Detesto falar sobre o período da ditadura militar. É muito difícil. Sempre é uma mistura de sensações horríveis. Pensar no que meus pais e tios passaram. No absoluto silêncio de todos eles sobre os detalhes do que houve. No que tudo aquilo significou para a criança que eu era. Tudo isso misturado com uma certa culpa de saber que tantos outros passaram por coisas infinitamente piores. Tudo isso é inominável. Nunca deveria ter acontecido. Nem conosco nem com ninguém.
Na semana que vai acabando morreu o Coronel Brilhante Ulstra. O tipo de criatura mais desprezível que essa ditadura produziu. Um torturador e assassino. Lembrei que estava em Montevidéu quando morreu o maior responsável pela ditadura uruguaia, o presidente Juan Maria Bordaberry. Um colunista de jornal disse com toda a propriedade: "morreu cercado pela família e terá enterro digno, tudo o que ele negou a suas vítimas". Racionalmente é isso. Mas quer saber? Não odeio Brilhante Ulstra nem tive grandes sentimentos ao saber de sua morte.
Com todas as dificuldades que vivemos nós acabamos superando aquilo tudo. Tanto que meus irmãos mais novos provavelmente nem saibam do que aconteceu. Meu pai e minha mãe estão vivos até hoje, e com todas as limitações muito humanas que possuem, são responsáveis por eu ser quem sou. Graças a meus méritos e algumas oportunidades únicas que tive acabei fazendo graduação, mestrado e doutorado em História na Unicamp. Tenho casa própria quitada num bairro simples, semelhante àquele em que cresci. Tenho uma filha trabalhadora e guerreira, que ama seu pai e sua mãe, acha sua avó um mito e é muito melhor que eu. Em suma, não me sinto nenhum coitado, muito pelo contrário.
Meu problema com a ditadura mora em outro lugar. E está mais em 2015 que em 1964. Na verdade não é um problema, são dois. O primeiro é ver a relativização da ditadura. A gente vê inúmeros discursos por aí em filmes, jornais, revistas, TV e internet mais ou menos assim "é, a ditadura não era legal, os opositores eram terroristas, vamos condenar todos". Não era nada disso. Quem diz isso está mentindo. Os oposicionistas nunca foram responsáveis pela morte de centenas de inocentes. Pode se discutir o que eles queriam fazer, mas na prática não fizeram nada. Eles nunca ocuparam o Estado. Foram apenas vítimas. Quem matou foram os governantes de então. É uma equiparação absurda: o que efetivamente aconteceu é igualado ao que se supõe que poderia ter acontecido caso pessoas que não fizeram nada tivessem a chance de fazer o que imaginamos que eles fariam. O nome disso é canalhice.
Na verdade essa não é minha maior irritação. Quem defende coisas assim é tão babaca e imbecil que eu nem sei como lidar. Há problemas maiores. O principal é que tem gente hoje que olha para pessoas como Brilhante Ulstra e vê honestidade, coragem, sinceridade, coisas assim. Um membro do Estado que torturou e matou pessoas desarmadas que estavam sob sua custódia vira simbolo de honestidade. Alguém que massacra indefesos vira símbolo de coragem. Quem diz que oprimidos devem ser oprimidos para sempre é simbolo da honestidade. Em suma, Brilhante Ulstra nos mostra os motivos pelos quais existe quem vote e admire um lixo humano como Bolsonaro.
Pois em nosso país não falta quem ache ainda hoje que coragem é atacar os que sempre se deram mal. Essas pessoas olham para evangélicos invadindo terreiros de candomblé e não se importam. Lêem que alguém foi morto porque alguém achou que a pessoa era homossexual e não se incomoda. Ouve histórias de mulheres agredidas e estupradas, lamenta e segue a vida. Pra gente assim, o problema do mundo é que a opressão está pouca. Acha que cristãos heteros brancos e homens têm poucos privilégios. Enquanto existir isso, Brilhante Ulstra estará muito sorridente em algum lugar do inferno.
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Quando vale a pena comprar briga?
