segunda-feira, 7 de abril de 2014

Sheherazade, democracia e liberdade

Sábado me deparei com a notícia de que a tal apresentadora do SBT tinha sido limada do canal. Caí na idiotice suprema de ler os comentários da notícia. Uns 90% falava asneiras tipo "ela tem a coragem de falar a verdade, por isso foi censurada por esses comunistas do governo". A parte da ditadura comunista é tão coisa de gente com problemas mentais que nem dá pra discutir. Vou me ater a dois pontos.

O primeiro é essa história de "coragem de dizer a verdade". Não sei se vocês notaram, mas tem uma vibe reaça super nojenta no ar. É tipo assim: faço algo super babaca e escroto humilhando oprimidos e ainda poso de "corajoso". Tipo fazer piada com mulheres estupradas e judeus executados em campo de concentração. Aplaudir quando pessoas lincham um negro pobre em plena luz do dia. Que "coragem" é preciso para isso? Desde quando atacar os oprimidos e derrotados e se colocar ao lado dos vencedores e opressores é um ato de coragem?

Isso nos leva ao segundo ponto, bem mais perigoso. O raciocínio que indiquei no parágrafo acima parte do pressuposto de que o mundo é dominado pela esquerda, pelos negros, pelos gays, etc. Eu sei, isso soa quase doentio, já que esses grupos são claramente oprimidos na nossa sociedade. Mas aí é que está: essas pessoas são tão babacas, tão escrotas, tão nojentas, que para elas os avanços (mesmo os menores deles) que esses grupos conseguiram, já parecem absolutamente intoleráveis. Tipo: um beijo gay em uma novela e pronto, vivemos numa ditadura gay em que é proibido ser hétero.

Chateia particularmente essas pessoas o fato de elas não poderem falar o que quiserem. Por elas, fariam piadinhas de negro, diriam que gays são perversões da natureza, que nordestino nasceu pra comer areia e morrer de sede, etc. Como não podem, imagine você, concluem que são as grandes oprimidas da sociedade. Vítimas cruéis de um mundo que deveria ser democrático. Mas não é. Não existe liberdade neste mundo cruel. Tadinhos de nós brancos, héteros, homens de classe média sulistas. Tudo é contra nós. Pelo menos temos a Sheherazade para dizer a verdade por nós... NÃO, PERA!

A questão toda é que, duzentos e tantos anos depois da Revolução Francesa e da Independência dos EUA essas pessoas ainda não entenderam minimamente o que é democracia. Desconheço qualquer pensador que tenha caracterizado a democracia como o sistema em que temos a liberdade de fazermos qualquer coisa que quisermos. Isso não existe. O nome disso não é democracia. É selvageria.

Na verdade os principais esforços dos criadores do liberalismo era exatamente: como garantir a liberdade sem cair na barbárie? Como um Estado poderia existir sem correr o risco de cair na tirania? Os melhores cérebros da época se dedicaram a essas delicadíssimas questões. Daí saiu o liberalismo político, regime sob o qual vivemos, gostemos disso ou não. Nele há uma espécie de contrato implícito: as leis colocam os limites à liberdade que a sociedade considera necessários, e o Estado garante seu cumprimento. Para além disso, somos livres para fazermos o que quisermos.

Ou seja, a criatura em questão não foi censurada. Ela perdeu seu emprego numa empresa privada, algo que acontece todos os dias. E é muito pouco, quase nada, perto do que ela fez. Ela cometeu um CRIME. Deveria estar respondendo na justiça por isso. Mas por incrível que pareça não falta quem ache que isso faz dela uma vítima. Pior ainda, talvez, acham que pessoas se mobilizarem para defender o que acreditam e lutarem para que ela seja punida pelo que fez é autoritarismo, quando isso nada mais é que um mecanismo clássico da democracia.

Incrível que a gente esteja conversando sobre isso em pleno 2014. Parece que estamos nos debates do século XIX, quando os fazendeiros achavam absurdo que quisesse tolher a liberdade deles de terem escravos. Sim, era exatamente dessa maneira. Por mais incrível que possa parecer, a abolição da escravidão era entendida por eles como um tolhimento injustificável à liberdade deles. Só a escravidão daria liberdade plena às pessoas. Imagine só.

Essa historinha ilumina bem o que temos hoje. Claro que quando essas pessoas falam em democracia e liberdade, estão pensando na liberdade DELAS fazerem o que quiserem, não importa as consequências que isso tenha para outras pessoas. Elas não querem que todos tenham os mesmos direitos. Estão preocupados só com a liberdade delas. Os outros que se danem. Ou seja: não entenderam NADA do que é democracia.

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