terça-feira, 29 de abril de 2014

Sobre cotas, racismo, etc.

Nasci em 1972, o que para meus alunos significa que eu convivi com dinossauros. Assim, cresci num país que tinha muitas diferenças em relação àquele em que vivemos hoje, ainda que muitos dos problemas sejam os mesmos daquela época. Uma notável diferença é a forma pela qual lidamos com a questão racial.

Seguimos sendo um país racista. Mas acredite: era pior. Chamar negros de crioulo, macaco, breu, noite, e coisas assim, era totalmente "normal". Todo mundo fazia isso (eu inclusive, devo tristemente confessar). Na TV negros eram motoristas e jogadores de futebol. Ou cachaceiros. Mulheres negras eram empregadas ou mulatas gostosas. Todo mundo achava a coisa mais normal do mundo que espaços de classe média e alta fossem inteiramente ocupados por brancos. Pessoas brancas que namorassem negros eram severamente reprimidas por seu círculo, sobretudo se fossem mulheres (sim, vi casos assim).

Mas, imaginem vocês, todos concordavam que não existia racismo no Brasil. Os apelidos? Brincadeira, imagina, tenho vários amigos negros. Não deixar a filha namorar negro? Veja, não é que eu seja racista, mas tenho o direito de não querer um neto mulato, né? Falar de racismo era coisa de comunista. O Brasil era um país cordial, em que a escravidão tinha sido branda e os negros haviam sido incorporados sem preconceito à sociedade. Sim, infelizmente eram mais pobres que nós. Mas não era racismo. Claro que não. Era um problema social. Infelizmente a escravidão os colocou na base da pirâmide social de um país pobre. Mas quando a pobreza acabar, isso será resolvido.

A partir de fins dos anos 80 isso começou a mudar. Lentamente as cotas deixaram de ser vistas como "coisa de americano, lá eles tiveram racismo, aqui só há um problema social". Timidamente as novelas começaram a mostrar pessoas negras em posições menos subalternas (sim, preferencialmente "mulatas gostosas", mas enfim...). Fernando Henrique Cardoso, autor de importantíssimo (ainda que hoje completamente superado) livro sobre escravidão, trouxe as cotas para o debate. Lula seguiu a toada. Hoje seguimos racistas, mas o avanço em alguns pontos nos últimos 20 anos é inegável.

E nesse período o mundo acadêmico deu sua contribuição. Começando com o grande Carlos Hasenbalg, pesquisadores puderam demonstrar, de forma clara e cristalina, sem espaço para refutação, que negros são discriminados sim. Esses autores jogaram por terra fantasias antigas como "na favela não existe racismo" ou "quando melhorarmos a educação pública os negros se igualarão aos brancos". Esses autores foram brilhantes ao PROVAR que dentro de uma mesma sala de aula de escola pública os alunos negros eram discriminados pelos seus professores e por seus colegas. O DEVASTADOR livro de Rita de Cássia Fazzi, O Drama Racial das Crianças Brasileiras, foi a última pá de cal em cima dos que ainda acham que brancos e negros numa mesma escola competem em condições iguais.

Nesse contexto foram implantadas as cotas. Quem tem mais de 30 anos se lembra: se dizia que o nível da universidade baixaria, com tantos alunos incapazes (isso não é racismo, claro), que os alunos cotistas não conseguiriam acompanhar o ritmo e deixariam a universidade (outro argumento super democrático) e que isso criaria um ódio racial por parte dos alunos brancos. Enfim, se argumentava, imaginem, que as cotas seriam ruins para os negros. Mas elas foram implantadas e nada disso aconteceu. Não vimos linchamentos nas universidades e os alunos cotistas mantém regularmente índices de aprovação e evasão tão bons ou melhores que os alunos "normais".

