mas sem dúvidas seriam debatedores inteligentes. Basta ver as coisas que FHC diz a respeito. E lembrar sua abertura ao tema das cotas e sua conversão recente ao debate da descriminalização das drogas (amigos de esquerda vêem isso como atitude oportunista, já que não fez nada a respeito quando presidente, mas eu tendo mais a achar que como octogenário que não pretende mais concorrer a nada ele tenha se sentido mais livre para expressar o que sempre pensou. e convenhamos, o PT também não é nenhum modelo nesse campo)
Aí é a hora de colocar o anarquismo em campo. Mas na verdade não é o anarquismo de Bakunin ou Kropotkin. Nem o libertarianismo foucaultiano. É apenas uma apropriação extremamente oportunista da negação anarquista em relação ao Estado como forma de garantir a perpetuação das desigualdades. Na verdade, é um "anarquismo" (com todas as haspas que se puder colocar) que serve aos dominantes de sempre. Um "anarquismo" autoritário e babaquíssimo que simplesmente não reconhece o direito dos excluídos de lutar. Ou seja, não tem nada de anarquismo.
Em sua versão mais primária, esse "anarquismo" ou "libertarianismo" é assim. A pessoa diz algo contra algum grupo excluído e subalterno, pode ser gay, mulher, nordestino, negro, índio, tanto faz. Aí naturalmente isso revolta muita gente, e há uma repercussão negativa. Aí advinha? A pessoa posa de perseguido. Meu Deus, não posso mais dar minha opinião. Sou um mártir da liberdade de expressão, incompreendido neste mundo opressor. Ninguém quer me deixar falar.
Esse é aquele ponto em que cinismo e ignorância ficam difíceis de distinguir. Pois a pessoa se diz liberal. E um pilar básico do liberalismo, na verdade uma de suas maiores contribuições à humanidade, foi a liberdade de expressão. Mas desafio quem usa esse discurso a encontrar quem diga que liberdade de expressão implica na ausência do contraditório. Liberdade de expressão é para TODOS. Você diz o que quiser. E todos dizem o que quiserem a respeito do que você disse. Que você é gênio, que você é idiota, tanto faz. E se alguém se sentir ofendido, procure a justiça. Isso é direito garantido em todos os países democráticos de todas as épocas. Baseado em um princípio simples: com a liberdade vem a responsabilidade. Diga o que quiser e arque com as consequências. Isso é liberalismo básico.
Mas como essas pessoas não querem arcar com as consequencias, e querem apenas expressar o ódio por quem não gostam, apelam para um argumento pretensamente libertário. Dizem, IMAGINEM, que processar alguém por algo que a pessoa disse é CENSURA e vai contra a liberdade de expressão. Ouvi ontem: "absurdo querer que o Estado tome suas dores". Ou seja, um argumento absolutamente autoritário ("falo o que quiser e ninguém pode discordar") travestido de libertarianismo de verniz foucaultiano ("você está fazendo o Estado entrar onde não deve"). Em suma: uma cachoeira de lixo.
Pra mim quem pensa isso não é liberal. Não é anarquista. Nem entendeu minimamente o que são essas duas coisas. É apenas gente que quer que homossexuais sejam mortos por sua orientação, que negros tenham suas possibilidades barradas, que mulheres sigam sendo agredidas. Querem defender isso tudo, mas sem parecerem com o Bolsonaro. Aí adotam essa postura, pretensamente cultivada, que apenas é um verniz que visa esconder seu autoritarismo extremo. Fazem uma mistura louca de autores que nada tem em comum para se sentirem livres para dizer: "defendo os privilegiados de sempre, falo o que der na telha, e quem discordar de mim ou usar a constituição contra mim está me cerceando e é um inimigo da liberdade". Pois espíritos autoritários pensam exatamente assim. Não toleram o contraditório. Para eles, discordar deles é censurar seu pensamento.
Em suma, são pessoas que odeiam quem protesta contra o preconceito muito mais do que repudia os preconceituosos. Xingar negro, gay, nordestino, mulher, é liberdade de expressão, e xingar quem faz isso é tirania. Tudo bem, sejam autoritários fingindo ser liberais e libertários. Só não pensem que não percebemos como vocês são idiotas. Sejam babacas o quanto quiserem. Só não nos subestimem tanto.
A visão anarcoliberal do mundo é estruturada pelo liberalismo, especialmente em sua formulação que é mais conhecida como "neoliberalismo". Desconfiam profundamente do Estado, que vêem como lento, ineficiente e ineficaz, optando por glorificar a iniciativa privada, que de seu ponto de vista é a saída para todos os males, já que cultuam o Deus Mercado. Até aí tudo bem. Não compartilho minimamente essa visão, mas posso reconhecer como algo legítimo e defensável. O pensamento liberal tem mais de dois séculos e inclusive produziu pensadores altamente qualificados. Não concordo mas acho que faz parte do jogo. Sem problemas.
Mas aí tem um problema. Os anarcoliberais forçam os limites do liberalismo clássico, já que não gostam da agenda que se impôs no século XXI. Falo de temas como drogas, aborto, homossexualidade, cotas, diversidade cultural, etc. O escopo do liberalismo clássico é receptivo a isso tudo. Para dar um exemplo doméstico, não consigo imaginar Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas vendo essas coisas com ódio. Poderiam discordar, mas sem dúvidas seriam debatedores inteligentes. Basta ver as coisas que FHC diz a respeito. E lembrar sua abertura ao tema das cotas e sua conversão recente ao debate da descriminalização das drogas (amigos de esquerda vêem isso como atitude oportunista, já que não fez nada a respeito quando presidente, mas eu tendo mais a achar que como octogenário que não pretende mais concorrer a nada ele tenha se sentido mais livre para expressar o que sempre pensou. e convenhamos, o PT também não é nenhum modelo nesse campo)
Aí é a hora de colocar o anarquismo em campo. Mas na verdade não é o anarquismo de Bakunin ou Kropotkin. Nem o libertarianismo foucaultiano. É apenas uma apropriação extremamente oportunista da negação anarquista em relação ao Estado como forma de garantir a perpetuação das desigualdades. Na verdade, é um "anarquismo" (com todas as haspas que se puder colocar) que serve aos dominantes de sempre. Um "anarquismo" autoritário e babaquíssimo que simplesmente não reconhece o direito dos excluídos de lutar. Ou seja, não tem nada de anarquismo.
