sábado, 29 de março de 2014
Um historiador consagrado fala sobre a ditadura
Este é um post que racionalmente eu sei que não deveria fazer. Mas há momentos na vida em que você simplesmente sabe que tem de fazer determinadas coisas. Profissionalmente eu sei que isso só pode me prejudicar. Também sei que estou dando voz a alguém que neste momento deveria ser ignorado, por mais importante que seja em sua área. Mas me perdoem. Há limite para tudo nesta vida.
Um historiador absolutamente excelente, chamado Ronaldo Vainfas, postou em sua página do facebook opiniões aterrorizantes sobre o regime militar. Na opinião dele, os historiadores e a mídia produzem relatos lamentáveis sobre o regime em questão. Dão voz a pessoas que invetam terem sido perseguidos. Faz os crimes da ditadura parecerem pequenos perto do nazi-fascismo. Diz que não existia censura ("censura zero", segundo ele, que só existia entre os historiadores "esquerdizantes, ignorantes", todos professando um marxismo esquemático (ele não se dá ao trabalho de explicar o que é isso). Lamenta a "bolsa-ditadura" que muitos desfrutam hoje, segundo ele, destinadas a "falsos perseguidos". E por aí vai.
Começo lamentando o silêncio de meus colegas sobre isso. Não de todos, mas da maioria deles. É um historiador muito importante na área de Colônia (com toda a justiça), tem trabalhos ótimos na área de historiografia e metodologia. Mas me dói ver pessoas que respeito imensamente, muitos dos quais são meus amigos, silenciarem sobre o assunto. Em parte por corporativismo. Provavelmente também por medo de afrontar uma estrelinha rodeada de puxa-sacos dispostos a aplaudir qualquer lixo que ele diga.
Não é que eu tenha discordâncias ideológicas com o texto em questão. Fosse isso e este post nem existiria. Por mais que eu discorde, por mais que eu odeie os defensores do regime, eu acho que é possível debater. Eles acham que havia a ameaça real de um golpe comunista, e que estávamos em guerra contra essa ameaça. Discordo do início ao fim. Acho que estão completamente errados. Mas há possibilidades de conversar sobre o assunto em termos aceitáveis.
Mas o que o texto do historiador em questão propõe não é isso. Ele não discute minimamente o contexto. Não coloca em questão a violência do regime. O inimigo dele são os opositores do regime. Que ele não qualifica de comunistas, de violentos ou de equivocados. Ele simplesmente diz que eram pessoas que não tinham motivo para ter medo de nada, que inventam sofrimentos que viveram e que hoje se refastelam nas "bolsas-ditadura".
Bolsonaro também diz isso. Tudo bem. Mas no caso é um HISTORIADOR. E dos melhores que temos. Falando como se Vladimir Herzog não tivesse sido assassinado sem ser nenhum guerrilheiro, sendo apenas o diretor da TV Cultura. Argumentando que no auge das violações dos direitos humanos, todos pudessem ter certeza que bastava não ser militante da guerrilha que não havia nada a temer. O argumento é baseado apenas num item: ele era estudante da UFF na época e não viu motivo para sentir medo.
Caro Vainfas. Na minha família ninguém nunca pegou em armas. Eram trabalhadores tentando sobreviver. Mas vários enfrentaram a prisão ou a perseguição, inclusive o meu pai. Mas a questão nem é essa. Se tivessem pego em armas estariam certos também. Essa geração está lotada de pessoas que correram riscos enormes pelo que acreditavam. Ponto enorme, monumental para ela. Se você, como estudante, não teve medo, não ache que quem sentiu isso está mentindo. Morreu muita gente que não era guerrilheira: Herzog, Rubens Paiva e tantos outros. Você deve saber disso. Se sabe, é um cretino ao desenvolver esse argumento. Se não sabe, é um ignorante.
Vamos ao ponto seguinte. Segundo o historiador, não havia censura no Brasil. "censura zero", diz ele. Segundo Vainfas, a censura era privilégio da esquerda. Bem, estamos falando de uma ditadura de direita, num momento (ele fala dos anos 70) no qual a guerrilha de esquerda havia sido desbaratada, mas mesmo assim fala como se Stalin fosse o dono do poder de permitir o que poderia ser dito no Brasil. Melhor não discutir.