Mas, por incrível que pareça, ainda tem gente que é contra. Não é um argumento partidário: PT, PSDB e vários outros partidos implantaram as cotas raciais em seus governos. Não é baseado em argumentos técnicos, que inexistem, até onde sei. Até onde posso perceber, é apenas uma incapacidade que muitos têm de reconhecer um dado simples e óbvio: o Brasil é um país racista. Nenhum de nós acha estranho entrar num hospital e só ver médicos brancos. Chegar a um escritório de advocacia e ver um advogado branco. Sabemos que é assim. Sabemos que isso não é fruto da escravidão, que já acabou há mais de 125 anos. Mas ainda tem quem se negue a ver o que explode na sua cara. Paciência. Que fiquem morrendo de raiva ao ver negros desempenhando funções que não estamos acostumados a ver. Quem acredita na democracia só tem o que comemorar. Quem não gosta... que volte ao século XIX.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Investimentos petistas e tucanos na educação: números

Quantas vezes ouvimos pessoas criticando o governo federal pela falta de investimentos na educação? O tempo todo, né? Qualquer ação governamental que a pessoa não goste, lá vem "olha aí, dinheiro que poderia ser investido em educação, este país é uma vergonha!". Se você olhar os comentários das notícias na internet então, aí é uma festa. Só falta dizer que a Dilma ao invés de comer deveria jejuar e doar o dinheiro da feira para a educação.

Quando ouço isso de uma pessoa razoável eu tento debater. Argumento que a constituição prevê que a educação básica é obrigação de estados e municípios. Algumas pessoas começam a apelar falando de mensalão e coisas do tipo. Outras me devolvem um argumento que eu acho razoável até um certo ponto: que o governo poderia fazer mais, ainda que não seja o responsável principal pelo assunto. Acho o argumento válido. Poderia mesmo. O "até certo ponto" se justifica apenas porque normalmente isso é uma tentativa de desviar o foco das críticas a prefeitos e governadores, os reais responsáveis pelo assunto.

Resolvi então ver mais de perto a questão. Fui ver o investimento dos governos de São Paulo e Minas Gerais nesse campo. O motivo é claro: são governos tucanos de longo prazo, nos dois estados com maior orçamento do país e celeiro dos principais nomes do partido, incluindo Aécio Neves, candidato do partido à presidência. Fui ver ainda quanto o governo federal destinou a esses estados através do Fundeb, recursos destinados apenas à educação básica. Vejamos então os dados do ano passado (apenas dados oficiais).

Em 2013 o governo do estado de São Paulo afirma ter destinado à secretaria de educação um total de 24,25 bilhões.Já o governo federal, através do Fundeb, enviou 28,65 bilhões para o estado mais rico da federação utilizar em educação básica. 52,7% desse valor foi entregue nas mãos do governador Geraldo Alckmin, o restante repartido entre prefeituras. Ou seja, mesmo o governo estadual sendo o responsável constitucional pela educação, quem mais investiu nas crianças paulistas foi o governo federal.

Vamos então às alterosas. Em 2013 o governo Antonio Anastasia destinou 9,3 bilhões de reais à secretaria de educação. No mesmo ano o Fundeb enviou para Minas Gerais 9,98 bilhões de reais. Desse valor, 54,83% foi para as mãos do governador, e o restante ficou com as prefeituras do estado.

Passando a régua. Nos dois estados mais populosos da federação, o PSDB gastou em 2013 um total de 33,5 bilhões, enquanto o governo federal enviou para os mesmos estados (contando apenas o Fundeb) 38,63 bilhões para a educação básica. Mesmo considerando, e jamais esqueçamos isso, que os responsáveis pela educação básica, segundo a constituição, são estados e municípios. O dinheiro federal deveria ser apenas um complemento. Mas supera a mixaria investida pelos governos tucanos.

Algo muito parecido ocorre em Pernambuco, estado governado pelo outro candidato oposicionista. Em 2013 o orçamento da secretaria de educação foi de 3,09 bilhões. Por seu lado, o Fundeb enviou para o estado 4,1 bilhões, 40% para o governo e 60% para prefeituras. Uma diferença percentual ainda maior que no caso dos governos tucanos.

Antes que os mais exaltados comecem a me xingar escutem o seguinte: em nenhum momento foi dito ou sugerido aqui que estamos bem em educação ou que o PT fez o que deveria. Eu seria um completo idiota se sonhasse em dizer coisas como essas. A educação continua ruim, e é evidente que um partido com a história do PT poderia ter feito mais nesse campo. Não há como discutir essas coisas.

