terça-feira, 8 de maio de 2012

Mídia e credibilidade

Na noite de domingo me chamou a atenção a coincidência entre dois fatos bem diferentes mas que tratam de uma mesma questão.
No Brasil a tão discutida reportagem da Record sobre a relação entre a Veja e Carlinhos Cachoeira. Não importa o que voce pense sobre o assunto (eu mesmo acho que há indícios que merecem investigação, mas não estou convencido que nada tenha sido provado), o fato é que foi um duro golpe na credibilidade da mais importante revista semanal do Brasil.
Na Argentina, o jornalista Jorge Lanata, em seu programa de TV, passou 1 hora denunciando uns 20 perfis fake do twitter, mantidos por pessoas que seriam pagas (por quem?) para apoiar o governo. O assunto virou piada nacional e entrou na lista dos 10 tópicos mais comentados no planeta terra no twitter. Se é um absurdo termos 20 contas de twitter que só defendem o governo, o que falar das centenas de veículos que o atacam incessantemente (incluindo o canal 13, que veiculou o programa, pertencente ao Grupo Clarín, o maior do país, que ataca violentamente o governo 24 horas por dia)?
Temas diferentes, países diferentes, mas uma só problemática: a imensa dificuldade que a mídia tradicional tem demonstrado em lidar com o fato de que não está mais sozinha em campo.
O caso da relação Veja/bicheiro vinha sendo de tal maneira ignorado pela imprensa que a própria ombudsman da Folha de SP havia reclamado naquele mesmo domingo. Claro que não há nada provado, mas acusações com muito menos fundamentos haviam sido repercutidas com muito mais intensidade, inclusive, claro, pela própria Veja.
Naturalmente, assim como no caso do livro da Privataria Tucana, a imprensa tradicional se mostrou francamente incapaz de avaliar o poder dos veículos alternativos. Presa aos tempos em que era capaz de decidir o que chegaria ao conhecimento do público, acreditou, absurdamente, que bastaria ignorar um assunto para ele não ter repercussão.
A questão mais ampla aí é a seguinte. A imprensa tradicional historicamente gosta de se representar com um espaço plural e democrático, que reflete a ampla gama de pontos de vista existentes numa sociedade. Algo que evidentemente nunca foi. E nem poderia ser. Claro que sempre haverá um viés. Mas, contrariando o que pode haver de mais óbvio do mundo, no cotidiano do trabalho jornalístico termos como "neutralidade" são empregados amplamente e de forma não-problematizada.
Enquanto não tínhamos outra opção, tudo bem. A maioria acreditava em qualquer porcaria que lesse, enquanto os mais críticos tentavam filtrar de alguma maneiras as informações, o que era difícil, já que não dispúnhamos de visões alternativas.
Agora não. Qualquer idiota pode buscar pontos de vista opostos ao que lê no jornal ou vê na TV. O que é imensamente fortalecido por essa grande mídia se opor (quase) abertamente ao governo mais popular da história. Blogs e sites defendendo o governo explodiram nos últimos anos, vários dos quais tem uma popularidade gigantesca.
Já disse aqui: pra mim Luis Nassif, Paulo Henrique Amorim e Carta Capital nada mais são que versões governistas dos veículos da grande imprensa. Defendem o governo com o mesmo descompromisso com a realidade que a grande imprensa que o ataca. Os veículos tradicionais caem em cima desse tipo de mídia. Dizem que eles só defendem um lado, e que todos os que vão lê-los é porque só querem ler alguém que confirme seu ponto de vista.
Só que o grande problema é o seguinte. A crítica seria interessante se não fosse baseado na premissa: "enquanto nós, da imprensa tradicional, somos neutros, imparciais e plurais, esses demagogos da internet só defendem um lado". Infelizmente pra eles não é dificil perceber que a premissa é absurda. E é cada dia mais fácil perceber isso.