Nasci e cresci em um contexto em que se achava intolerável aceitar quieto os dominantes pisarem nos dominados. Aprendi isso em casa, e o fato de crescer numa cidade operária altamente politizada só acentuou essa característica. Some-se a isso ao ímpeto da juventude e fica fácil entender porque as pessoas que me conheceram há muito tempo pensam em mim como um jovem irritadiço, nervosinho, genioso, sempre comprando briga. Mas o tempo passou. Mês que vem faço 43 anos. Aprendi que uma coisa importante da vida é escolher as batalhas em que entrar.
Uma que eu consigo me desviar sem muito problema é a da indignação seletiva na política. Você sabe do que estou falando. Gente que não liga para a falta de água, para o segredo de justiça que Alckmin consegue para seus erros, para Beto Richa sentando porrada em professor, para o PSDB ser amigo íntimo de Eduardo Cunha mas quer o impeachment da Dilma. Que sequer é acusada de nada. Golpistas que querem derrubar um governo só porque não gostam dele. Perderam a eleição e ao invés de se comportar como qualquer oposição democrática, criticando o que consideram ruim na gestão, querem derrubar uma presidente que sequer é investigada. Pra mim é fácil ignorar isso. Quem pensa esse tipo de coisa só merece pena. Não vale a pena discutir.
Um tipo bem cretino em relação ao qual eu ainda não sei o que fazer é o racista que acredita do fundo da alma que está sitiado por um planeta em que tudo é a favor dos negros. Aquela peça que reclama que não existe o dia da consciência branca, que acha que dizer "fala aí" para o negro que toma umas no bar do lado da casa dele é um passe livre para chamar negros de macacos, já que "tenho amigos negros", e por aí vai. Tudo isso é tão sem sentido que tendo a ver problemas de cognição em quem de fato acredita nisso tendo terminado ao menos o ensino fundamental. Sinceramente, fico confuso por motivos de não entender o que se passa na mente dessas pessoas. Que geralmente usam argumentos tipo "cotas são racismo reverso". É tão ridículo que eu devo confessar que não sei como lidar.
Na linha "ausência de cognição" tem ainda as pessoas que acham que se discutir assuntos como aborto e drogas todo mundo vai abortar e viver chapado 24 horas por dia. Aí são pontos em que eu realmente não consigo entender. A pessoa acha que algo ser liberado significa que todos vão fazer aquilo 24 horas por dia? Sério: quem pode ser tão burro? Você faz todas as coisas que a lei te permite 24 horas por dia? Digamos, você acha que se as drogas forem liberadas todos os médicos estarão chapados? As bebidas alcoolicas sempre foram liberadas, você acha que todo médico está bêbado? E o que você acha do aborto: com todo o respeito, mas você acha que alguém no mundo se importa com sua opinião quando vai abortar? Abortos vão acontecer, independente do que você pense. O que se discute é como e onde, só isso. Lógica básica.
Mas tem outras que já me coçam os dedos. Tipo o homem que quer ensinar as mulheres como ser feministas. Um tipo que você conhece bem também. Começa bancando o compreensivo ("sou simpático à causa", etc.) mas aos poucos começa a resolver ditar ordens sobre como as mulheres devem ou não se manifestar. Aí segue aquele roteiro clássico, que passa pelo desejo sincero, puro e desinteressado de que as feministas parem de odiar homens e acaba desembocando na gritaria contra um tal "femismo" que é a versão do "racismo reverso" que se aplica a mulheres que dizem coisas que o senhor feminista não gosta. O engraçado desse tipo é que ele é tão acostumado a seu lugar privilegiado de poder que muitos desses discursos são sinceros. A pessoa realmente não entende como está sendo autoritária e ladra do protagonismo alheio. Se comporta como o maior babaca do universo achando que está fazendo grande coisa. Supostamente é um "fogo amigo".