Mas teremos uma eleição. Paulo Freire não será candidato. Darcy Ribeiro também não. Muito menos Anísio Teixeira. Se queremos uma educação melhor, temos de pensar nos que se apresentam como possibilidades concretas e reais. E os números mostram um cenário muito claro. Com todos os seus problemas nessa área, o governo federal gastou mais com a educação básica do que os partidos que se apresentam como soluções. A cada 100 reais que o governo Dilma investiu na educação das crianças paulistas e mineiras, o PSDB gastou 87. A cada 100 reais enviados para a educação pernambucana, Eduardo Campos investiu 75. Isso porque, nunca esqueçamos, eles são os responsáveis principais pela educação em seus estados. Não é uma opinião minha. Está na constituição.

No fundo o que me irrita é outra coisa. É a mistura de ignorância e má fé que vemos por aí. O Brasil é uma federação. E utiliza o sistema dos três poderes. A constituição determina claramente as obrigações de cada um. Mas todos os problemas do Brasil, reais ou imaginários, são debitados na conta do governo federal. Nem ao trabalho de pesquisar as pessoas se dão (os dados apresentados aqui foram recolhidos em 15 minutos, são oficiais, facilmente achados no google). Ouvem qualquer idiotice e passam pra frente. Não se informam, não pensam, não analisam, apenas repassam lixo que escutaram. Posando de críticos ainda por cima.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Sheherazade, democracia e liberdade

Sábado me deparei com a notícia de que a tal apresentadora do SBT tinha sido limada do canal. Caí na idiotice suprema de ler os comentários da notícia. Uns 90% falava asneiras tipo "ela tem a coragem de falar a verdade, por isso foi censurada por esses comunistas do governo". A parte da ditadura comunista é tão coisa de gente com problemas mentais que nem dá pra discutir. Vou me ater a dois pontos.

O primeiro é essa história de "coragem de dizer a verdade". Não sei se vocês notaram, mas tem uma vibe reaça super nojenta no ar. É tipo assim: faço algo super babaca e escroto humilhando oprimidos e ainda poso de "corajoso". Tipo fazer piada com mulheres estupradas e judeus executados em campo de concentração. Aplaudir quando pessoas lincham um negro pobre em plena luz do dia. Que "coragem" é preciso para isso? Desde quando atacar os oprimidos e derrotados e se colocar ao lado dos vencedores e opressores é um ato de coragem?

Isso nos leva ao segundo ponto, bem mais perigoso. O raciocínio que indiquei no parágrafo acima parte do pressuposto de que o mundo é dominado pela esquerda, pelos negros, pelos gays, etc. Eu sei, isso soa quase doentio, já que esses grupos são claramente oprimidos na nossa sociedade. Mas aí é que está: essas pessoas são tão babacas, tão escrotas, tão nojentas, que para elas os avanços (mesmo os menores deles) que esses grupos conseguiram, já parecem absolutamente intoleráveis. Tipo: um beijo gay em uma novela e pronto, vivemos numa ditadura gay em que é proibido ser hétero.

Chateia particularmente essas pessoas o fato de elas não poderem falar o que quiserem. Por elas, fariam piadinhas de negro, diriam que gays são perversões da natureza, que nordestino nasceu pra comer areia e morrer de sede, etc. Como não podem, imagine você, concluem que são as grandes oprimidas da sociedade. Vítimas cruéis de um mundo que deveria ser democrático. Mas não é. Não existe liberdade neste mundo cruel. Tadinhos de nós brancos, héteros, homens de classe média sulistas. Tudo é contra nós. Pelo menos temos a Sheherazade para dizer a verdade por nós... NÃO, PERA!

A questão toda é que, duzentos e tantos anos depois da Revolução Francesa e da Independência dos EUA essas pessoas ainda não entenderam minimamente o que é democracia. Desconheço qualquer pensador que tenha caracterizado a democracia como o sistema em que temos a liberdade de fazermos qualquer coisa que quisermos. Isso não existe. O nome disso não é democracia. É selvageria.

