quinta-feira, 3 de abril de 2014

"A ditadura era boa"

Até onde consigo distinguir, vejo três tipos diferentes de defensores da ditadura. O primeiro concorda com o discurso oficial do regime: o Brasil rumava para o comunismo e os militares nos salvaram desse triste destino a um preço relativamente baixo; os CRETINOS que acham o mesmo que o grupo anterior mas não têm coragem de assumir, então usam estratégias evasivas, tipo "ah mas os guerrilheiros também não eram lá essas coisas, né?"; finalmente os mais perigosos, aqueles que usam um argumento aparentemente despolitizado: no tempo da ditadura a vida era melhor.

Esse argumento é o mais perigoso por diversos motivos. Primeiro porque não tem o tom anacrônico do primeiro, que só fazia sentido no tempo da guerra fria. Segundo, traz implícito algo absolutamente perverso: "só teve problema quem mexia com política. quem só trabalhava estava bem". Como se "politizado" fosse sinônimo de vagabundagem, alcoolismo e promiscuidade, ao contrário dos trabalhadores decentes que acordam cedo todo dia. Mas talvez o pior de tudo seja a premissa de que se um governo é "bom", não importa que não haja democracia. A ideia de que a democracia é algo secundário é o tipo de coisa que me faz querer deitar e não levantar nunca mais.

Mas beleza, vejamos se a vida era boa naquela época.

Corrupção? Tinha à vontade. Halles, Coroa-Brastel, Capemi, diamantes do Abi-Ackel, o que não faltou foi escândalo de corrupção. Quem não sabe o que foram essas coisas, peça ajuda ao google, está tudo lá. Obviamente os inquéritos concluíam que não tinha acontecido nada (se fôssemos uma ditadura hoje o mesmo teria ocorrido com o mensalão), mas até onde sei, ditaduras são assim mesmo, né? Quantas pessoas você conhece que foram denunciadas por corrupção em ditaduras e foram parar em cana?

A economia ia bem? Hmmm, nos últimos anos tem ido muito bem também, né? Nos anos 50 também. Não precisa de ditadura para a economia ir bem. Mas será que a nossa foi essa glória toda nesse quesito? Bem, tivemos o milagre econômico. Mas ele durou apenas alguns anos, aproximadamente de 1969 a 1973, uma fração bem pequena da duração da ditadura. E há elementos a serem ponderados aí:

Pra começar, o Brasil vinha crescendo desde 1950 a uma média de 7% ao ano. Era a chamada "era de ouro do capitalismo". Todo mundo estava crescendo. O "milagre econômico" não foi nenhum ponto fora da curva. Na verdade foi apenas um aumento do crescimento verificado nos 20 anos anteriores. Causado pelo achatamento dos salários, que aumentou o lucro dos empresários, que tiveram mais capacidade de investimento. Essa a participação da ditadura no processo: silenciar os sindicatos e garantir que os salários se depreciassem. Por isso chamavam de "milagre": por não poderem dizer o real motivo do aumento do crescimento. Se você tem algum amigo economista, pergunte a ele se acredita em milagres na economia.

O legado da ditadura no campo econômico na verdade foi outro. Ao fim do regime o Brasil tinha uma inflação altíssima e uma dívida externa impossível de ser paga. Dois males que não existiam no dia 31 de março de 1964. Geisel e Figueiredo gastaram irresponsavelmente, inclusive em projetos esdrúxulos, como a Transamazônica, num cenário internacional completamente desafavorável, nos levando a isso. Resultado, em 1982 falimos, demos calote na dívida externa monumental que tínhamos e entregamos nossa soberania ao FMI para que eles nos salvasse. Isso porque os militares eram nacionalistas, claro.

Argumentam ainda que naquela época havia "ordem". Bem, havia guerrilhas no campo e na cidade, coisas que não existiam antes do regime. Havia um Estado que matava diretores de TV por não concordarem com suas atitudes (Vladimir Herzog), políticos que, por engano, eles achavam que era "perigoso" (Rubens Paiva, que a "inteligencia" militar concluiu erradamente ser um contato de Lamarca) ou quem só buscava justiça para o filho assassinado (Zuzu Angel). Isso é ordem em que planeta? O que tememos na violência urbana atual não é exatamente o medo de sermos atingidos por motivos aleatórios ou injustificáveis?

Sim, o caos urbano na época era menor que hoje. Mas era maior que nos anos 50. Que era maior que nos anos 20. Na verdade, esses problemas (violência, trânsito, etc.) não param de crescer. Por motivos estruturais. Como o modelo de desenvolvimento que escolhemos, e que os militares abraçaram com gosto: êxodo rural, explosão das cidades, carros em detrimento do transporte público, militarização do combate à pobreza, tudo isso está no nosso modelo, e aconteceu de forma acentuada no regime militar. Não foram os únicos culpados, mas ajudaram muito nisso. Não pense que quem vivia nos anos 70 se sentia tranquilo. Eu estava lá e me lembro muito bem: quem viveu aqueles anos se sentia inseguro. Pois não comparavam sua situação com a de hoje em dia (por motivos óbvios), mas com a dos anos 40 e 50, que na opinião dos adultos daquele tempo era bem melhor.

No fim eu encerro essa sequencia de posts sobre a ditadura. O tema é doloroso demais, e a data já passou. Mas fica uma pergunta: o que tivemos de bom nesse regime que não poderia ter sido conseguido numa democracia?

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