Chegamos ao dia de hoje. Na opinião do historiador, seus colegas e a imprensa fazem uma leitura lamentável do que aconteceu naqueles anos. E aí chegamos à grande questão. Há mais de 20 anos o Brasil é governado por pessoas que se criaram politicamente na oposição à ditadura: Itamar, FHC, Lula e Dilma. Todos tinham (e têm) defensores do regime como aliados, e nunca tiveram coragem de meter de fato o dedo na ferida.
Mas a questão é que, ao menos entre historiadores e jornalistas, reina o consenso de que a ditadura foi um lixo. Matou, torturou e exilou pessoas. Condenou inumeráveis famílias ao sofrimento. O professor Vainfas fica enojado com isso. Acha que é juiz do sofrimento alheio. Age como se tivesse o poder divino de decidir quem tem o direito de se considerar atacado. Contraria barbaramente, sem nenhuma cerimônia, algo que aprendemos no primeiro semestre de graduação: historiadores não são juízes do passado. Com o aplauso dos puxa-sacos e a conivência silenciosa dos que são progressistas mas não querem problemas com um historiador conhecido. "Vai que um dia eu preciso dele" usado como justificativa para o silêncio frente a um tema tão caro.
O Brasil segue tendo milhões de problemas e defeitos. Mas ter tanta gente rejeitando a ditadura NÃO é um deles. Por mais triste que seja, que o professor Vainfas se junte a gente como Danilo Gentili e Rafinha Bastos. O planeta do "posso falar merda a vontade, se me questionarem digo que estou indo contra a ideologia oficial e pronto". Que não tenhamos mais espaço para gente assim, para além dos minúsculos círculos dos reaças empedernidos.
quinta-feira, 27 de março de 2014
Mujica e Cristina, Deus e Diabo
Estive recentemente na Argentina, onde me dei conta de uma coisa curiosa. No nosso Brasil em que direita e esquerda se peleiam por temas que sequer estavam na nossa agenda até recentemente (Ucrânia, por exemplo), há duas raras unanimidades. Não importa a coloração política, os brasileiros amam Pepe Mujica e detestam Cristina Kirchner. De um lado, o vovô bonzinho que prega uma vida simples, doa 90% do salário para a caridade e legalizou a maconha. De outro, a velha louca que arruinou seu país e só virou presidente por causa do marido.
Eu não diria que essas percepções são idiotas, mas de fato estão muito descontextualizadas. O caso uruguaio é mais gritante. Conheço pessoas que chamam Dilma de terrorista e comunista e morrem de amores por Mujica, ex-líder dos Tupamaros, um dos mais ousados grupos guerrilheiros do continente (na verdade ele nem foi preso pela ditadura, já estava em cana no ano anterior, em função dos atos de seu grupo, e ficou por lá até a redemocratização).
A idolatria brazuca por Mujica é descontextualizada porque passa por cima do contexto local. O Uruguai historicamente é um país mais laico e liberal nos costumes que seus vizinhos. Um amigo diz, sem estar longe da verdade, que o país é uma espécie de Holanda sul-americana. Sua política para as drogas, aborto e homossexualismo nunca enfrentou a cerrada oposição que algum presidente brasileiro sofreria da bancada evangélica, algo que não existe por lá. Claro que houve oposição, mas de uma natureza bem distinta do argumento bíblico. Colocar em prática essas políticas lá não tem nada a ver com o que aconteceria por aqui.
A questão da vida simples, do fusca velho e a doação do salário OBVIAMENTE tem muito mais a ver com um discurso moralista brazuca, que vê corrupção por todos os lados, do que com Mujica. Achar o presidente oriental o máximo por isso é dizer FORA SARNEY com outras palavras. O Uruguai é um país de 3 milhões de habitantes, em que não é raro cruzar com pessoas nacionalmente famosas nas ruas. Tudo é mais simples, e os políticos locais, na média, tem uma vida bem menos ostentatória e suntuosa que os nossos. Mujica é, no máximo, uma radicalização de um comportamento local.
Achar que Cristina é uma velha louca evidentemente tem a ver com o desconhecimento sobre a trajetória histórica da Argentina. Trata-se de um país que tem um longuíssimo histórico de radicalização política. Os argentinos não temem o confronto, e isso se manifesta em todos os aspectos da vida das pessoas. É um país altamente politizado, e o tema invade os debates sobre praticamente todos os temas. Cristina Kirchner é fruto legítimo da cultura política local.