Um tipo que já me aborrece mais em particular é o "homofóbico gente boa". Você deve conhecer alguém assim. É aquele que diz coisas tipo "não gosto do Bolsonaro, embora concorde com uma ou outra coisa que ele fala". Como se considera muito gente boa, essa pessoa não quer nem sonhar em ser identificada aos Malafaias e Felicianos, embora vibre de alegria ao ver eles falando mal de gays. É um tipo bem peculiar: detesta gays mas não quer parecer homofóbico. Aí solta umas coisas marotas, tipo "não é que eu goste do Feliciano, mas também olha o que fizeram com ele naquela situação x...". Em suma, pra eles a vítima do mundo não são os que Malafaia e Feliciano querem oprimir, mas os coitadinhos dos pastores milionários. Tem ainda o "não defendo eles, mas o Jean Wyllys, né...", que é basicamente a mesma coisa. Vocês que conhecem minha situação pessoal devem saber o quanto os tipos descritos nos dois últimos parágrafos me deixam livre para usar meus dedos livres para comprar todas as brigas possíveis e imagináveis.
Enfim, a vida está difícil para quem usa o cérebro. Mas vamos sobreviver. Enquanto isso, que tenhamos a sabedoria de escolher as batalhas a lutar.
Uma que eu consigo me desviar sem muito problema é a da indignação seletiva na política. Você sabe do que estou falando. Gente que não liga para a falta de água, para o segredo de justiça que Alckmin consegue para seus erros, para Beto Richa sentando porrada em professor, para o PSDB ser amigo íntimo de Eduardo Cunha mas quer o impeachment da Dilma. Que sequer é acusada de nada. Golpistas que querem derrubar um governo só porque não gostam dele. Perderam a eleição e ao invés de se comportar como qualquer oposição democrática, criticando o que consideram ruim na gestão, querem derrubar uma presidente que sequer é investigada. Pra mim é fácil ignorar isso. Quem pensa esse tipo de coisa só merece pena. Não vale a pena discutir.
Um tipo bem cretino em relação ao qual eu ainda não sei o que fazer é o racista que acredita do fundo da alma que está sitiado por um planeta em que tudo é a favor dos negros. Aquela peça que reclama que não existe o dia da consciência branca, que acha que dizer "fala aí" para o negro que toma umas no bar do lado da casa dele é um passe livre para chamar negros de macacos, já que "tenho amigos negros", e por aí vai. Tudo isso é tão sem sentido que tendo a ver problemas de cognição em quem de fato acredita nisso tendo terminado ao menos o ensino fundamental. Sinceramente, fico confuso por motivos de não entender o que se passa na mente dessas pessoas. Que geralmente usam argumentos tipo "cotas são racismo reverso". É tão ridículo que eu devo confessar que não sei como lidar.
Na linha "ausência de cognição" tem ainda as pessoas que acham que se discutir assuntos como aborto e drogas todo mundo vai abortar e viver chapado 24 horas por dia. Aí são pontos em que eu realmente não consigo entender. A pessoa acha que algo ser liberado significa que todos vão fazer aquilo 24 horas por dia? Sério: quem pode ser tão burro? Você faz todas as coisas que a lei te permite 24 horas por dia? Digamos, você acha que se as drogas forem liberadas todos os médicos estarão chapados? As bebidas alcoolicas sempre foram liberadas, você acha que todo médico está bêbado? E o que você acha do aborto: com todo o respeito, mas você acha que alguém no mundo se importa com sua opinião quando vai abortar? Abortos vão acontecer, independente do que você pense. O que se discute é como e onde, só isso. Lógica básica.
Mas tem outras que já me coçam os dedos. Tipo o homem que quer ensinar as mulheres como ser feministas. Um tipo que você conhece bem também. Começa bancando o compreensivo ("sou simpático à causa", etc.) mas aos poucos começa a resolver ditar ordens sobre como as mulheres devem ou não se manifestar. Aí segue aquele roteiro clássico, que passa pelo desejo sincero, puro e desinteressado de que as feministas parem de odiar homens e acaba desembocando na gritaria contra um tal "femismo" que é a versão do "racismo reverso" que se aplica a mulheres que dizem coisas que o senhor feminista não gosta. O engraçado desse tipo é que ele é tão acostumado a seu lugar privilegiado de poder que muitos desses discursos são sinceros. A pessoa realmente não entende como está sendo autoritária e ladra do protagonismo alheio. Se comporta como o maior babaca do universo achando que está fazendo grande coisa. Supostamente é um "fogo amigo".