Em sua versão mais primária, esse "anarquismo" ou "libertarianismo" é assim. A pessoa diz algo contra algum grupo excluído e subalterno, pode ser gay, mulher, nordestino, negro, índio, tanto faz. Aí naturalmente isso revolta muita gente, e há uma repercussão negativa. Aí advinha? A pessoa posa de perseguido. Meu Deus, não posso mais dar minha opinião. Sou um mártir da liberdade de expressão, incompreendido neste mundo opressor. Ninguém quer me deixar falar.
Esse é aquele ponto em que cinismo e ignorância ficam difíceis de distinguir. Pois a pessoa se diz liberal. E um pilar básico do liberalismo, na verdade uma de suas maiores contribuições à humanidade, foi a liberdade de expressão. Mas desafio quem usa esse discurso a encontrar quem diga que liberdade de expressão implica na ausência do contraditório. Liberdade de expressão é para TODOS. Você diz o que quiser. E todos dizem o que quiserem a respeito do que você disse. Que você é gênio, que você é idiota, tanto faz. E se alguém se sentir ofendido, procure a justiça. Isso é direito garantido em todos os países democráticos de todas as épocas. Baseado em um princípio simples: com a liberdade vem a responsabilidade. Diga o que quiser e arque com as consequências. Isso é liberalismo básico.
Mas como essas pessoas não querem arcar com as consequencias, e querem apenas expressar o ódio por quem não gostam, apelam para um argumento pretensamente libertário. Dizem, IMAGINEM, que processar alguém por algo que a pessoa disse é CENSURA e vai contra a liberdade de expressão. Ouvi ontem: "absurdo querer que o Estado tome suas dores". Ou seja, um argumento absolutamente autoritário ("falo o que quiser e ninguém pode discordar") travestido de libertarianismo de verniz foucaultiano ("você está fazendo o Estado entrar onde não deve"). Em suma: uma cachoeira de lixo.
Pra mim quem pensa isso não é liberal. Não é anarquista. Nem entendeu minimamente o que são essas duas coisas. É apenas gente que quer que homossexuais sejam mortos por sua orientação, que negros tenham suas possibilidades barradas, que mulheres sigam sendo agredidas. Querem defender isso tudo, mas sem parecerem com o Bolsonaro. Aí adotam essa postura, pretensamente cultivada, que apenas é um verniz que visa esconder seu autoritarismo extremo. Fazem uma mistura louca de autores que nada tem em comum para se sentirem livres para dizer: "defendo os privilegiados de sempre, falo o que der na telha, e quem discordar de mim ou usar a constituição contra mim está me cerceando e é um inimigo da liberdade". Pois espíritos autoritários pensam exatamente assim. Não toleram o contraditório. Para eles, discordar deles é censurar seu pensamento.
Em suma, são pessoas que odeiam quem protesta contra o preconceito muito mais do que repudia os preconceituosos. Xingar negro, gay, nordestino, mulher, é liberdade de expressão, e xingar quem faz isso é tirania. Tudo bem, sejam autoritários fingindo ser liberais e libertários. Só não pensem que não percebemos como vocês são idiotas. Sejam babacas o quanto quiserem. Só não nos subestimem tanto.
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Por que um homossexual do sexo oposto é um "desperdício"?
Este post começou a ser pensado há anos atrás. Eu tenho uma grande amiga, de quem gosto muito, que é extremamente bonita. Loira, sorrisão cativante, corpão perfeito, linda. E lésbica. E por isso passei anos ouvindo caras se referindo a ela como um "desperdício". Não tipo "poxa, se ela fosse hetero eu apresentaria minha candidatura". Não. "Desperdício" é a palavra permanentemente usada.
Isso sempre me incomodou pra caramba. Afinal todas as pessoas do mundo podem fazer uma lista gigante de pessoas que despertam seus desejos, que nunca serão concretizados. Eu, por exemplo, trocaria tudo o que tenho por uma relação com a Alessandra Negrini. Nunca vai acontecer, paciência. Frustrações fazem parte da vida. Mas a questão é: ninguém nunca diria "nossa, que desperdício" ao ver, digamos, a Alessandra Negrini com outro cara. Mas se fosse com outra mulher...
Sei que esse tipo de comentário não é intencionalmente escroto. Mas reflete claramente a ideia de que a homossexualidade é um desperdício sim. Ninguém que eu tenha conhecido nos meus 42 anos de vida se incomodou ao ver uma pessoa atraente do sexo oposto envolvida com uma relação hetero com alguém que não ela própria, a menos que tenha uma paixão realmente forte pela pessoa. Mas com os homossexuais é diferente. Um gay ou uma lésbica atraente é "desperdício". Desperdício de que, porra?
Pois esse é um ponto. A amiga em questão é realmente linda. Aí apareciam caras que nunca arranjavam NADA com esse discurso. "Nossa, que desperdício uma mulher assim ser lésbica". Dava vontade de responder: "gente boa, você não consegue nada com ninguém. Você acha mesmo que a única coisa que te separa dessa nega é o fato de ela ser lésbica? Por que você acha que se ela fosse hetero agiria diferente de todas as demais heteros que não querem nada contigo?"
Pior que no nosso meio esquerdista-acadêmico, esse discurso campeia livremente, de forma acrítica. Ouvimos toda hora mulheres solteiras falando que os únicos homens interessantes são gays. Um discurso pretensamente liberal. Que na verdade é super babaca. Pensam nos gays como um estereótipo de caras cheios de bom gosto que gostam de ir a shoppings fazer compras com elas. Como se uma orientação sexual definisse de forma absolutamente incontornável um conjunto de gostos e atitudes. Besteira pura.