E, claro, também há a campanha furiosa da imprensa brasileira contra ela por causa da Ley de Medios, que regulamenta o mercado de mídia. Com medo de uma lei dessas no Brasil, que feriria o monopólio que temos por aqui, nossa imprensa orquestrou um cerrado discurso de que a lei fere a liberdade de expressão e caracteriza uma ditadura. Quando nada mais é uma regulamentação. Você conhece algum setor não regulamentado que funcione bem para o consumidor? Está feliz com sua operadora de telefonia celular, por exemplo? Pois é...
Mujica e Cristina são basicamente versões locais do governo petista, em ambos os casos traduzidos pela cultura política local. Nada mais que isso. CFK soaria como louca na cultura política brasileira, marcada pela busca do consenso e em que tudo é negociável, mas nada como um peixe na cultura política argentina. Pode parecer radical ao ter enfrentado interesses de grupos de mídia que governo brasileiro algum enfrentaria, mas na cultura política confrontativa da Argentina isso não tem nada de excepcional.
Mujica não é um herói. Executou reformas liberais no campo do comportamento, um campo em que o Uruguai é historicamente mais liberal que o Brasil. Não me lembro, aliás, de ouvir de qualquer amigo defensor do governo, que sua vida simples é uma grande virtude. Isso chama muito mais a atenção dos brasileiros que dos uruguaios. Quem quiser gritar Fora Sarney ou Abaixo os Mensaleiros grite essas coisas, mas não grite Viva Mujica. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
segunda-feira, 10 de março de 2014
A oposição que o governo AMA
Nos anos 1980 eu vivia no interior do estado do Rio de Janeiro. Era uma época politicamente muito agitada. A ditadura estava em seus últimos suspiros, morreu, veio o pavoroso governo Sarney. Mal nos aguentávamos de vontade de finalmente votar para presidente. E no campo da esquerda o que era união contra a ditadura começou a se transformar em aberta divisão na luta para construir uma candidatura vitoriosa em 1989.
Eu vivia em um viveiro brizolista. Se o estado do Rio votou maciçamente em Brizola em 1989 (coisa de 50% dos votos válidos), em Volta Redonda era ainda pior. Tínhamos um sindicato dos metalúrgicos fortíssimo, nacionalmente conhecido pela sua combatividade, e comandado pelo deputado Juarez Antunes do PDT. Passávamos raiva de ver o pessoal do PT criticando o brizolismo pelo personalismo e pela facilidade em tecer alianças questionáveis (o que, pensando bem, é engraçado quando vemos onde o PT foi parar).
Nossa resposta era colar na testa do PT o lema "a esquerda que a direita gosta". O argumento era o seguinte. O PT era um partido sem viabilidade eleitoral. Mas com seu discurso radical, servia para unir a direita contra ele. Ou seja: era um partido que nunca ganharia eleições, e só servia como espantalho para a grande mídia assustar o eleitorado, empurrando-o para os conservadores (a longo prazo, o argumento se mostrou tão falho como o anterior. a história é a rainha da ironia).
Hoje temos a oposição que o governo gosta. Na verdade é mais do que isso. O Brasil tem uma oposição inteira que parece trabalhar pela reeleição de Dilma. Afinal, pensemos. Nas últimas três eleições os candidatos do PT tiveram algo como 45% dos votos no 1o turno e 55% no 2o. Assim, é óbvio que a oposição não tem escapatória: precisa roubar votos que vêm sido dados ao governo desde 2002. Matemática básica.
Mas o que a oposição faz para conseguir isso? Nada. Segue batendo nos mesmos temas de sempre: corrupção, necessidade de diminuir o tamanho do Estado, críticas ao que vê como demagogia do governo, associar o PT à Cuba e ao comunismo, coisas assim. Ou seja: o mesmo que não colou em 2002, 2006 e 2010 será oferecido novamente. A única mudança é que o tom é cada vez mais nervoso e histérico. O que adiantaria muito se cada pessoa pudesse votar quantas vezes quisesse, a depender de sua vontade. Aí sim: os eleitores da oposição, cada dia mais indignados com essa avalanche de ódio, votariam 1 milhão de vezes cada um e Aécio seria eleito. Infelizmente para eles, não é assim.
