segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Brasil encaretou? Eu não acho.

Tenho visto gente de todas as idades dizendo que o Brasil vem vivendo um grande retrocesso em temas como machismo, racismo, homofobia, drogas, aborto, etc. Eu não concordo minimamente. E vou explicar por que. Mas primeiro, quero expor dois pressupostos deste texto, que pretende ser mais reflexivo que aqueles escritos de cabeça quente, aqueles pautados pelo imediatismo e também os que jogam pra galera em busca das curtidas e cliques de quem mal lê a manchete e já concorda ou discorda.

1) Ao contrário do que diz uma visão idealizada, os anos 60 e 70 não eram um mega Woodstock. Eram um período de violentíssimo racismo, machismo e homofobia. Aquele mundinho hippie era mínimo; 2) há coisas que sempre existiram, mas a gente não sabia. Pessoas sendo mortas pela sua orientação, episódios de discriminação, mulheres espancadas por maridos escrotos, tudo isso é mais velho que andar pra frente. Mas a grande mídia não noticiava, como não noticia até hoje. Sem as redes sociais, não saberíamos que PMs baianos executaram adolescentes desarmados em Salvador, o que aconteceu com Amarildo, e coisas do tipo. Mas essas coisas sempre existiram. Mas não sabíamos.

Nasci em 1972. No caso das mulheres, o que me lembro é de algo que foi marcante quando era criança. Um playboy carioca matou a mulher porque a flagrou com uma amante. Não apenas foi absolvido como saiu carregado do tribunal. Sim, podia matar a mulher, dizer que foi "por amor" (mesmo que fosse apenas ciúme) e a lei achava tudo bem. Divórcio só passou a existir naquela época. Inclusive depois a Globo fez uma minissérie chamada "Quem ama não mata", justamente contra a ideia dominante de que se podia matar a mulher "por amor". Hoje isso existe, sabemos disso. Mas não é social e juridicamente aprovado. Na mesma época a Globo fez um programa matutino, TV Mulher, que tinha coisas como a Marta Suplicy dando aulas de sexo para mulheres casadas. Mulheres sexualmente ativas há 10, 20, 30 anos, muitas das quais instruídas, e não sabiam o que era clitóris. Pense que mundo era esse.

Na época tinha gente bradando contra as "feminazis"? Não tinha. Mas não porque o país era melhor. Justamente porque era pior. Feministas eram poucas, "invisíveis", não tinham onde se expressar e eram motivo de piada. A supremacia masculina era total. Não havia a menor necessidade de combater os que defendiam direitos para mulheres. Isso nem era uma questão. Ou seja: o ódio é um sintoma evidente de que os privilegiados se sentem ameaçados. É uma coisa boa.

Quanto ao racismo a coisa não é muito diferente. Fazíamos piadas super racistas, colocávamos apelidos tipo "nublado", "sombra" em nossos amigos negros enquanto os chamavamos de macacos, mas era piada, com carinho, o Brasil não era racista, isso era coisa de americano. O tom predominante das comemorações do centenário da abolição da escravatura, em 1988, foi "congraçamento de um povo em que não há racismo e em que a escravidão se encerrou pacificamente, com uma dádiva da elite ao amado povo negro". Movimento negro nem existia na mídia. No meu próprio tempo de faculdade (primeira metade dos anos 90) o debate entre os alunos era pífio. Se lamentava o racismo explícito e parava por aí. Esse era o tom. Ser progressista era ser contra coisas como um pai proibir a filha de namorar um negro (eu vi isso em 1990). Mas esse era o limite.

Ao longo dos anos 1990 a coisa teve um grande avanço. O movimento negro cresceu, se empoderou, botou sua agenda na rua, conscientizou muitos brancos de que racismo era muito mais que bater ou xingar negros, que fazer piada racista NUNCA era brincadeira. De FHC em diante tivemos presidentes simpáticos à causa, as cotas vieram pra ficar. Não tive um único colega negro em toda a minha graduação, mas tenho muitos alunos negros hoje. Pessoas que antes se diziam "moreno", "pardo", hoje tem orgulho de ser negros. Falta muito, mas muito para chegarmos lá. Mas o que há de ruim sempre existiu. Não piorou. Nos anos 80 já não tinhamos médicos negros e a PM já os via como suspeitos. Precisamos lutar pra acabar com isso, mas não são sinais de piora.