Com as lésbicas é diferente, mas ao mesmo tempo é igual. O estereótipo é diferente, mas é estereótipo também. Ao menos nos cursos de humanas das universidades públicas é comun que mulheres experimentem em algum momento o sexo com mulheres. Então acabamos por cristalizar a ideia de que sexo entre mulheres é só uma brincadeira. Quando alguma assume o fato de que essa é a sua orientação não conseguimos levar totalmente a sério. Quando nos convencemos que é isso, não nos convencemos. Achamos que a lésbica gostosa pode a qualquer momento acordar e ver a "verdade". Talvez falte apenas um cara que faça ela ver que é disso que ela gosta. Se não, é desperdício.
Nisso tudo o que é desprezado, o que não é levado em conta, é a orientação da pessoa, a forma que ela se sente. Não nos perguntamos o que ela pensa quando é vista como objeto acessível a um gênero que não lhe interessa, muito menos o que a pessoa acha quando se vê enquadrada nas posturas citadas acima. Afinal, nisso tudo o outro não importa. Nenhuma das posturas citadas leva em consideração os sentimentos alheios. E nesse sentido são todas iguais.
Isso sempre me incomodou pra caramba. Afinal todas as pessoas do mundo podem fazer uma lista gigante de pessoas que despertam seus desejos, que nunca serão concretizados. Eu, por exemplo, trocaria tudo o que tenho por uma relação com a Alessandra Negrini. Nunca vai acontecer, paciência. Frustrações fazem parte da vida. Mas a questão é: ninguém nunca diria "nossa, que desperdício" ao ver, digamos, a Alessandra Negrini com outro cara. Mas se fosse com outra mulher...
Sei que esse tipo de comentário não é intencionalmente escroto. Mas reflete claramente a ideia de que a homossexualidade é um desperdício sim. Ninguém que eu tenha conhecido nos meus 42 anos de vida se incomodou ao ver uma pessoa atraente do sexo oposto envolvida com uma relação hetero com alguém que não ela própria, a menos que tenha uma paixão realmente forte pela pessoa. Mas com os homossexuais é diferente. Um gay ou uma lésbica atraente é "desperdício". Desperdício de que, porra?
Pois esse é um ponto. A amiga em questão é realmente linda. Aí apareciam caras que nunca arranjavam NADA com esse discurso. "Nossa, que desperdício uma mulher assim ser lésbica". Dava vontade de responder: "gente boa, você não consegue nada com ninguém. Você acha mesmo que a única coisa que te separa dessa nega é o fato de ela ser lésbica? Por que você acha que se ela fosse hetero agiria diferente de todas as demais heteros que não querem nada contigo?"
Pior que no nosso meio esquerdista-acadêmico, esse discurso campeia livremente, de forma acrítica. Ouvimos toda hora mulheres solteiras falando que os únicos homens interessantes são gays. Um discurso pretensamente liberal. Que na verdade é super babaca. Pensam nos gays como um estereótipo de caras cheios de bom gosto que gostam de ir a shoppings fazer compras com elas. Como se uma orientação sexual definisse de forma absolutamente incontornável um conjunto de gostos e atitudes. Besteira pura.
Com as lésbicas é diferente, mas ao mesmo tempo é igual. O estereótipo é diferente, mas é estereótipo também. Ao menos nos cursos de humanas das universidades públicas é comun que mulheres experimentem em algum momento o sexo com mulheres. Então acabamos por cristalizar a ideia de que sexo entre mulheres é só uma brincadeira. Quando alguma assume o fato de que essa é a sua orientação não conseguimos levar totalmente a sério. Quando nos convencemos que é isso, não nos convencemos. Achamos que a lésbica gostosa pode a qualquer momento acordar e ver a "verdade". Talvez falte apenas um cara que faça ela ver que é disso que ela gosta. Se não, é desperdício.
Nisso tudo o que é desprezado, o que não é levado em conta, é a orientação da pessoa, a forma que ela se sente. Não nos perguntamos o que ela pensa quando é vista como objeto acessível a um gênero que não lhe interessa, muito menos o que a pessoa acha quando se vê enquadrada nas posturas citadas acima. Afinal, nisso tudo o outro não importa. Nenhuma das posturas citadas leva em consideração os sentimentos alheios. E nesse sentido são todas iguais.
quinta-feira, 16 de abril de 2015
O que Veronica Bolina diz sobre o Brasil
"Retrato de um país hipócrita". Ouvi isso sobre o episódio Veronica Bolina. Travesti negra agredida barbaramente por policiais sob a custódia do Estado após ser presa pelo trivialíssimo motivo de brigar com a vizinha. Todo santo dia vizinhos brigam. O simples fato de ela ter sido detida por isso já é absurdo. O que veio depois, então, é devastador. Inclui agressões e mutilação. Da parte de agentes do Estado. Dinheiro dos nossos impostos pagam para que pessoas façam com que a pessoa da esquerda seja violentada a ponto de se transformar na pessoa da direita.
Isso tudo me deixa a seguinte questão: o que fez essas pessoas se sentirem autorizadas a fazerem isso? Pra mim essa é a questão. Por pior que sejam esses humanos, eles jamais fariam isso se não achassem que poderiam. Exemplificando: todos nós conhecemos pessoas que adorariam torturar, agredir e matar quem pensa diferente delas. Mas como sabem que não podem, se aguentam. As pessoas que fizeram o que fizeram com Veronica de alguma forma se sentiram autorizadas. Em algum nível acreditaram que vivem em uma sociedade que aceita coisas assim.
Aí você olha para o congresso nacional. Pensa que lixos humanos tipo Bolsonaros e Felicianos tiveram recordes de votos pregando a opressão aos oprimidos como forma de defender a sociedade do mal. Aí você começa a pensar que o problema nem são essas pessoas, mas os eleitores delas. E se lembra que todo santo dia escuta discurso escroto, filho da puta, racista, homofóbico. Não há um mísero dia que você não escute piadinha sobre o "viadinho" que a pessoa e você conhecem. Não há mísero dia em que por algum grupo do whatsapp você não receba uma "maravilhosa" piada sobre algum grupo subalterno. E se você se sentir ofendido o desgraçado que mandou ainda banca o perseguido: "nossa, desculpa se te ofendi", fazendo parecer que você é que é sensível.