Na verdade os principais esforços dos criadores do liberalismo era exatamente: como garantir a liberdade sem cair na barbárie? Como um Estado poderia existir sem correr o risco de cair na tirania? Os melhores cérebros da época se dedicaram a essas delicadíssimas questões. Daí saiu o liberalismo político, regime sob o qual vivemos, gostemos disso ou não. Nele há uma espécie de contrato implícito: as leis colocam os limites à liberdade que a sociedade considera necessários, e o Estado garante seu cumprimento. Para além disso, somos livres para fazermos o que quisermos.

Ou seja, a criatura em questão não foi censurada. Ela perdeu seu emprego numa empresa privada, algo que acontece todos os dias. E é muito pouco, quase nada, perto do que ela fez. Ela cometeu um CRIME. Deveria estar respondendo na justiça por isso. Mas por incrível que pareça não falta quem ache que isso faz dela uma vítima. Pior ainda, talvez, acham que pessoas se mobilizarem para defender o que acreditam e lutarem para que ela seja punida pelo que fez é autoritarismo, quando isso nada mais é que um mecanismo clássico da democracia.

Incrível que a gente esteja conversando sobre isso em pleno 2014. Parece que estamos nos debates do século XIX, quando os fazendeiros achavam absurdo que quisesse tolher a liberdade deles de terem escravos. Sim, era exatamente dessa maneira. Por mais incrível que possa parecer, a abolição da escravidão era entendida por eles como um tolhimento injustificável à liberdade deles. Só a escravidão daria liberdade plena às pessoas. Imagine só.

Essa historinha ilumina bem o que temos hoje. Claro que quando essas pessoas falam em democracia e liberdade, estão pensando na liberdade DELAS fazerem o que quiserem, não importa as consequências que isso tenha para outras pessoas. Elas não querem que todos tenham os mesmos direitos. Estão preocupados só com a liberdade delas. Os outros que se danem. Ou seja: não entenderam NADA do que é democracia.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

"A ditadura era boa"

Até onde consigo distinguir, vejo três tipos diferentes de defensores da ditadura. O primeiro concorda com o discurso oficial do regime: o Brasil rumava para o comunismo e os militares nos salvaram desse triste destino a um preço relativamente baixo; os CRETINOS que acham o mesmo que o grupo anterior mas não têm coragem de assumir, então usam estratégias evasivas, tipo "ah mas os guerrilheiros também não eram lá essas coisas, né?"; finalmente os mais perigosos, aqueles que usam um argumento aparentemente despolitizado: no tempo da ditadura a vida era melhor.

Esse argumento é o mais perigoso por diversos motivos. Primeiro porque não tem o tom anacrônico do primeiro, que só fazia sentido no tempo da guerra fria. Segundo, traz implícito algo absolutamente perverso: "só teve problema quem mexia com política. quem só trabalhava estava bem". Como se "politizado" fosse sinônimo de vagabundagem, alcoolismo e promiscuidade, ao contrário dos trabalhadores decentes que acordam cedo todo dia. Mas talvez o pior de tudo seja a premissa de que se um governo é "bom", não importa que não haja democracia. A ideia de que a democracia é algo secundário é o tipo de coisa que me faz querer deitar e não levantar nunca mais.

Mas beleza, vejamos se a vida era boa naquela época.

Corrupção? Tinha à vontade. Halles, Coroa-Brastel, Capemi, diamantes do Abi-Ackel, o que não faltou foi escândalo de corrupção. Quem não sabe o que foram essas coisas, peça ajuda ao google, está tudo lá. Obviamente os inquéritos concluíam que não tinha acontecido nada (se fôssemos uma ditadura hoje o mesmo teria ocorrido com o mensalão), mas até onde sei, ditaduras são assim mesmo, né? Quantas pessoas você conhece que foram denunciadas por corrupção em ditaduras e foram parar em cana?