domingo, 6 de maio de 2012

Evita


Há 93 anos nascia Eva Duarte, posteriormente Eva Perón, ou simplesmente Evita. Uma figura tão tipicamente argentina que é simplesmente inacessível à compreensão dos brasileiros. Que ao invés de tentar entender o personagem dentro das especificidades da cultura política argentina, preferem liquidar o assunto com coisas tipo "argentinos são fanáticos".
O que dá sentido à figura de Evita são dois traços da cultura política argentina. Primeiro o engajamento. Os argentinos são um povo muito mais politizado que nós, sendo também incomparavelmente superiores a nós em termos de memória histórica. Segundo, um personalismo extremo, nos superando muito nesse quesito, e olhe que também somos bastante. Basta notar que o grande corte da política argentina está entre os peronistas e os anti-peronistas. Nos dois lados há gente de direita, centro e esquerda, mas que se atacam há quase 70 anos por um lado defender e outro atacar a herança de Juan Domingo Perón.
Perón surgiu na primeira metade dos anos 1940 como o grande defensor das reformas sociais que melhorariam a vida da classe trabalhadora. Rapidamente se transformou no político favorito dos sindicatos, movimentos sociais e da classe trabalhadora argentina. Na verdade, das 15 eleições presidenciais posteriores apenas em 2 o candidato apoiado pelo peronismo perdeu. A surpreendente vitória de Raul Alfonsín em 1983 foi a primeira derrota peronista em uma eleição presidencial. A outra foi a eleição de Fernando de la Rua em 2001, no rescaldo da desastrosa presidência de Carlos Menem.
Muitos brasileiros se confundem quando tentam fazer paralelos entre Vargas e Perón. De certa maneira ocuparam espaços semelhantes eu seus países, mas não vai além daí. Perón nunca foi ditador, sendo eleito três vezes. Na verdade todas as ditaduras argentinas posteriores a ele foram visceralmente anti-peronistas (foram 4 os presidentes derrubados para impedir um governo peronista: Perón, Arturo Frondizi, Arturo Illia e Isabelita Perón). Tampouco era um camaleão político, e tem uma trajetória muito mais coerente que a de Vargas. Ainda que na velhice tenha assumido uma postura claramente mais conservadora, mas sem mudar o essencial do que sempre havia defendido.
Evita se situa nesse quadro, exatamente por ser vista pelos peronistas como a face escancaradamente social do movimento. Não sendo política, não tinha necessidade de obedecer a certas normas de realpolitik. Atacava os "privilegiados" sem papas na língua, enquanto defendia os "descamisados". Seus discursos no balcão da Casa Rosada eram recebidos por uma platéia delirante. Para a massa peronista, Evita encarnava como ninguém o compromisso de defender a população pobre da sanha de uma elite corrupta e aproveitadora. Pelas mesmas razões era ainda mais odiada pela direita do que o próprio Perón. As faixas "Viva o Câncer" brotaram nos bairros elegantes de Buenos Aires quando ela morreu.
E houve também sua morte. Aos 33 anos Evita morreu de um câncer devastador. Três anos depois Perón foi derrubado, passou 18 anos no exílio, voltou mais conservador e casado com uma completa imbecil. Se elegeu presidente, morreu logo em seguida e deixou o país nas mãos da reacionária e estúpida Isabelita, que conduziu o país ao caos.
Evita não viveu nada disso. Não foi derrotada por um golpe, não viveu o exílio, não envelheceu nem acompanhou o declínio final da carreira de Perón. Se transformou rapidamente em mito indestrutível. E é idolatrada sobretudo pelos setores do peronismo que buscam se apresentar como sendo mais preocupados com as reformas sociais e a proteção à classe trabalhadora.
E se me perdoem uma opinião simples: sou Evita e não abro.
PS: relendo o texto identifiquei uma ambiguidade. Nem Arturo Frondizi nem Arturo Illia eram peronistas, mas foram derrubados por serem considerados demasiado complacentes com a tendencia proscrita. Afinal, tinham sido eleitos com os votos peronistas exatamente por terem prometido isso. Na verdade esse era o grande fator de instabilidade da política argentina. Sem o apoio peronista um candidato não seria eleito, mas sem reprimir o peronismo seria derrubado. Foi o que aconteceu com ambos.