Quantas pessoas você conhece que dizem "não voto no Bolsonaro mas admiro sua coragem"? Ou "tem coisas dele que não concordo, mas ele fala umas coisas importantes"? Isso é muito sério. Pois esses lixos defendem que tá pouca opressão aos subalternos. Tem mesmo é de aumentar. Estamos matando poucos gays, estamos discriminando pouco os negros, há poucos maridos matando suas esposas, foi pouca gente morta e torturada no regime militar. Tem de aumentar. Tudo em nome da família e dos bons costumes, claro.
Também tem a versão pretensamente religiosa da coisa. Os filhos da puta lêem Jesus Cristo falando de amor e compreensão e saem por aí odiando todo mundo que não concorda com eles. Pegam partes descontextualizadas de textos escritos há milhares de anos e usam isso para disseminar o ódio. Fazem isso considerando que estão defendendo o mundo cristão. Duvido muito que os felicianos da vida acreditem nisso. Pra mim são apenas picaretas mesmo. Mas não falta gente ignorante para espalhar o ódio em nome de Jesus. O que por si só é um contra senso gigante.
Tudo isso nós vemos todo santo dia. Esse é o mundo em que vivemos. Logo, nada mais natural que um bando de policiais tenha achado super de boas prender um travesti negro por conta de uma briga com uma vizinha. Acharam normal torturar, mutilar e desfigurar essa pessoa. Lógico que eles acharam que a sociedade à sua volta permitiria que isso acontecesse. Essa é a pior parte: eles tinham toda a razão em achar isso. Esse é o país em que vivemos. Um país machista, racista, homofóbico, que cultiva com gosto esses preconceitos e vota em quem os defende. O problema não é a polícia. O problema é seu. Você, que de alguma forma compactua com as posturas descritas, é tão culpado pelo que aconteceu quanto os que torturaram Veronica.
terça-feira, 14 de abril de 2015
Sobre o verde-amarelismo
O uso do verde e amarelo nessas manifestações a favor do impeachment me irrita muito. Por vários motivos. Aqui vão alguns.
Para começar, essas pessoas tem a miserável atitude de associar patriotismo à seleção brasileira e à camisa que a Nike fez para ela. Sério, caras? Estamos em 1970? Ou vocês simplesmente querem mostrar que têm dinheiro para comprar uma camisa oficial da seleção, e assim assumir nas entrelinhas o que vocês não querem dizer, ou seja, que essas manifestações são exclusivas para a elite? Sim, por que não sair na rua com uma camisa amarela e uma bermuda verde, algo assim, que custa barato? Precisa mostrar que fazem parte dos grupos privilegiados, né? (nem vamos falar do tamanho do ridículo que é alguém protestar contra a corrupção usando a camisa de uma das entidades mais corruptas do país, a CBF, isso é evidente demais para justificar esforço argumentando nesse sentido)
Motivo numero 2: a raiva que sinto em relação ao argumento secular de que ser de direita é "normal" e ser de esquerda é ser "ideológico". Direita usa verde e amarelo, esquerda usa vermelho. Direita ama o Brasil, esquerda quer fazer uma Cuba gigante por aqui. Um conjunto de argumentos absurdos, que por sinal eram usados a torto e a direito pelo regime militar. Como se ser de direita, antipetista e liberal não fosse uma ideologia. É ideologia também. Pode ser respeitável, mas é ideologia sim. Tem de ser burro demais para não ver isso.
Na verdade essa é uma característica histórica da direita. Adoram se comportar como se estivessem preocupados com o bem de todos, enquanto a esquerda supostamente só se preocupa com luta de classes, pobres, etc. E dá-lhe "classe média sofre". Na verdade historicamente a direita usa o nacionalismo como forma de criar consensos e escantear conflitos. Isso é um clássico direitista: a ditadura mesmo adorava tudo o que sugerisse essa versão patrioteira do nacionalismo, como seleção brasileira, desfiles de 7 de setembro, etc. Tudo para que essa patriotada toda fosse um ponto de união e consenso, escondendo todos os conflitos e desigualdades que eles tanto queriam que ninguém percebesse.
Um argumento a mais, derivado do anterior. Não é difícil de entender; há mil formas diferentes de ser nacionalista. Eu mesmo sou um. Amo o Brasil. Tive oportunidades profissionais para sair daqui. Mas não saio. Não consigo me imaginar vivendo em qualquer outro país. Quero lutar pelo Brasil. Pelo projeto de Brasil em que acredito. Outras pessoas têm outros projetos para o país e outras visões sobre o que é ser nacionalista. Tudo bem. Não acho que exista uma maneira "certa" e outra "errada" de ser brasileiro. Mas se assim é, que me deixem ser nacionalista como eu quiser. O que significa sim uma luta pelos mais pobres, e o uso do vermelho como símbolo do que acredito ser melhor para todos nós. Discorda? Ok, graças a Deus e a muita gente que lutou e sofreu por isso, somos uma democracia. Todos os projetos nacionalistas podem conviver. Mas isso de "sou mais brasileiro que você" é super autoritário, né? Ainda mais na boca de quem tem Miami como aspiração.
Mas o que mais me irrita não é nada disso. A pior parte é outra. Tivemos eleições em outubro. A maioria dos brasileiros votou pela continuidade de Dilma Rousseff. Que alguém não goste disso, ok, entendo, cansei de perder eleições. Que muitos não se sintam representados pela vitória petista me parece super hiper mega aceitável. Até aí tudo bem. Mas aqui vou citar um político importante uruguaio que não é José Mujica, mas seu opositor direitista Lacalle Pou, logo após perder as eleições presidenciais de novembro passado: "eleições se ganham e se perdem. o que importa é a vontade do povo".
