Nasci em 1972, o que para meus alunos significa que eu convivi com dinossauros. Assim, cresci num país que tinha muitas diferenças em relação àquele em que vivemos hoje, ainda que muitos dos problemas sejam os mesmos daquela época. Uma notável diferença é a forma pela qual lidamos com a questão racial.
Seguimos sendo um país racista. Mas acredite: era pior. Chamar negros de crioulo, macaco, breu, noite, e coisas assim, era totalmente "normal". Todo mundo fazia isso (eu inclusive, devo tristemente confessar). Na TV negros eram motoristas e jogadores de futebol. Ou cachaceiros. Mulheres negras eram empregadas ou mulatas gostosas. Todo mundo achava a coisa mais normal do mundo que espaços de classe média e alta fossem inteiramente ocupados por brancos. Pessoas brancas que namorassem negros eram severamente reprimidas por seu círculo, sobretudo se fossem mulheres (sim, vi casos assim).
Mas, imaginem vocês, todos concordavam que não existia racismo no Brasil. Os apelidos? Brincadeira, imagina, tenho vários amigos negros. Não deixar a filha namorar negro? Veja, não é que eu seja racista, mas tenho o direito de não querer um neto mulato, né? Falar de racismo era coisa de comunista. O Brasil era um país cordial, em que a escravidão tinha sido branda e os negros haviam sido incorporados sem preconceito à sociedade. Sim, infelizmente eram mais pobres que nós. Mas não era racismo. Claro que não. Era um problema social. Infelizmente a escravidão os colocou na base da pirâmide social de um país pobre. Mas quando a pobreza acabar, isso será resolvido.
A partir de fins dos anos 80 isso começou a mudar. Lentamente as cotas deixaram de ser vistas como "coisa de americano, lá eles tiveram racismo, aqui só há um problema social". Timidamente as novelas começaram a mostrar pessoas negras em posições menos subalternas (sim, preferencialmente "mulatas gostosas", mas enfim...). Fernando Henrique Cardoso, autor de importantíssimo (ainda que hoje completamente superado) livro sobre escravidão, trouxe as cotas para o debate. Lula seguiu a toada. Hoje seguimos racistas, mas o avanço em alguns pontos nos últimos 20 anos é inegável.
E nesse período o mundo acadêmico deu sua contribuição. Começando com o grande Carlos Hasenbalg, pesquisadores puderam demonstrar, de forma clara e cristalina, sem espaço para refutação, que negros são discriminados sim. Esses autores jogaram por terra fantasias antigas como "na favela não existe racismo" ou "quando melhorarmos a educação pública os negros se igualarão aos brancos". Esses autores foram brilhantes ao PROVAR que dentro de uma mesma sala de aula de escola pública os alunos negros eram discriminados pelos seus professores e por seus colegas. O DEVASTADOR livro de Rita de Cássia Fazzi, O Drama Racial das Crianças Brasileiras, foi a última pá de cal em cima dos que ainda acham que brancos e negros numa mesma escola competem em condições iguais.
Nesse contexto foram implantadas as cotas. Quem tem mais de 30 anos se lembra: se dizia que o nível da universidade baixaria, com tantos alunos incapazes (isso não é racismo, claro), que os alunos cotistas não conseguiriam acompanhar o ritmo e deixariam a universidade (outro argumento super democrático) e que isso criaria um ódio racial por parte dos alunos brancos. Enfim, se argumentava, imaginem, que as cotas seriam ruins para os negros. Mas elas foram implantadas e nada disso aconteceu. Não vimos linchamentos nas universidades e os alunos cotistas mantém regularmente índices de aprovação e evasão tão bons ou melhores que os alunos "normais".
Mas, por incrível que pareça, ainda tem gente que é contra. Não é um argumento partidário: PT, PSDB e vários outros partidos implantaram as cotas raciais em seus governos. Não é baseado em argumentos técnicos, que inexistem, até onde sei. Até onde posso perceber, é apenas uma incapacidade que muitos têm de reconhecer um dado simples e óbvio: o Brasil é um país racista. Nenhum de nós acha estranho entrar num hospital e só ver médicos brancos. Chegar a um escritório de advocacia e ver um advogado branco. Sabemos que é assim. Sabemos que isso não é fruto da escravidão, que já acabou há mais de 125 anos. Mas ainda tem quem se negue a ver o que explode na sua cara. Paciência. Que fiquem morrendo de raiva ao ver negros desempenhando funções que não estamos acostumados a ver. Quem acredita na democracia só tem o que comemorar. Quem não gosta... que volte ao século XIX.
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