sexta-feira, 4 de maio de 2012

A educação além dos números

Hoje fui a uma reunião de coordenadores de curso de graduação da minha universidade com a Pró-Reitora de Graduação, que se despedia da função, já que tomará posse como reitora na terça-feira. Na reunião ela fez um balanço de seus oito anos no cargo. Só deu números. O termo "qualidade" nem foi mencionado. Por exemplo, mostrou quantos por cento a mais de vagas oferecemos, mas nem se preocupou em mostrar que isso era bom.
A culpa não é dela. Faço ideia de quanto os burocratas de Brasília devem ter aborrecido ela nesses oito anos para que os tais números melhorassem. É a única coisa que importa na educação hoje em dia. O resto é irrelevante.
Por exemplo, tenho notado que o perfil do pós-graduando de hoje é muito diferente de 15 ou 20 anos atrás. Hoje o aluno é muito menos tenso que o de outros tempos. Afinal, não se espera que ele faça uma boa dissertação. Espera-se que ele faça qualquer dissertação. Pois as agências de financiamento só pensam nisso: números.
Por exemplo, em uma certa altura do meu mestrado concluí que o melhor era terminar em dois anos e meio. Tinha tido muitas dificuldades (por exemplo, meu orientador morreu), e achei que ter mais seis meses me daria condições de fazer uma dissertação bem melhor. Não precisei pedir para ninguém, ou fazer sequer um requerimento. Decidi, comuniquei ao orientador, e pronto.
Hoje eu não poderia fazer isso. Só em caso excepcional, e teria de entrar com um pedido justificando de forma incontestável a necessidade de um prazo extra. Se o pedido não fosse aceito, seria simplesmente desligado do programa e pronto. Um aluno que não defende em dois anos rebaixa a pontuação do programa, que não pode se dar a esse luxo.
Não gosto do resultado que vejo. O aluno acaba de alguma forma percebendo que o programa precisa dar um jeito de ele defender o que tiver feito em dois anos. Acaba ficando mais negligente e desinteressado. Não acha indispensável "jogar com sangue nos olhos", como se diz no futebol. À medida que o programa se sente mais e mais responsável por esses alunos, eles vão perdendo a necessidade de correr atrás de tudo o que precisam fazer.
Em suma, vamos lentamente fazendo com que nossos alunos de pós estejam ficando mais e mais preguiçosos. Não se sentem responsáveis. Se o ônibus demorar a passar desistem de ir à aula. Não é culpa deles. Para eles, o mestrado é apenas a continuação da graduação. E estão certos. O modelo atual retira muito da responsabilidade que deveriam ter. Mas como os números estão bons, está todo mundo feliz.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

40 anos de um clássico


Tudo o que veio ao mundo no maravilhoso ano de 1972 está completando 40 anos, incluindo eu. Isso inclui certamente um dos discos essenciais daquele ano repleto de discos essenciais: Thick as a Brick, do Jethro Tull.
O disco entrou para a história por sua ousadia. Era inteiramente composto por uma única canção, de quase 44 minutos. A letra era de autoria de um fictício gênio precoce, Gerald Bostock (personagem criado pelo vocalista Ian Anderson, autor da letra). Era novidade demais.
A crítica musical posterior, em sua maioria enraizada na tradição punk-new wave, odiou. Aquilo era o símbolo do que viam como a chatice e pomposidade do cenário do rock setentista. Para tantos outros, era uma das mais geniais inovações do rock.
Hoje isso tudo me parece muito barulho por nada. Na verdade o disco não tem uma música. São muitas faixas, todas com letras versando sobre o mesmo tema, só que sem um sulco as separando. Nem é uma suíte. É um disco conceitual. É como dizer que The Wall é um disco de uma música só. Não fecha.
Inclusive a meu ver o disco seguinte da banda é que seria realmente surpreendente. A Passion Play (1973) é um disco de uma música só, com uma letra repleta de temas complicados e experimentos sonoros bastante ousados. Não é a toa que não vendeu muito. Recomendo muito que seja ouvido, eu acho um discaço.
O que Thick as a Brick também é. O Jethro Tull é uma banda que foi muitas. Em This Was (1968) era uma banda pouco inspirada de blues (o disco é esquecível, e não deixou um único clássico). Mas em Stand Up (1969) veio a grande sacada: misturar o folk tradicional inglês ao blues e ao rock. A banda se afundou nessa receita e gravou dois discos avassaladores: Benefit (1970) e Aqualung (1971). Até hoje quando escuto "With You There To Help Me", do primeiro deles, o chão me foge.
Thick as a Brick é uma transição. A banda passou a flertar escandalosamente com o rock progressivo. Mas é um disco de transição. A ênfase nos teclados e na criação de climas sofisticados convive alegremente com a toada folk do violão de Ian Anderson. No citado A Passion Play a banda vai a fundo no progressivo. Mas logo voltou com mais ênfase ainda ao folk, gravando grandes discos até o final dos anos 70. Por volta de 1980 se perdeu para quase nunca mais se encontrar.
Em 1972 a banda estava em seu auge. Ian Anderson era mais genial que nunca, e a formação da banda talvez tenha sido a melhor entre as dezenas que existiram. Na guitarra Martin Barre, no baixo o insano Jeffrey Hammond-Hammond, na bateria o fenomenal Barriemore Barlow e nos teclados o insubstituível John Evans. As faixas do disco são absolutamente ótimas, cobrindo um amplo espectro de estilos, e a execução é primorosa.
Thick as a Brick é um dos discos da minha vida. Sou do tempo em que era quase impossível conseguir discos dessas bandas. O encontrei numa viagem ao Rio de Janeiro, em 1988. A viagem de volta parecia interminável. Nunca esquecerei a alegria de ter ouvido esse disco pela primeira vez. Só de olhar essa capa tão singular, volto a ser aquele garoto de 16 anos realizando um sonho.