Exatamente isso. Democracia é quando temos eleições livres, os vencedores governam, e os perdedores vão para a oposição. Mas não é o que estamos vendo. Aqui vemos pessoas que não aceitaram a derrota, que acham que quem vota no PT é burro e ignorante, quando não vendido. Então cabe a eles, derrotados, membros da elite bronzeada, falar em nome dos que não sabem o que fazem. Essa é minha irritação: a certeza que essas pessoas têm de que estão certas, e que os que pensam diferente delas são um bando de pobres coitados. Então que resta mais do que sair para a rua usando verde e amarelo, as cores da pátria, falando em nome de todos, já que quem pensa diferente deles não sabe o que está fazendo?
No fundo é isso o que me aborrece. Eles usam verde e amarelo querendo dizer o mesmo que brancos que se acham os líderes da luta anti racista, só porque gostam da empregada doméstica e até dão peru pra ela no natal. São como heteros que acham que sabem o que os gays sofrem apenas porque acham super legal ostentar amigo homossexual por ai dizendo que "gays são legais". Quem vai para a rua protestar contra quem foi escolhido pela maioria da população pretendendo falar em nome desse bando de pobres coitados que não sabem votar estão fazendo a mesmíssima coisa: sendo condescendente com os subalternos e pretendendo falar em nome deles.
Essas pessoas que usam verde e amarelo querendo falar em nome dos outros não entenderam algo básico. Mulheres, gays, homossexuais, nordestinos e demais grupos subalternos sofrem pra caralho sim, mas sabem falar por si próprios. Não precisam de gente privilegiada falando por eles não. Eles são crescidos, vacinados e sabem o que querem. Se o que eles querem não é o que você quer, paciência. Resolva isso de forma simples: fale por você. Você tem todo o direito de ter opinião. Mas não precisa falar pelos outros. Eles sabem falar. E quando você acha que fala por eles está apenas eternizando a condescendência dos dominantes que acham que sabem o que os subalternos querem melhor que eles próprios.
Para começar, essas pessoas tem a miserável atitude de associar patriotismo à seleção brasileira e à camisa que a Nike fez para ela. Sério, caras? Estamos em 1970? Ou vocês simplesmente querem mostrar que têm dinheiro para comprar uma camisa oficial da seleção, e assim assumir nas entrelinhas o que vocês não querem dizer, ou seja, que essas manifestações são exclusivas para a elite? Sim, por que não sair na rua com uma camisa amarela e uma bermuda verde, algo assim, que custa barato? Precisa mostrar que fazem parte dos grupos privilegiados, né? (nem vamos falar do tamanho do ridículo que é alguém protestar contra a corrupção usando a camisa de uma das entidades mais corruptas do país, a CBF, isso é evidente demais para justificar esforço argumentando nesse sentido)
Motivo numero 2: a raiva que sinto em relação ao argumento secular de que ser de direita é "normal" e ser de esquerda é ser "ideológico". Direita usa verde e amarelo, esquerda usa vermelho. Direita ama o Brasil, esquerda quer fazer uma Cuba gigante por aqui. Um conjunto de argumentos absurdos, que por sinal eram usados a torto e a direito pelo regime militar. Como se ser de direita, antipetista e liberal não fosse uma ideologia. É ideologia também. Pode ser respeitável, mas é ideologia sim. Tem de ser burro demais para não ver isso.
Na verdade essa é uma característica histórica da direita. Adoram se comportar como se estivessem preocupados com o bem de todos, enquanto a esquerda supostamente só se preocupa com luta de classes, pobres, etc. E dá-lhe "classe média sofre". Na verdade historicamente a direita usa o nacionalismo como forma de criar consensos e escantear conflitos. Isso é um clássico direitista: a ditadura mesmo adorava tudo o que sugerisse essa versão patrioteira do nacionalismo, como seleção brasileira, desfiles de 7 de setembro, etc. Tudo para que essa patriotada toda fosse um ponto de união e consenso, escondendo todos os conflitos e desigualdades que eles tanto queriam que ninguém percebesse.
Um argumento a mais, derivado do anterior. Não é difícil de entender; há mil formas diferentes de ser nacionalista. Eu mesmo sou um. Amo o Brasil. Tive oportunidades profissionais para sair daqui. Mas não saio. Não consigo me imaginar vivendo em qualquer outro país. Quero lutar pelo Brasil. Pelo projeto de Brasil em que acredito. Outras pessoas têm outros projetos para o país e outras visões sobre o que é ser nacionalista. Tudo bem. Não acho que exista uma maneira "certa" e outra "errada" de ser brasileiro. Mas se assim é, que me deixem ser nacionalista como eu quiser. O que significa sim uma luta pelos mais pobres, e o uso do vermelho como símbolo do que acredito ser melhor para todos nós. Discorda? Ok, graças a Deus e a muita gente que lutou e sofreu por isso, somos uma democracia. Todos os projetos nacionalistas podem conviver. Mas isso de "sou mais brasileiro que você" é super autoritário, né? Ainda mais na boca de quem tem Miami como aspiração.
Mas o que mais me irrita não é nada disso. A pior parte é outra. Tivemos eleições em outubro. A maioria dos brasileiros votou pela continuidade de Dilma Rousseff. Que alguém não goste disso, ok, entendo, cansei de perder eleições. Que muitos não se sintam representados pela vitória petista me parece super hiper mega aceitável. Até aí tudo bem. Mas aqui vou citar um político importante uruguaio que não é José Mujica, mas seu opositor direitista Lacalle Pou, logo após perder as eleições presidenciais de novembro passado: "eleições se ganham e se perdem. o que importa é a vontade do povo".
Exatamente isso. Democracia é quando temos eleições livres, os vencedores governam, e os perdedores vão para a oposição. Mas não é o que estamos vendo. Aqui vemos pessoas que não aceitaram a derrota, que acham que quem vota no PT é burro e ignorante, quando não vendido. Então cabe a eles, derrotados, membros da elite bronzeada, falar em nome dos que não sabem o que fazem. Essa é minha irritação: a certeza que essas pessoas têm de que estão certas, e que os que pensam diferente delas são um bando de pobres coitados. Então que resta mais do que sair para a rua usando verde e amarelo, as cores da pátria, falando em nome de todos, já que quem pensa diferente deles não sabe o que está fazendo?