A economia ia bem? Hmmm, nos últimos anos tem ido muito bem também, né? Nos anos 50 também. Não precisa de ditadura para a economia ir bem. Mas será que a nossa foi essa glória toda nesse quesito? Bem, tivemos o milagre econômico. Mas ele durou apenas alguns anos, aproximadamente de 1969 a 1973, uma fração bem pequena da duração da ditadura. E há elementos a serem ponderados aí:

Pra começar, o Brasil vinha crescendo desde 1950 a uma média de 7% ao ano. Era a chamada "era de ouro do capitalismo". Todo mundo estava crescendo. O "milagre econômico" não foi nenhum ponto fora da curva. Na verdade foi apenas um aumento do crescimento verificado nos 20 anos anteriores. Causado pelo achatamento dos salários, que aumentou o lucro dos empresários, que tiveram mais capacidade de investimento. Essa a participação da ditadura no processo: silenciar os sindicatos e garantir que os salários se depreciassem. Por isso chamavam de "milagre": por não poderem dizer o real motivo do aumento do crescimento. Se você tem algum amigo economista, pergunte a ele se acredita em milagres na economia.

O legado da ditadura no campo econômico na verdade foi outro. Ao fim do regime o Brasil tinha uma inflação altíssima e uma dívida externa impossível de ser paga. Dois males que não existiam no dia 31 de março de 1964. Geisel e Figueiredo gastaram irresponsavelmente, inclusive em projetos esdrúxulos, como a Transamazônica, num cenário internacional completamente desafavorável, nos levando a isso. Resultado, em 1982 falimos, demos calote na dívida externa monumental que tínhamos e entregamos nossa soberania ao FMI para que eles nos salvasse. Isso porque os militares eram nacionalistas, claro.

Argumentam ainda que naquela época havia "ordem". Bem, havia guerrilhas no campo e na cidade, coisas que não existiam antes do regime. Havia um Estado que matava diretores de TV por não concordarem com suas atitudes (Vladimir Herzog), políticos que, por engano, eles achavam que era "perigoso" (Rubens Paiva, que a "inteligencia" militar concluiu erradamente ser um contato de Lamarca) ou quem só buscava justiça para o filho assassinado (Zuzu Angel). Isso é ordem em que planeta? O que tememos na violência urbana atual não é exatamente o medo de sermos atingidos por motivos aleatórios ou injustificáveis?

Sim, o caos urbano na época era menor que hoje. Mas era maior que nos anos 50. Que era maior que nos anos 20. Na verdade, esses problemas (violência, trânsito, etc.) não param de crescer. Por motivos estruturais. Como o modelo de desenvolvimento que escolhemos, e que os militares abraçaram com gosto: êxodo rural, explosão das cidades, carros em detrimento do transporte público, militarização do combate à pobreza, tudo isso está no nosso modelo, e aconteceu de forma acentuada no regime militar. Não foram os únicos culpados, mas ajudaram muito nisso. Não pense que quem vivia nos anos 70 se sentia tranquilo. Eu estava lá e me lembro muito bem: quem viveu aqueles anos se sentia inseguro. Pois não comparavam sua situação com a de hoje em dia (por motivos óbvios), mas com a dos anos 40 e 50, que na opinião dos adultos daquele tempo era bem melhor.

No fim eu encerro essa sequencia de posts sobre a ditadura. O tema é doloroso demais, e a data já passou. Mas fica uma pergunta: o que tivemos de bom nesse regime que não poderia ter sido conseguido numa democracia?

terça-feira, 1 de abril de 2014

50 anos do golpe. Ou: ando meio mal humorado

Muitos amigos tem reclamado do meu mal humor nos últimos dias. E eles têm razão. Estou mal humorado mesmo. Mas me desculpem: não me faltam razões para isso.

Vivemos um regime horroroso, de exceção. Liberdades suprimidas. Meu pai e meu tio, dois operários da Companhia Siderúrgica Nacional, foram presos em 1970. Nunca pegaram em armas. Não eram de nenhuma organização. Mas foram presos. Meu tio, arrimo de família desde os 15 anos, desde a morte do pai, ia trabalhar, e ficava um carro do exército na esquina da casa dele, matando de medo e terror suas seis irmãs (incluindo minha mãe), minha avó viuva e seu irmão menor. Todos em pânico que a qualquer momento a casa fosse invadida. Uma família vivendo um cotidiano de pânico e terror. Essas pessoas são minha família. Os conheço. Todos honestos, que acreditam em Deus, defendiam a liberdade, eram trabalhadores, ainda tentando se recuperar da morte precoce do meu avô. E eram perseguidos e aterrorizados pelos malditos representantes da ditadura. Bandos de filhos da puta. Miseráveis. Cretinos. Inferno é pouco pra essa gente.