Um tipo que já me aborrece mais em particular é o "homofóbico gente boa". Você deve conhecer alguém assim. É aquele que diz coisas tipo "não gosto do Bolsonaro, embora concorde com uma ou outra coisa que ele fala". Como se considera muito gente boa, essa pessoa não quer nem sonhar em ser identificada aos Malafaias e Felicianos, embora vibre de alegria ao ver eles falando mal de gays. É um tipo bem peculiar: detesta gays mas não quer parecer homofóbico. Aí solta umas coisas marotas, tipo "não é que eu goste do Feliciano, mas também olha o que fizeram com ele naquela situação x...". Em suma, pra eles a vítima do mundo não são os que Malafaia e Feliciano querem oprimir, mas os coitadinhos dos pastores milionários. Tem ainda o "não defendo eles, mas o Jean Wyllys, né...", que é basicamente a mesma coisa. Vocês que conhecem minha situação pessoal devem saber o quanto os tipos descritos nos dois últimos parágrafos me deixam livre para usar meus dedos livres para comprar todas as brigas possíveis e imagináveis.
Enfim, a vida está difícil para quem usa o cérebro. Mas vamos sobreviver. Enquanto isso, que tenhamos a sabedoria de escolher as batalhas a lutar.
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Uma infância na ditadura
Há quase 10 anos não tenho qualquer contato com meu pai. Por motivos que não vêm ao caso aqui. Mas mês passado teve o dia dos pais, eu quis de alguma forma lembrar a data. Me ocorreu essa foto aí, dele comigo logo após eu nascer, em 1972. Nunca tinha visto a foto, minha mãe tinha me mostrado uns dias antes. Postei no facebook. Meu tio, colega de trabalho dele na Companhia Siderúrgica Nacional, irmão da minha mãe, fez um comentário sobre como aqueles tempos foram duros pra nós. Arrematou com um "sobrevivemos". Que me doeu no fundo da alma, pois eu sabia exatamente do que ele falava.
Ninguém da minha família nunca deu um tiro na vida. Nunca foram de nenhuma organização. Naqueles anos duros eles eram apenas uma família operária tentando reconstruir a vida após a morte prematura do meu avô. Eram, e continuam sendo, uma gente com aquele senso de dignidade que quem nasceu na classe trabalhadora conhece perfeitamente. Uma coisa meio "temos de enfrentar o mundo. que sejamos honestos e corretos ao menos. Se perdermos, ao menos teremos a consciência tranquila". Em suma, pessoas absolutamente inofensivas que só queriam uma vida melhor.
Mas eles todos cometeram um crime monstruoso: não gostavam de ditadura. Queriam um país democrático. E no auge do regime, aproximadamente entre 1968 e 1974, isso era uma coisa intolerável. A ditadura naquele momento não tolerava ninguém, absolutamente ninguém, que estivesse em seu caminho. Sem entrar em muitos detalhes, meu pai e meu tio foram presos. Meu pai nunca falou sobre isso, com duas exceções. Uma vez me disse que após ser preso o apartamento foi revirado pelos militares, que mexeram em todos os seus livros. Acrescentou: "nunca vi ter tanto medo de livro como aquele pessoal da ditadura". Na outra, disse que chegou a pegar o formulário para solicitar indenização pelo que passou, mas simplesmente não conseguiu dar conta das lembranças dolorosas e desistiu. Achou melhor deixar pra lá.
Um par de anos atrás eu estava com um problema pessoal que não vem ao caso. Minha prima me levou a um tratamento alternativo. Não lembro o nome do tratamento, nem da pessoa, só lembro que funcionou perfeitamente. Mas em um certo momento a terapeuta falou assim: "senti algo muito forte aqui. sua família teve problemas com a ditadura, não foi? eles tinham muito medo. você cresceu num ambiente de medo por causa da ditadura. Seus pais tinham medo que você sofresse por isso. E esse clima te afetou". Detalhe: eu nunca tinha visto a pessoa antes desse dia, e não tinha mencionado vagamente o assunto.