No fundo é isso o que me aborrece. Eles usam verde e amarelo querendo dizer o mesmo que brancos que se acham os líderes da luta anti racista, só porque gostam da empregada doméstica e até dão peru pra ela no natal. São como heteros que acham que sabem o que os gays sofrem apenas porque acham super legal ostentar amigo homossexual por ai dizendo que "gays são legais". Quem vai para a rua protestar contra quem foi escolhido pela maioria da população pretendendo falar em nome desse bando de pobres coitados que não sabem votar estão fazendo a mesmíssima coisa: sendo condescendente com os subalternos e pretendendo falar em nome deles.
Essas pessoas que usam verde e amarelo querendo falar em nome dos outros não entenderam algo básico. Mulheres, gays, homossexuais, nordestinos e demais grupos subalternos sofrem pra caralho sim, mas sabem falar por si próprios. Não precisam de gente privilegiada falando por eles não. Eles são crescidos, vacinados e sabem o que querem. Se o que eles querem não é o que você quer, paciência. Resolva isso de forma simples: fale por você. Você tem todo o direito de ter opinião. Mas não precisa falar pelos outros. Eles sabem falar. E quando você acha que fala por eles está apenas eternizando a condescendência dos dominantes que acham que sabem o que os subalternos querem melhor que eles próprios.
segunda-feira, 13 de abril de 2015
O fracasso das manifestações do domingo
Não há como discutir: as manifestações de domingo foram um fracasso. Em muitas grandes capitais brasileiras não chegaram a 10 mil presentes. Mesmo a capital do antipetismo, São Paulo, o público, mesmo sendo muito interessante, foi apenas metade da passeata anterior (sempre me guiando pelos números do Datafolha). Ou seja, um bom resultado em números absolutos, mas uma derrota em termos do parâmetro estabelecido no mês passado. Pelo pouco que vi, mesmo veículos hostis ao governo fizeram leitura semelhante. A questão é: por que?
Pra começar digo que não acho que a resistência ao governo tenha diminuído. A questão me parece estar mais no quesito da motivação. Pois uma coisa é acreditar em algo. Outra coisa é estar disposto a sair de casa e passar o domingo na rua defendendo a mesma tese. Isso vale para essa causa e para qualquer outra. Me parece claro que os manifestantes oposicionistas perderam o vigor, ainda que não tenham mudado de ideia a respeito do governo.
Se assim for, terá sido um grande erro dos organizadores marcar um segundo evento sobre a mesmíssima coisa um mês depois do primeiro sem que nenhum elemento novo tenha aparecido. As pessoas julgaram já ter dado seu recado e não viram sentido em voltar às ruas pelo mesmo motivo em um contexto diferente. Afinal, em março o impeachment era o grande tema do dia. Hoje não mais.
Sim, pois um efeito colateral das votações desastrosas do congresso nacional acabou sendo favorável ao governo em um certo sentido. A redução da maioridade penal e a terceirização ocuparam o debate político, reduzindo sensivelmente o espaço de debate sobre o impeachment. A esquerda e os governistas, que estavam cada dia mais descrentes do governo, passaram a se focar completamente na crítica a esses projetos. Claramente a muitos não pareceu fazer tanto sentido sair de casa uma vez mais pelo mesmo motivo em um momento em que o debate mudou.
Um outro elemento é que o tal apartidarismo da manifestação abriu margem para coisas inimagináveis. Pessoas defendendo o regime militar. Malucos que acham que o Brasil é comunista. Na última tinha até supostos integralistas reclamando do sistema dos 3 poderes e xingando Montesquieu. Não faço ideia do percentual de presentes nas manifestações que defende coisas assim, mas inevitavelmente essa bizarria chamou a atenção, por motivos simbólicos. Também houve outros tipos de bizarrice, como gente que acha que Aécio assume em caso de impeachment de Dilma e outros com faixas de teor altamente violento contra o PT e outras coisas de péssimo gosto. Sei lá, se eu fosse numa manifestação de defesa do governo e encontrasse gente defendendo o stalinismo e pedindo a morte de Aécio e Alckmin eu não voltaria na seguinte.
E ainda há a total ausência do PSDB. Sem querer ser confundido com essas coisas absurdas citadas acima (com toda a razão, aliás), temendo ser chamado de golpista (igualmente correto), mas vendo muitos de seus eleitores envolvidos no processo, e pouco disposto a ver a corrupção ser varrida do país, já que também não são santos, o partido adotou uma postura anódina. Encorajou vagamente o protesto, mas ao menos que eu tenha visto, nenhum de suas figuras mais importantes esteve presente. E convenhamos: existem esses grupelhos que fazem sucesso em rede social, mas só o PSDB teria a capacidade de mobilizar de verdade uma grande quantidade de pessoas num cenário desses. Sem o PSDB se tem apenas um aglomerado de grupos diferentes contra o PT mas sem nenhuma agenda positiva. Não vejo como algo assim mobilizar de verdade muita gente por muito tempo. Sem falar que com isso tudo a manifestação acabou dominada pelos piores tipos, como os citados anteriormente, o que só enfraquece e torna passível de críticas o evento.
Enfim, o último domingo não chegou a ser uma vitória do governo, que segue com baixa popularidade e perdido sobre como sair da situação econômica e política em que se meteu. Mas o fantasma do impeachment parece afastado. Política é o reino do tempo curto, então nada impede que amanhã a configuração seja outra. Mas tenho certeza absoluta que Dilma dormiu ontem seu melhor sono nos últimos meses.
Pra começar digo que não acho que a resistência ao governo tenha diminuído. A questão me parece estar mais no quesito da motivação. Pois uma coisa é acreditar em algo. Outra coisa é estar disposto a sair de casa e passar o domingo na rua defendendo a mesma tese. Isso vale para essa causa e para qualquer outra. Me parece claro que os manifestantes oposicionistas perderam o vigor, ainda que não tenham mudado de ideia a respeito do governo.
