quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Quando a Indonésia despertou a insanidade coletiva brasileira

A humanidade não cansa de nos surpreender. E geralmente não no bom sentido. A última que tivemos de encarar foram as reações absolutamente irracionais à execução de Marco Archer. Uma tsunami de chorume invadiu as redes sociais, com argumentos completamente absurdos defendendo a execução e criticando a presidente por ter tentado frear a consumação da pena capital. Entender o que houve me parece um exercício importante para ajudar a conhecer o país em que vivemos.

"tá com pena dele? Leva pra casa!". Sem dúvidas o mais tosco argumento (?) de todos os que apareceram nessa conversa toda, e um dos mais difundidos. Ninguém que eu tenha visto disse que Archer era um cara legal, que era um injustiçado, que era inocente ou que não deveria pagar pelo que fez. Esse argumento só existe dentro da lógica louca de que linchamentos e execuções sumárias são coisas ótimas, e quem se opõe a elas é porque "gosta de bandido". Aí veem pessoas sendo contra a pena de morte e entendem que o que está sendo dito é "imagina, esses caras são super legais, gente boa, injustiçados". Nada disso foi dito. O que há apenas é um ponto de vista diferente sobre como punir criminosos. Mas a mente autoritária dessas pessoas não reconhece a diferença de pontos de vista. Para elas, achar que criminosos não devem ser mortos é a mesmíssima coisa que dizer que eles são maravilhosos. Tosqueira total.

"tão reclamando de que? um traficante a menos no mundo". Quem diz isso não entendeu NADA. Inclusive sobre o tráfico. Desafia a mais elementar lógica achar que tirar de cena um traficante mude qualquer coisa no mundo das drogas. Os grandes traficantes estão lá, intactos, a demanda segue a mesma. Ou seja: esse saiu de cena, e na mesma hora outro tomou seu lugar. Achar que isso resolve algo é burrice demais. Minha cabeça não consegue processar tamanha imbecilidade.

"Por que a Dilma intercedeu por ele e não falou nada sobre policiais e inocentes que morrem aqui todo dia?". Esse argumento não tem nada de idiota, mas acho que ele perde um ponto muito importante. As pessoas que lamentavelmente são vitimadas por nossa violência de cada dia são assunto de segurança interna. Se qualquer presidente for se pronunciar sobre cada uma delas não vai fazer mais nada da vida. O caso de Archer era assunto de Estado. Só o presidente poderia agir. Eu sei, soa terrível. Perdi um primo barbaramente assassinado aos 23 anos. O presidente FHC não se pronunciou a respeito. Mas tentaria impedir a execução de um traficante brasileiro em outro país. Por pior que pareça, estaria correto. A morte do meu primo era assunto de segurança interna. Execução de brasileiro no exterior, por mais culpado que seja, é assunto de Estado.

"Indonésia fez o certo, não pode ter pena dessa gente". Um grave erro de lógica aqui. A definição de pena não deve (ou não deveria, ao menos) ser guiada pelo desejo de vingança. Mas sim se basear no que é melhor para a sociedade como um todo. E há uma avalanche de estudos provando de forma incontestável que não há nenhuma relação entre aumento das penas e redução da criminalidade. Provavelmente o que vamos ter na Indonésia com sua política de execução de traficantes é: os transportadores, como Archer, serão muito mais bem pagos, já que estarão sujeitos a um risco maior. Só isso.

"Ah, mas dos que são fuzilados em Cuba a Dilma não fala!". Aqui uma outra tosqueira. A Dilma é presidente do Brasil, e não ombudsman do universo. A função dela não é ficar apontando o dedo para tudo o que acontece de errado no mundo. Ela só teve alguma participação nesse caso por envolver um cidadão brasileiro. Ou seja: era uma questão de Estado, como já citado no item anterior. Se algum dia algum brasileiro estiver para ser executado em Cuba e ela não falar nada, aí podemos conversar. Por ora, esse argumento é apenas imbecil.

"Alá o PT sendo a favor da impunidade mais uma vez". Essa aí vai pra conta da insanidade generalizada que vivemos nesse clima de radicalização política. Ninguém pediu que Archer fosse absolvido ou libertado. O pedido do governo brasileiro foi que, por motivos humanitários, a pena de morte fosse transformada em prisão perpétua. Uma pena que sequer existe em nosso país. Achar que prisão perpétua equivale à absolvição, me perdoem, mas é sério indicativo de problemas cognitivos.

"Ele sabia as leis do país quando fez o que fez". Verdade. Mas vamos pensar dentro dessa mesma lógica só que em outra situação. Um país prevê que a traição conjugal ou o homossexualismo sejam penalizados com morte a pedradas. Se você souber que uma mulher desse pais vai morrer dessa maneira bárbara por ter traído o marido vai pensar "bem feito, ela sabia as leis, azar dela"? Ou vai concluir que algo estar previsto em lei não impede as pessoas de discordar da pena atribuída?

"Temos de respeitar as leis da Indonésia". Taí um clássico recurso argumentativo. Soltar uma verdade e rezar para ninguém perceber que ela não refuta a tese inimiga. Afinal, é óbvio que todo país é soberano para ter as leis que quiser e cumprí-las como achar melhor. Mas eu pergunto: você viu alguém discordando disso? A Dilma pediu a comutação da pena em prisão perpétua, que é algo plenamente dentro das leis do país, bastava o governante deles querer e seria algo plenamente dentro da legislação indonésia. Pessoas como eu não defendem que o país seja invadidos porque não concordamos com suas leis. Simplesmente discordamos dessas leis. E me parece que fazer isso não é desrespeitar a soberania nacional. Em suma, de novo é um argumento que parece sedutor, mas se opõe a algo que não foi dito por ninguém. Uma tese válida e correta, mas que nesse contexto se torna apenas um argumento vazio.

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