O tempo passou, a ditadura acabou sem deixar saudades em ninguém. Aí de repente vemos pessoas em 2015, muitas das quais sequer eram nascidas na época, culpando os presos, torturados e mortos pelos que sofreram. O que não tem nenhuma diferença para quem diz que a mulher tal pediu para ser estuprada, já que estava de minissaia. Nos dois casos se culpa a vítima. Pessoas burras, mal intencionadas, ou apenas ignorantes mesmo, olham para os que sofreram com aquilo tudo, vêem todos como versões nacionais do Stalin e concluem que elas passaram um período difícil por culpa delas. Na melhor das hipóteses eram idiotas. Na pior, eram terroristas que queriam impor uma ditadura terrível no país.
A parte que talvez seja mais dolorosa é que muita gente que diz isso são jovens que não viveram a época. Não sabem que era um regime ditatorial assassino apoiado por empresários e pelos EUA. Por desinformação e burrice acreditam em gente mal intencionada que pinta a ditadura como salvadora da liberdade contra uma horda de comunistas que matavam inocentes. Ainda não consegui decidir se tenho raiva ou pena dessas pessoas. Não consigo imaginar como alguém com um sistema cognitivo saudável possa achar coisas assim.
A parte que me irrita em particular é essas pessoas serem assim porque o PT está no governo. Não porque eu seja eleitor da Dilma, mas porque mostra o quanto de oportunismo há nisso. Quem gera esses discursos no fundo só quer caracterizar a Dilma como uma comunista terrorista, e para isso joga no lixo a reputação de incontáveis pessoas que sofreram barbaramente tentando construir um país melhor para seus filhos. E mesmo que você olhe a coisa sob o ângulo do "eles queriam implantar uma ditadura" o argumento não fica em pé 2 segundos. Afinal você já viu alguém ser condenado por algo que quis fazer? Claro que não. O que essas pessoas queriam fazer não importa. Não aconteceu. Não foram elas que mataram centenas de pessoas. Foi a ditadura.
Na verdade a parte mais deprimente é que eu tenha ainda de falar sobre isso em pleno 2015. Não devemos esquecer a ditadura, mas ela só deveria aparecer quando formos punir seus assassinos ou lembrar de algo para que nunca mais se repita. É inacreditável ter de lidar com pessoas que acham que o grande problema da ditadura eram os comunistas terroristas, e não termos tido um Estado que matava seus cidadãos. Mas nosso desprezo da história misturado com a total insanidade do nosso debate político nos levou ao ponto de ver gente culpando as pessoas assassinadas e agredidas pelo Estado por terem passado por isso.
sexta-feira, 2 de outubro de 2015
Notas sobre o sofrimento alheio
"tudo bem ser chamada de sapatão na rua. não apanhando tudo ok".
Ouvi essa frase ontem, de alguém que eu gosto muito. No fim da conversa ela acabou ficando brava comigo. Pela primeira vez em anos e anos de amizade ela ficou puta comigo. Pois me deixei levar pelo primeiro impulso, que foi dizer "caralho, tudo bem ser chamada de sapatão é teu cu, que absurdo". Hoje não conseguia pensar em outra coisa. Um pouco por estar chateado com alguém que gosto muito estar zebrada comigo. Mas principalmente por outra coisa.
Meu discurso era o discurso acadêmico de quem vive no ar condicionado. Mais que isso, era o discurso de quem não sabe o que é a experiência concreta de viver o que ela vive. E querendo ainda por cima normatizar suas atitudes e decidir como ela deveria agir. Não sei se ela se deu conta, mas a raiva dela passou muito por aí. Por "mano, quem você pensa que é pra querer me dar aula de como combater o preconceito contra lésbicas? Chegou atrasado e quer sentar na janela?".
Pior que esse foi daqueles momentos horríveis em que você se vê fazendo algo que teoricamente detesta. Como homem branco hetero jamais me identificaria como membro dos movimentos feminista, negro e LGBT. Simpatizo sim, até o fundo da alma. Mas me recuso a qualquer sugestão de que eu possa falar em nome dessas pessoas. Sei o quanto isso é autoritário e mantenedor do eterno roubo de protagonismo dos subalternos. Sei perfeitamente que meu papel nisso é tentar entender melhor a experiência desses grupos. Sabendo que nunca chegarei lá, mas fazendo o possível para tentar avançar nisso.
