sábado, 29 de março de 2014
Um historiador consagrado fala sobre a ditadura
Este é um post que racionalmente eu sei que não deveria fazer. Mas há momentos na vida em que você simplesmente sabe que tem de fazer determinadas coisas. Profissionalmente eu sei que isso só pode me prejudicar. Também sei que estou dando voz a alguém que neste momento deveria ser ignorado, por mais importante que seja em sua área. Mas me perdoem. Há limite para tudo nesta vida.
Um historiador absolutamente excelente, chamado Ronaldo Vainfas, postou em sua página do facebook opiniões aterrorizantes sobre o regime militar. Na opinião dele, os historiadores e a mídia produzem relatos lamentáveis sobre o regime em questão. Dão voz a pessoas que invetam terem sido perseguidos. Faz os crimes da ditadura parecerem pequenos perto do nazi-fascismo. Diz que não existia censura ("censura zero", segundo ele, que só existia entre os historiadores "esquerdizantes, ignorantes", todos professando um marxismo esquemático (ele não se dá ao trabalho de explicar o que é isso). Lamenta a "bolsa-ditadura" que muitos desfrutam hoje, segundo ele, destinadas a "falsos perseguidos". E por aí vai.
Começo lamentando o silêncio de meus colegas sobre isso. Não de todos, mas da maioria deles. É um historiador muito importante na área de Colônia (com toda a justiça), tem trabalhos ótimos na área de historiografia e metodologia. Mas me dói ver pessoas que respeito imensamente, muitos dos quais são meus amigos, silenciarem sobre o assunto. Em parte por corporativismo. Provavelmente também por medo de afrontar uma estrelinha rodeada de puxa-sacos dispostos a aplaudir qualquer lixo que ele diga.
Não é que eu tenha discordâncias ideológicas com o texto em questão. Fosse isso e este post nem existiria. Por mais que eu discorde, por mais que eu odeie os defensores do regime, eu acho que é possível debater. Eles acham que havia a ameaça real de um golpe comunista, e que estávamos em guerra contra essa ameaça. Discordo do início ao fim. Acho que estão completamente errados. Mas há possibilidades de conversar sobre o assunto em termos aceitáveis.
Mas o que o texto do historiador em questão propõe não é isso. Ele não discute minimamente o contexto. Não coloca em questão a violência do regime. O inimigo dele são os opositores do regime. Que ele não qualifica de comunistas, de violentos ou de equivocados. Ele simplesmente diz que eram pessoas que não tinham motivo para ter medo de nada, que inventam sofrimentos que viveram e que hoje se refastelam nas "bolsas-ditadura".
Bolsonaro também diz isso. Tudo bem. Mas no caso é um HISTORIADOR. E dos melhores que temos. Falando como se Vladimir Herzog não tivesse sido assassinado sem ser nenhum guerrilheiro, sendo apenas o diretor da TV Cultura. Argumentando que no auge das violações dos direitos humanos, todos pudessem ter certeza que bastava não ser militante da guerrilha que não havia nada a temer. O argumento é baseado apenas num item: ele era estudante da UFF na época e não viu motivo para sentir medo.
Caro Vainfas. Na minha família ninguém nunca pegou em armas. Eram trabalhadores tentando sobreviver. Mas vários enfrentaram a prisão ou a perseguição, inclusive o meu pai. Mas a questão nem é essa. Se tivessem pego em armas estariam certos também. Essa geração está lotada de pessoas que correram riscos enormes pelo que acreditavam. Ponto enorme, monumental para ela. Se você, como estudante, não teve medo, não ache que quem sentiu isso está mentindo. Morreu muita gente que não era guerrilheira: Herzog, Rubens Paiva e tantos outros. Você deve saber disso. Se sabe, é um cretino ao desenvolver esse argumento. Se não sabe, é um ignorante.
Vamos ao ponto seguinte. Segundo o historiador, não havia censura no Brasil. "censura zero", diz ele. Segundo Vainfas, a censura era privilégio da esquerda. Bem, estamos falando de uma ditadura de direita, num momento (ele fala dos anos 70) no qual a guerrilha de esquerda havia sido desbaratada, mas mesmo assim fala como se Stalin fosse o dono do poder de permitir o que poderia ser dito no Brasil. Melhor não discutir.