Nasci em Porto Alegre, em 1972. Meu pai, minha mãe e meu tio não aguentaram mais o clima irrespirável, e foram buscar vida nova no sul do Brasil. Cresci de forma relativamente tranquila. Mas minha primeira lembrança de política é das eleições de 1978. Ninguém falava nada. Apareciam as fotos dos candidatos no horário eleitoral, e uma voz grave dizia seus nomes. Nada mais. Mais três anos, em 1981, estava na casa da minha avó e vi um programa eleitoral do PT. Lula criticava Delfim Neto e Ernane Galveas, responsáveis pela falência do Brasil no ano seguinte. Tremi de medo por imaginar que naquele momento o exército invadiria os estúdios da TV e o mataria. Um sentimento que nenhuma criança no universo deveria ter tido. Mas que eu tive. Afinal, cresci na ditadura. Todo dia cantava o hino nacional antes de assistir aula. Quem não cantasse tinha de decorar um monte de versículos da Bíblia para poder entrar em sala de aula. Tinha crescido naquele ambiente.

É uma história horrível, da qual nem tive coragem de contar as piores partes. Mas só o que relatei já fez gente que nunca viu ditadura cair no choro. Pense que para os padrões das ditaduras latino-americanas, essa história é suave. Nossa ditadura fez coisas infinitamente piores com outras famílias, e nem vamos falar do que houve na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Paraguai, etc. O que contei é horrível mas é piada perto do que outros viveram naquela época. Nosso sofrimento é mais do que justo. Mas houve quem teve motivos ainda maiores para sentir.

Sinto muita raiva disso tudo. Um ressentimento que nunca vai passar. Ninguém no mundo tinha o direito de ter feito isso com minha família, que nunca fez mal a ninguém. Mas eu tenho uma grande diferença em relação ao que sinto na maioria dos que são contra isso também. Noto uma tendência a imputar toda a culpa aos militares. Aí eu discordo. Os militares prenderam, mataram, torturaram, estrupraram, fato. Mas e os outros?

E os empresários, que deram dinheiro e outros tipos de ajuda, lucraram fortunas incalculaveis com isso, e hoje posam de esteios da nação? E os veículos de imprensa, que hoje querem nos convencer que são baluartes da democracia mas que estavam ao lado dos que perpetravam essas barbaridades? E o filho da puta de classe média que achava bem feito que os comunistas (= qualquer um que eles não gostavam) saíssem de cena para sobrarem empregos? E os sindicalistas pelegos que foram colocados em lugares chave para impedir reclamações contra os enormes arrochos salariais do período e hoje estão aí, felizes da vida?

Por outro lado. E os favelados de hoje que são filhos do êxodo rural que a ditadura causou? E as gerações de crianças que tiveram uma educação de merda e foram submetidos em todos os seus anos formativos à ideia de que o que importava era ter religião e obedecer os donos do poder (sei exatamente como é, é a minha geração)? E as pessoas que perderam suas terras? E o monopolio dos meios de comunicação, que ainda nos causa tantos danos? E as pessoas que, movidas pela miséria, tiveram de abandonar a terra em que nasceram e em que seus ancestrais viviam, para virarem estatísticas da pobreza e violência urbana?

Minha família pagou um preço alto na ditadura. Outras pagaram ainda mais. Mas no fim das contas a maioria do Brasil se viu com uma conta altíssima nas mãos (nem falei da inflação e da dívida externa, isso fica pra outro dia). E os verdadeiros culpados estão todos aí. Não apenas os militares que fizeram o serviço sujo. Mas os que os apoiaram e se beneficiaram disso. Empresários, veículos de mídia, respeitaveis cidadãos de classe média cuja preocupação suprema era encher o tanque do seu fusca... todos aí. Enormes de gordos com a ditadura. Enquanto nosso país ainda paga por isso.


E ainda tem historiador formado, com doutorado e carreira consagrada, que acha que só guerrilheiros tiveram motivos para ter medo dos militares. O que de certa forma legitima a repressão ("só tinha medo quem aprontava") e deslegitima todas as outras experiências. Não é pra ficar mal humorado?