quinta-feira, 27 de março de 2014

Mujica e Cristina, Deus e Diabo


Estive recentemente na Argentina, onde me dei conta de uma coisa curiosa. No nosso Brasil em que direita e esquerda se peleiam por temas que sequer estavam na nossa agenda até recentemente (Ucrânia, por exemplo), há duas raras unanimidades. Não importa a coloração política, os brasileiros amam Pepe Mujica e detestam Cristina Kirchner. De um lado, o vovô bonzinho que prega uma vida simples, doa 90% do salário para a caridade e legalizou a maconha. De outro, a velha louca que arruinou seu país e só virou presidente por causa do marido.

Eu não diria que essas percepções são idiotas, mas de fato estão muito descontextualizadas. O caso uruguaio é mais gritante. Conheço pessoas que chamam Dilma de terrorista e comunista e morrem de amores por Mujica, ex-líder dos Tupamaros, um dos mais ousados grupos guerrilheiros do continente (na verdade ele nem foi preso pela ditadura, já estava em cana no ano anterior, em função dos atos de seu grupo, e ficou por lá até a redemocratização).

A idolatria brazuca por Mujica é descontextualizada porque passa por cima do contexto local. O Uruguai historicamente é um país mais laico e liberal nos costumes que seus vizinhos. Um amigo diz, sem estar longe da verdade, que o país é uma espécie de Holanda sul-americana. Sua política para as drogas, aborto e homossexualismo nunca enfrentou a cerrada oposição que algum presidente brasileiro sofreria da bancada evangélica, algo que não existe por lá. Claro que houve oposição, mas de uma natureza bem distinta do argumento bíblico. Colocar em prática essas políticas lá não tem nada a ver com o que aconteceria por aqui.

A questão da vida simples, do fusca velho e a doação do salário OBVIAMENTE tem muito mais a ver com um discurso moralista brazuca, que vê corrupção por todos os lados, do que com Mujica. Achar o presidente oriental o máximo por isso é dizer FORA SARNEY com outras palavras. O Uruguai é um país de 3 milhões de habitantes, em que não é raro cruzar com pessoas nacionalmente famosas nas ruas. Tudo é mais simples, e os políticos locais, na média, tem uma vida bem menos ostentatória e suntuosa que os nossos. Mujica é, no máximo, uma radicalização de um comportamento local.

Achar que Cristina é uma velha louca evidentemente tem a ver com o desconhecimento sobre a trajetória histórica da Argentina. Trata-se de um país que tem um longuíssimo histórico de radicalização política. Os argentinos não temem o confronto, e isso se manifesta em todos os aspectos da vida das pessoas. É um país altamente politizado, e o tema invade os debates sobre praticamente todos os temas. Cristina Kirchner é fruto legítimo da cultura política local.

E, claro, também há a campanha furiosa da imprensa brasileira contra ela por causa da Ley de Medios, que regulamenta o mercado de mídia. Com medo de uma lei dessas no Brasil, que feriria o monopólio que temos por aqui, nossa imprensa orquestrou um cerrado discurso de que a lei fere a liberdade de expressão e caracteriza uma ditadura. Quando nada mais é uma regulamentação. Você conhece algum setor não regulamentado que funcione bem para o consumidor? Está feliz com sua operadora de telefonia celular, por exemplo? Pois é...

Mujica e Cristina são basicamente versões locais do governo petista, em ambos os casos traduzidos pela cultura política local. Nada mais que isso. CFK soaria como louca na cultura política brasileira, marcada pela busca do consenso e em que tudo é negociável, mas nada como um peixe na cultura política argentina. Pode parecer radical ao ter enfrentado interesses de grupos de mídia que governo brasileiro algum enfrentaria, mas na cultura política confrontativa da Argentina isso não tem nada de excepcional.

Mujica não é um herói. Executou reformas liberais no campo do comportamento, um campo em que o Uruguai é historicamente mais liberal que o Brasil. Não me lembro, aliás, de ouvir de qualquer amigo defensor do governo, que sua vida simples é uma grande virtude. Isso chama muito mais a atenção dos brasileiros que dos uruguaios. Quem quiser gritar Fora Sarney ou Abaixo os Mensaleiros grite essas coisas, mas não grite Viva Mujica. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Um comentário:

  1. Bacana amigo, faz tempo que não entrava no seu blog desde à volta dele, perdoe-me pela falta, vou compartilhar esse também!

    Abraços!

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