E vamos agora ao ponto que é o tema do momento, os homossexuais. É fácil olhar para 30 anos atrás, ver que não havia Malafaias e Felicianos e pensar que pioramos. Eu acho exatamente o contrário. Há uma coisa que a história nos ensina. Os privilegiados ficarem mais e mais raivosos e necessitando exibir mais e mais poder, é sintoma de que estão se sentindo mais ameaçados do que nunca. Exemplo: ninguém em 1770 defendia a escravidão. Ela era um dado óbvio da realidade, não precisava ser defendida. Mas abra um jornal de 1870 e você verá gente defendendo a mesma de forma absolutamente exaltada. Afinal, sentiam que o cenário era desfavorável.

Em 1980 não havia necessidade de Malafaias. O ambiente social à volta de um gay era tão avassalador que só lhe restavam tres opções: 1) sumir em busca de um reduto em que sua orientação não fosse um defeito (ou seja, deixar de existir para aquele grupo); 2) Se conformar a uma vida miseravelmente infeliz de prática sexual hétero; 3) Inventar histórias absolutamente mirabolantes para nunca ser visto com ninguem do sexo oposto (namoros à distancia, coisas assim). Na TV gays eram apenas uma piada, a bicha ridícula e cheia de trejeitos. Não era necessário ninguém na mídia e nas redes sociais despejando discurso homofóbico. A opressão que a sociedade impingia a essas pessoas era suficiente (e é disso que essa gente tem tanta saudade).

A existência dessas pessoas, o ódio que destilam a pessoas que não fazem nada que interfira nas vidas deles, a repetição doentia do discurso deles por parte de tantos fiéis, os sofismas absurdos repetidos 24 horas por dia... tudo isso só me mostra uma coisa: desespero. Isso inclui a repetição desesperada de uma frase escrita há mais de 3 mil anos atrás no Levítico, o mesmo livro que diz que você pode ter escravos desde que não sejam israelitas, proíbe o consumo de carne de porco, diz que mulheres que deram à luz são impuras, proíbe o cultivo de cereais diferentes no mesmo campo, e por aí vai. Sério, gente, isso é desespero, nada mais. Não são ameaças, são provas de que a humanidade evolui, e que quem tem saudades daquele mundo descrito anteriormente não sabe mais o que fazer.

Em 1982 eu estava na 4a série. Na minha turma havia um rapaz de evidente orientação gay. José Frederico era o nome dele. Todo dia na hora da chamada todo mundo vaiava seu nome quando chamado. Nenhum professor nunca fez nada. Como a turma inteira, eu vaiava também. Acabou o ano e nunca mais vi José Frederico, que mudou de escola, fácil imaginar por que. 33 anos depois, estou aqui me programando pra ir na parada gay com minha filha lésbica vestido de Frida Kahlo, maquiado e vestido pelos amigos gays dela. A humanidade avançou muito nesse quesito.

Claro que todo dia ficamos sabendo de algo que nos racha por dentro. Pessoas mortas, agredidas ou discriminadas por gênero, cor da pele e orientação sexual, por exemplo, que foram os temas mencionados com mais ênfase aqui (mas longe de ser os únicos). Mas isso não quer dizer que pioramos. Quer dizer que: 1) Hoje, ao contrário de 30 anos atrás, há milhões de pessoas sendo informadas sobre essas coisas e se indignando com isso; 2) essas pessoas mostram o desespero desses grupos privilegiados. Sim, falta muito, sim, sofreremos muito ainda, sim, sofreremos muitas derrotas (com esse congresso aí então...), mas no longo prazo não há o que fazer. A história joga a nosso favor. Vivemos num mundo muito melhor que aquele em que nasci. E quando tiverem minha idade, meus netos viverão em um muito melhor que o de hoje. Não tenho nenhuma dúvida.


Um comentário:

  1. Texto sensacional! Obrigado por proporcionar boa reflexão nesse mundo de hoje. Um pouco de esperança nesse ambiente de bombardeios diários de caretice é um refresco. O mundo não encaretou mas a percepção de que ele é assim incomoda mais hoje. Feliz daquele que é ignorante.

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