Aí ontem dei aula sobre Edward Palmer Thompson. Meu ídolo supremo entre os historiadores. O cara que enxotou a todos nós do mundo dos modelos e nos mandou entender a experiência concreta da subalternidade. Tudo lindo. Mas duas taças de vinho e 15 minutos de papo depois tava lá eu tentando ensinar a uma lésbica como uma lésbica deve lutar contra a opressão. Supostamente eu sabia melhor que ela. Não acho isso, mas me comportei como se achasse, ela entendeu assim e tem toda a razão.
Quando escrevi o primeiro post na volta do blog argumentei que todos nós somos racistas, machistas e homofóbicos. Somos mesmo. Fomos criados em um mundo assim, com esses valores. Mas mantenho o que disse naquela ocasião. Termos nascido e crescido num mundo assim é um dado. Nada vai mudar o passado. A escolha é em relação ao futuro. Podemos julgar o sofrimento alheio, minimizando e chamando de mimimi. Ou podemos tentar aprender com a experiência dos que sofrem como é viver um cotidiano opressor. Essa parte é nossa escolha. E não há desculpa para escolher o lado opressor nesse caso.
Ouvi essa frase ontem, de alguém que eu gosto muito. No fim da conversa ela acabou ficando brava comigo. Pela primeira vez em anos e anos de amizade ela ficou puta comigo. Pois me deixei levar pelo primeiro impulso, que foi dizer "caralho, tudo bem ser chamada de sapatão é teu cu, que absurdo". Hoje não conseguia pensar em outra coisa. Um pouco por estar chateado com alguém que gosto muito estar zebrada comigo. Mas principalmente por outra coisa.
Meu discurso era o discurso acadêmico de quem vive no ar condicionado. Mais que isso, era o discurso de quem não sabe o que é a experiência concreta de viver o que ela vive. E querendo ainda por cima normatizar suas atitudes e decidir como ela deveria agir. Não sei se ela se deu conta, mas a raiva dela passou muito por aí. Por "mano, quem você pensa que é pra querer me dar aula de como combater o preconceito contra lésbicas? Chegou atrasado e quer sentar na janela?".
Pior que esse foi daqueles momentos horríveis em que você se vê fazendo algo que teoricamente detesta. Como homem branco hetero jamais me identificaria como membro dos movimentos feminista, negro e LGBT. Simpatizo sim, até o fundo da alma. Mas me recuso a qualquer sugestão de que eu possa falar em nome dessas pessoas. Sei o quanto isso é autoritário e mantenedor do eterno roubo de protagonismo dos subalternos. Sei perfeitamente que meu papel nisso é tentar entender melhor a experiência desses grupos. Sabendo que nunca chegarei lá, mas fazendo o possível para tentar avançar nisso.
Aí ontem dei aula sobre Edward Palmer Thompson. Meu ídolo supremo entre os historiadores. O cara que enxotou a todos nós do mundo dos modelos e nos mandou entender a experiência concreta da subalternidade. Tudo lindo. Mas duas taças de vinho e 15 minutos de papo depois tava lá eu tentando ensinar a uma lésbica como uma lésbica deve lutar contra a opressão. Supostamente eu sabia melhor que ela. Não acho isso, mas me comportei como se achasse, ela entendeu assim e tem toda a razão.
Quando escrevi o primeiro post na volta do blog argumentei que todos nós somos racistas, machistas e homofóbicos. Somos mesmo. Fomos criados em um mundo assim, com esses valores. Mas mantenho o que disse naquela ocasião. Termos nascido e crescido num mundo assim é um dado. Nada vai mudar o passado. A escolha é em relação ao futuro. Podemos julgar o sofrimento alheio, minimizando e chamando de mimimi. Ou podemos tentar aprender com a experiência dos que sofrem como é viver um cotidiano opressor. Essa parte é nossa escolha. E não há desculpa para escolher o lado opressor nesse caso.
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