Se assim for, terá sido um grande erro dos organizadores marcar um segundo evento sobre a mesmíssima coisa um mês depois do primeiro sem que nenhum elemento novo tenha aparecido. As pessoas julgaram já ter dado seu recado e não viram sentido em voltar às ruas pelo mesmo motivo em um contexto diferente. Afinal, em março o impeachment era o grande tema do dia. Hoje não mais.
Sim, pois um efeito colateral das votações desastrosas do congresso nacional acabou sendo favorável ao governo em um certo sentido. A redução da maioridade penal e a terceirização ocuparam o debate político, reduzindo sensivelmente o espaço de debate sobre o impeachment. A esquerda e os governistas, que estavam cada dia mais descrentes do governo, passaram a se focar completamente na crítica a esses projetos. Claramente a muitos não pareceu fazer tanto sentido sair de casa uma vez mais pelo mesmo motivo em um momento em que o debate mudou.
Um outro elemento é que o tal apartidarismo da manifestação abriu margem para coisas inimagináveis. Pessoas defendendo o regime militar. Malucos que acham que o Brasil é comunista. Na última tinha até supostos integralistas reclamando do sistema dos 3 poderes e xingando Montesquieu. Não faço ideia do percentual de presentes nas manifestações que defende coisas assim, mas inevitavelmente essa bizarria chamou a atenção, por motivos simbólicos. Também houve outros tipos de bizarrice, como gente que acha que Aécio assume em caso de impeachment de Dilma e outros com faixas de teor altamente violento contra o PT e outras coisas de péssimo gosto. Sei lá, se eu fosse numa manifestação de defesa do governo e encontrasse gente defendendo o stalinismo e pedindo a morte de Aécio e Alckmin eu não voltaria na seguinte.
E ainda há a total ausência do PSDB. Sem querer ser confundido com essas coisas absurdas citadas acima (com toda a razão, aliás), temendo ser chamado de golpista (igualmente correto), mas vendo muitos de seus eleitores envolvidos no processo, e pouco disposto a ver a corrupção ser varrida do país, já que também não são santos, o partido adotou uma postura anódina. Encorajou vagamente o protesto, mas ao menos que eu tenha visto, nenhum de suas figuras mais importantes esteve presente. E convenhamos: existem esses grupelhos que fazem sucesso em rede social, mas só o PSDB teria a capacidade de mobilizar de verdade uma grande quantidade de pessoas num cenário desses. Sem o PSDB se tem apenas um aglomerado de grupos diferentes contra o PT mas sem nenhuma agenda positiva. Não vejo como algo assim mobilizar de verdade muita gente por muito tempo. Sem falar que com isso tudo a manifestação acabou dominada pelos piores tipos, como os citados anteriormente, o que só enfraquece e torna passível de críticas o evento.
Enfim, o último domingo não chegou a ser uma vitória do governo, que segue com baixa popularidade e perdido sobre como sair da situação econômica e política em que se meteu. Mas o fantasma do impeachment parece afastado. Política é o reino do tempo curto, então nada impede que amanhã a configuração seja outra. Mas tenho certeza absoluta que Dilma dormiu ontem seu melhor sono nos últimos meses.
quarta-feira, 1 de abril de 2015
Quando o racismo alheio escancara o nosso
Ontem jogavam Corinthians x Danubio, do Uruguai, pela Libertadores. Rolava a bola em Itaquera, a partida seguia 0 a 0 quando aconteceu o lance que origina tudo o que virá a seguir. Em um lance confuso, o uruguaio Cristian González chamou o corinthiano Elias de "macaco". Uma atitude intolerável, abjeta, inominável, que segundo nossas leis é caso de cadeia. Salvo algum saudosista da escravidão, creio que isso é ponto pacífico. Mas o que veio depois merece reflexão.
Por motivos mais do que compreensíveis, Elias ficou transtornado, tenso, descontrolado. Eu nunca o havia visto daquele jeito. E fiquei feliz quando ele criou a jogada do segundo gol do Corinthians, vibrando com toda a emoção. Nitidamente encarou aquilo como um "quem é o macaco agora?". No intervalo, interpelado pelos repórteres se teria havido o comentário racista, respondeu: "Disse, mas eu preciso me concentrar na partida". Seus colegas de time confirmaram o que houve.
Do meu ponto de vista, Elias foi absolutamente digno. Ficou revoltado com o que ouviu, deixou isso absolutamente claro, aos berros e gestos. Se encheu de brios e se vingou da maneira que sabe: dentro de campo. Se vingou da maneira que conhece: com a bola nos pés. Possivelmente eu e você gostaríamos que não fosse assim. Que não houvesse xingamento. E se houvesse, que tivesse terminado em cadeia. Mas Elias se vingou da maneira que sabe: em campo.
Mas o pior ainda viria. Foi o jogo terminar e o jornalista Luis Augusto Simon, do UOL, postou numa rede social: "jogadores negros precisam aprender com jornalistas brancos como protestar contra o racismo". Deixando claro que o jornalista em questão é de esquerda e tem uma carreira admirável. Mas puxa vida, isso só piora a situação. Sério que ainda vivemos em um mundo em que os privilegiados se consideram na posição de dar aulas aos subalternos sobre como se comportar perante situações de discriminação? Ainda vivemos num mundo em que os dominantes simpáticos à causa dos privilegiados sentam no alto de uma montanha de condescendência perante os pobres e ignorantes excluídos e querem dar a eles lições de comportamento político?
E nem vamos entrar muito na questão dos "jornalistas brancos" como líderes da luta anti racista. "Jornalista branco" é Ali Kamel, que escreve livro dizendo que não existe racismo no Brasil. "Jornalista branco" é um termo que engloba um monte de gente que é contra as cotas, que diz que como o Brasil não teve apartheid não existe racismo, etc. (também tem muita gente boa, claro, cito os piores exemplos apenas para mostrar o despropósito de pensar na categoria "jornalistas brancos" como os verdadeiros defensores da causa negra). E como o Menon chegou a conclusão de que, apesar de esse monte de lixo racista escrito pelos "jornalistas brancos" esse grupo é a ponta de lança da luta contra o racismo brasileiro, o espelho em que os negros devem se mirar?