terça-feira, 1 de maio de 2012

1o de maio


Lentamente o 1o de maio deixou de ser o momento de manifestação de orgulho da classe trabalhadora para se transformar no dia de ir ao show pago pela nossa contribuição sindical. Há alienação nisso, mas tem mais a ver ainda com a brutal incerteza sobre a classe trabalhadora enquanto sujeito político.
A segunda metade do século XX viu acontecer grandes mudanças que alteraram radicalmente o perfil e as possibilidades de ação política da classe trabalhadora. Principalmente para os operários, grupo da classe trabalhadora no qual sempre foram depositadas as esperanças de ação transformadora.
Pra começar a automação reduziu muito o número de vagas para os operários. Máquinas que fazem o trabalho de muitas pessoas levaram à perda de incontáveis empregos. Pela primeira vez na história o desemprego passou a ser um elemento estrutural do capitalismo, e não um fenômeno reservado aos períodos de crise. Além disso, ao menos nos países mais ricos, o Estado de Bem-Estar proporcionou uma sensível melhoria nas condições de vida da classe trabalhadora.
O resultado é que o operário típico está mais preocupado em manter seu emprego que em transformar o sistema ou mudar o mundo. Numericamente menor e cada vez mais enfraquecida, a classe operária se vê mais e mais na defensiva. Seus direitos conseguidos arduamente vão sendo comidos pelas "reestruturações" e "flexibilizações" das leis trabalhistas pelo mundo afora.
Nesse processo, dois grupos cresceram muito em termos numéricos: os trabalhadores do comércio e serviços e os precarizados (uso o termo aqui de forma deliberadamente genérica, agrupando subcontratados, temporários, etc.). E na verdade são dois grupos com os quais os agentes políticos que buscam representar a classe trabalhadora nunca souberam bem o que fazer.
As lideranças sindicais com as quais conversei me disseram ser impossível incorporar esses grupos às lutas classistas. Avaliam que o pessoal do comércio e dos serviços não se sente como membro dessa classe, por considerar que está desempenhando essas funções apenas em caráter temporário, enquanto nao se forma ou arranja coisa melhor (tipo "não sou vendedor de loja de shopping, apenas estou aqui enquanto termino a faculdade"). Já quanto aos precarizados, a avaliação das pessoas com as quais conversei é que a atual estrutura sindical está ultrapassada e impede a incorporação deles.
Por aí dá pra ver o seguinte. A classe trabalhadora de hoje é muito diferente da que Marx ou Bakunin viram. Não significa que os teóricos daquele tempo perderam a validade, já que o capitalismo continua sendo estruturado pela mesmíssima exploração que aqueles autores denunciaram. Quanto a isso não mudou nada.
Mas todo o resto mudou. O capitalismo tem características muito diferentes, e a classe trabalhadora também. São necessárias novas estratégias de luta, bem como reformulações nas teorias que dão sustentação a essa luta. E sinceramente, não acho que estejamos investindo nisso tanto quanto deveríamos.