terça-feira, 1 de abril de 2014

50 anos do golpe. Ou: ando meio mal humorado

Muitos amigos tem reclamado do meu mal humor nos últimos dias. E eles têm razão. Estou mal humorado mesmo. Mas me desculpem: não me faltam razões para isso.

Vivemos um regime horroroso, de exceção. Liberdades suprimidas. Meu pai e meu tio, dois operários da Companhia Siderúrgica Nacional, foram presos em 1970. Nunca pegaram em armas. Não eram de nenhuma organização. Mas foram presos. Meu tio, arrimo de família desde os 15 anos, desde a morte do pai, ia trabalhar, e ficava um carro do exército na esquina da casa dele, matando de medo e terror suas seis irmãs (incluindo minha mãe), minha avó viuva e seu irmão menor. Todos em pânico que a qualquer momento a casa fosse invadida. Uma família vivendo um cotidiano de pânico e terror. Essas pessoas são minha família. Os conheço. Todos honestos, que acreditam em Deus, defendiam a liberdade, eram trabalhadores, ainda tentando se recuperar da morte precoce do meu avô. E eram perseguidos e aterrorizados pelos malditos representantes da ditadura. Bandos de filhos da puta. Miseráveis. Cretinos. Inferno é pouco pra essa gente.

Nasci em Porto Alegre, em 1972. Meu pai, minha mãe e meu tio não aguentaram mais o clima irrespirável, e foram buscar vida nova no sul do Brasil. Cresci de forma relativamente tranquila. Mas minha primeira lembrança de política é das eleições de 1978. Ninguém falava nada. Apareciam as fotos dos candidatos no horário eleitoral, e uma voz grave dizia seus nomes. Nada mais. Mais três anos, em 1981, estava na casa da minha avó e vi um programa eleitoral do PT. Lula criticava Delfim Neto e Ernane Galveas, responsáveis pela falência do Brasil no ano seguinte. Tremi de medo por imaginar que naquele momento o exército invadiria os estúdios da TV e o mataria. Um sentimento que nenhuma criança no universo deveria ter tido. Mas que eu tive. Afinal, cresci na ditadura. Todo dia cantava o hino nacional antes de assistir aula. Quem não cantasse tinha de decorar um monte de versículos da Bíblia para poder entrar em sala de aula. Tinha crescido naquele ambiente.

É uma história horrível, da qual nem tive coragem de contar as piores partes. Mas só o que relatei já fez gente que nunca viu ditadura cair no choro. Pense que para os padrões das ditaduras latino-americanas, essa história é suave. Nossa ditadura fez coisas infinitamente piores com outras famílias, e nem vamos falar do que houve na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Paraguai, etc. O que contei é horrível mas é piada perto do que outros viveram naquela época. Nosso sofrimento é mais do que justo. Mas houve quem teve motivos ainda maiores para sentir.

Sinto muita raiva disso tudo. Um ressentimento que nunca vai passar. Ninguém no mundo tinha o direito de ter feito isso com minha família, que nunca fez mal a ninguém. Mas eu tenho uma grande diferença em relação ao que sinto na maioria dos que são contra isso também. Noto uma tendência a imputar toda a culpa aos militares. Aí eu discordo. Os militares prenderam, mataram, torturaram, estrupraram, fato. Mas e os outros?

E os empresários, que deram dinheiro e outros tipos de ajuda, lucraram fortunas incalculaveis com isso, e hoje posam de esteios da nação? E os veículos de imprensa, que hoje querem nos convencer que são baluartes da democracia mas que estavam ao lado dos que perpetravam essas barbaridades? E o filho da puta de classe média que achava bem feito que os comunistas (= qualquer um que eles não gostavam) saíssem de cena para sobrarem empregos? E os sindicalistas pelegos que foram colocados em lugares chave para impedir reclamações contra os enormes arrochos salariais do período e hoje estão aí, felizes da vida?

Por outro lado. E os favelados de hoje que são filhos do êxodo rural que a ditadura causou? E as gerações de crianças que tiveram uma educação de merda e foram submetidos em todos os seus anos formativos à ideia de que o que importava era ter religião e obedecer os donos do poder (sei exatamente como é, é a minha geração)? E as pessoas que perderam suas terras? E o monopolio dos meios de comunicação, que ainda nos causa tantos danos? E as pessoas que, movidas pela miséria, tiveram de abandonar a terra em que nasceram e em que seus ancestrais viviam, para virarem estatísticas da pobreza e violência urbana?

Minha família pagou um preço alto na ditadura. Outras pagaram ainda mais. Mas no fim das contas a maioria do Brasil se viu com uma conta altíssima nas mãos (nem falei da inflação e da dívida externa, isso fica pra outro dia). E os verdadeiros culpados estão todos aí. Não apenas os militares que fizeram o serviço sujo. Mas os que os apoiaram e se beneficiaram disso. Empresários, veículos de mídia, respeitaveis cidadãos de classe média cuja preocupação suprema era encher o tanque do seu fusca... todos aí. Enormes de gordos com a ditadura. Enquanto nosso país ainda paga por isso.


E ainda tem historiador formado, com doutorado e carreira consagrada, que acha que só guerrilheiros tiveram motivos para ter medo dos militares. O que de certa forma legitima a repressão ("só tinha medo quem aprontava") e deslegitima todas as outras experiências. Não é pra ficar mal humorado?

2 comentários:

  1. Falou pouco, mas falou muito bem! Isso tem irritado muito a gente... TEm também uma moçada nova que compara a situação de hoje com a ditadura... pode? Que saco!

    ResponderExcluir