Mas não ficou por aí. O jogo seguiu, o Corinthians ganhou facilmente, e no balanço da partida o comentarista da Fox Sports se referiu ao episódio de racismo como "uma deselegancia". Sim, um branco chamando um negro de macaco é uma "deselegância". Nome do comentarista: Paulo Vinícius Coelho, um dos mais respeitados jornalistas esportivos brasileiros, e com toda a razão ("jornalista branco", como diria o Menon, aquele grupo que sabe melhor que os negros o que os negros devem fazer). O narrador o interrompeu e disse "deselegância não, isso é racismo, que é crime", no que fez muitíssimo bem.
Talvez se possa ter a condescendência com o comentarista em questão. Mas depois do jogo ele insistiu em usar o termo "raça negra", algo que caiu em descrédito há décadas. Dizer que brancos e negros são "raças" é como dizer que heterossexual e homossexual são "opções sexuais", algo absolutamente inaceitável. Palavras que seguem insistindo com a condescendência com a violência dos opressores sobre os oprimidos.
Em suma, Elias fez o que acreditava ser sua parte. Se indignou, protestou, lutou, deu o troco. Certamente saiu de campo com ódio, mas sabendo que tinha lutado com as armas que a sociedade lhe deu. E foi patrulhado, criticado, avacalhado, por gente que não faz idéia do que é sentir o preconceito na pele. Da parte de gente que olha bem de longe e acha que sabe o que é uma vida de subalternidade a ponto de querer ensinar a essas pessoas como reagir em situações assim.
E ao fim disso tudo todos fomos dormir em paz. Os jogos terminaram, as ofensas racistas serão esquecidas novamente, os "jornalistas brancos" seguirão considerando que têm o papel pedagógico de ensinar aos negros o que fazer. Mais uma oportunidade se perdeu. E vamos morrendo lentamente.
Por motivos mais do que compreensíveis, Elias ficou transtornado, tenso, descontrolado. Eu nunca o havia visto daquele jeito. E fiquei feliz quando ele criou a jogada do segundo gol do Corinthians, vibrando com toda a emoção. Nitidamente encarou aquilo como um "quem é o macaco agora?". No intervalo, interpelado pelos repórteres se teria havido o comentário racista, respondeu: "Disse, mas eu preciso me concentrar na partida". Seus colegas de time confirmaram o que houve.
Do meu ponto de vista, Elias foi absolutamente digno. Ficou revoltado com o que ouviu, deixou isso absolutamente claro, aos berros e gestos. Se encheu de brios e se vingou da maneira que sabe: dentro de campo. Se vingou da maneira que conhece: com a bola nos pés. Possivelmente eu e você gostaríamos que não fosse assim. Que não houvesse xingamento. E se houvesse, que tivesse terminado em cadeia. Mas Elias se vingou da maneira que sabe: em campo.
Mas o pior ainda viria. Foi o jogo terminar e o jornalista Luis Augusto Simon, do UOL, postou numa rede social: "jogadores negros precisam aprender com jornalistas brancos como protestar contra o racismo". Deixando claro que o jornalista em questão é de esquerda e tem uma carreira admirável. Mas puxa vida, isso só piora a situação. Sério que ainda vivemos em um mundo em que os privilegiados se consideram na posição de dar aulas aos subalternos sobre como se comportar perante situações de discriminação? Ainda vivemos num mundo em que os dominantes simpáticos à causa dos privilegiados sentam no alto de uma montanha de condescendência perante os pobres e ignorantes excluídos e querem dar a eles lições de comportamento político?
E nem vamos entrar muito na questão dos "jornalistas brancos" como líderes da luta anti racista. "Jornalista branco" é Ali Kamel, que escreve livro dizendo que não existe racismo no Brasil. "Jornalista branco" é um termo que engloba um monte de gente que é contra as cotas, que diz que como o Brasil não teve apartheid não existe racismo, etc. (também tem muita gente boa, claro, cito os piores exemplos apenas para mostrar o despropósito de pensar na categoria "jornalistas brancos" como os verdadeiros defensores da causa negra). E como o Menon chegou a conclusão de que, apesar de esse monte de lixo racista escrito pelos "jornalistas brancos" esse grupo é a ponta de lança da luta contra o racismo brasileiro, o espelho em que os negros devem se mirar?
Mas não ficou por aí. O jogo seguiu, o Corinthians ganhou facilmente, e no balanço da partida o comentarista da Fox Sports se referiu ao episódio de racismo como "uma deselegancia". Sim, um branco chamando um negro de macaco é uma "deselegância". Nome do comentarista: Paulo Vinícius Coelho, um dos mais respeitados jornalistas esportivos brasileiros, e com toda a razão ("jornalista branco", como diria o Menon, aquele grupo que sabe melhor que os negros o que os negros devem fazer). O narrador o interrompeu e disse "deselegância não, isso é racismo, que é crime", no que fez muitíssimo bem.
Talvez se possa ter a condescendência com o comentarista em questão. Mas depois do jogo ele insistiu em usar o termo "raça negra", algo que caiu em descrédito há décadas. Dizer que brancos e negros são "raças" é como dizer que heterossexual e homossexual são "opções sexuais", algo absolutamente inaceitável. Palavras que seguem insistindo com a condescendência com a violência dos opressores sobre os oprimidos.
Em suma, Elias fez o que acreditava ser sua parte. Se indignou, protestou, lutou, deu o troco. Certamente saiu de campo com ódio, mas sabendo que tinha lutado com as armas que a sociedade lhe deu. E foi patrulhado, criticado, avacalhado, por gente que não faz idéia do que é sentir o preconceito na pele. Da parte de gente que olha bem de longe e acha que sabe o que é uma vida de subalternidade a ponto de querer ensinar a essas pessoas como reagir em situações assim.
E ao fim disso tudo todos fomos dormir em paz. Os jogos terminaram, as ofensas racistas serão esquecidas novamente, os "jornalistas brancos" seguirão considerando que têm o papel pedagógico de ensinar aos negros o que fazer. Mais uma oportunidade se perdeu. E vamos morrendo lentamente.
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