Chegamos ao dia de hoje. Na opinião do historiador, seus colegas e a imprensa fazem uma leitura lamentável do que aconteceu naqueles anos. E aí chegamos à grande questão. Há mais de 20 anos o Brasil é governado por pessoas que se criaram politicamente na oposição à ditadura: Itamar, FHC, Lula e Dilma. Todos tinham (e têm) defensores do regime como aliados, e nunca tiveram coragem de meter de fato o dedo na ferida.
Mas a questão é que, ao menos entre historiadores e jornalistas, reina o consenso de que a ditadura foi um lixo. Matou, torturou e exilou pessoas. Condenou inumeráveis famílias ao sofrimento. O professor Vainfas fica enojado com isso. Acha que é juiz do sofrimento alheio. Age como se tivesse o poder divino de decidir quem tem o direito de se considerar atacado. Contraria barbaramente, sem nenhuma cerimônia, algo que aprendemos no primeiro semestre de graduação: historiadores não são juízes do passado. Com o aplauso dos puxa-sacos e a conivência silenciosa dos que são progressistas mas não querem problemas com um historiador conhecido. "Vai que um dia eu preciso dele" usado como justificativa para o silêncio frente a um tema tão caro.
O Brasil segue tendo milhões de problemas e defeitos. Mas ter tanta gente rejeitando a ditadura NÃO é um deles. Por mais triste que seja, que o professor Vainfas se junte a gente como Danilo Gentili e Rafinha Bastos. O planeta do "posso falar merda a vontade, se me questionarem digo que estou indo contra a ideologia oficial e pronto". Que não tenhamos mais espaço para gente assim, para além dos minúsculos círculos dos reaças empedernidos.
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Eu não li o que o Vainfas escreveu a respeito, mas parece que foi um festival de conservadorices que não é muito estranha à trajetória dele como historiador. Acho o Vainfas um bom historiador da área de colônia, pensando em um historiador de arquivo e de pesquisa refinada, mas não é um grande historiador em termos de proposição de leituras originais ou metodologias inovadoras. É um pesquisador competente de gabinete e uma figura de destaque institucional. Também é importante por ter orientado muitos trabalhos importantes de gente muito boa, especialmente que estudam Inquisição e/ou ordens religiosas (principalmente sobre jesuítas). Mas proximidade dele, como historiador, com pessoas e instituições conservadoras e com uma escrita de divulgação histórica voltada ao mercado mais amplo parece trazer, para o sua cosmovisão, elementos ideológicos típicos da classe média-alta carioca, que construiu seu patrimônio e o seu cabedal sob o favorecimento do regime militar. Não dá para separar o Vainfas historiador de suas visões "de classe", para usar o "marxismo esquemático" que ele queria ver no pau-de-arara.
ResponderExcluirExcelente o texto Tiago, e não podia ser diferente. Corajoso e pontual. Vainfas, pode ser grande em sua área de pesquisa e atuação, mas se voltasse às aulas de Brasil Contemporâneo com qualquer dos professores da UFRPE não faria mal.
ResponderExcluirExcelente texto. Sincero, objetivo, contundente. Peço permissão para reproduzi-lo no meu blog www.thiagofragata.blogspot.com
ResponderExcluirThiago, meu amigo, voce não tem de pedir nada. Manda ver!
Excluirconcordo demais com você quando diz que o problema não é o Bolsonaro ou qualquer outro idiota e sim profissionais tão qualificados como o Vainfas fazendo esse desfavor! Não merecemos isso não VAINFAS! orgulho de você meu amigo e professor!
ResponderExcluirTexto excelente! Concordo plenamente.
ResponderExcluirParabéns a você. Denuncia não apenas o Vainfas, mas a hipocrisia e a veleidade do modo como se relaciona boa parte dos componentes da mais alta academia no Brasil. Fazer história implica em independência, autonomia, ética e responsabilidade. Com seu post você está fazendo história com H maiúsculo.
ResponderExcluirMaravilhoso! Uma réplica formidável, coerente e fundamental. Tenho orgulho de ter sido sua colega.
ResponderExcluirEntão, músicos e artistas de renome foram censurados de bobeira. Em Campinas SP onde eu vivo, até padres eram advertidos pelos sermões..
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