(parêntesis: essa escalada histérica no debate político não é privilégio da oposição. o governo faz exatamente o mesmo. falei da oposição no parágrafo anterior porque: 1) ela é o tema do post; 2) é ela quem precisa encontrar um novo discurso; o governo já tem o dele, o mesmo que funcionou nas últimas três disputas)
Na verdade ninguém resumiu melhor o problema da oposição do que um velho amigo meu, tucano desde que o PSDB existe: "enquanto a oposição fizer campanha pensando em 1% da população, o PT não vai sair do poder". É bem por aí. Moro em Pernambuco, um estado que deu a Dilma 77% dos votos no 2o turno em 2010. E não vejo nenhum dos temas que a oposição tanto ama explorar sequer fazer cócegas no eleitorado do estado. Simplesmente não diz respeito a eles.
Corrupção? Qualquer idiota sabe que todos os partidos são iguais nesse quesito. Impostos altos? Em um país com tanta pobreza, quem liga para isso, se essas pessoas que mais precisam consideram que suas vidas melhoraram neste governo? Comunismo? Fora os leitores da Veja, quem liga pra isso em 2014? Diminuir o tamanho do Estado? Bem, boa sorte em convencer as classes D e E de que isso é bom para elas.
Um par de meses atrás ouvi um tucano dizendo: "o Haddad aumentou o IPTU dos ricos, e os pobres é que pagam. as lojas dos bairros ricos estão demitindo seus funcionários". Numa frase, a explicitação total da distância entre o discurso oposicionista e o Brasil. Afinal: 1) presume que a política fiscal da maior cidade do país deva ser guiada pelos interesses dos lojistas de classe alta; 2) seguindo o raciocínio, se nas áreas onde o IPTU subiu houve demissões (claro que não há dados dizendo isso, mas sigamos o raciocínio), então nas áreas pobres onde o IPTU diminuiu deveria haver contratações que as compensassem, certo? Não, na cabeça deles pobre não contrata. Só existem empreendedores nos Jardins e a função do governo é ajudá-los para que o Brasil cresça. Boa sorte tentando convencer moradores da periferia das grandes cidades e dos rincões do país de que a vida é assim.
PS: me antecipo dizendo que este não é um post governista falando mal da oposição. se eu fosse tucano o escreveria sem mudar uma vírgula. trato aqui da estratégia e da postura da oposição. e, como democrata que sou (e pra mim isso está acima de preferências político-partidárias), lamento que seja assim. Primeiro porque quanto mais o governo ganhar eleições com facilidade, menos se sentirá cobrado pela sociedade. Em segundo, porque democracia precisa de oposição e alternância de poder. Mas com essa oposição que está aí, esqueçamos isso tudo.
Eu vivia em um viveiro brizolista. Se o estado do Rio votou maciçamente em Brizola em 1989 (coisa de 50% dos votos válidos), em Volta Redonda era ainda pior. Tínhamos um sindicato dos metalúrgicos fortíssimo, nacionalmente conhecido pela sua combatividade, e comandado pelo deputado Juarez Antunes do PDT. Passávamos raiva de ver o pessoal do PT criticando o brizolismo pelo personalismo e pela facilidade em tecer alianças questionáveis (o que, pensando bem, é engraçado quando vemos onde o PT foi parar).
Nossa resposta era colar na testa do PT o lema "a esquerda que a direita gosta". O argumento era o seguinte. O PT era um partido sem viabilidade eleitoral. Mas com seu discurso radical, servia para unir a direita contra ele. Ou seja: era um partido que nunca ganharia eleições, e só servia como espantalho para a grande mídia assustar o eleitorado, empurrando-o para os conservadores (a longo prazo, o argumento se mostrou tão falho como o anterior. a história é a rainha da ironia).
Hoje temos a oposição que o governo gosta. Na verdade é mais do que isso. O Brasil tem uma oposição inteira que parece trabalhar pela reeleição de Dilma. Afinal, pensemos. Nas últimas três eleições os candidatos do PT tiveram algo como 45% dos votos no 1o turno e 55% no 2o. Assim, é óbvio que a oposição não tem escapatória: precisa roubar votos que vêm sido dados ao governo desde 2002. Matemática básica.
Mas o que a oposição faz para conseguir isso? Nada. Segue batendo nos mesmos temas de sempre: corrupção, necessidade de diminuir o tamanho do Estado, críticas ao que vê como demagogia do governo, associar o PT à Cuba e ao comunismo, coisas assim. Ou seja: o mesmo que não colou em 2002, 2006 e 2010 será oferecido novamente. A única mudança é que o tom é cada vez mais nervoso e histérico. O que adiantaria muito se cada pessoa pudesse votar quantas vezes quisesse, a depender de sua vontade. Aí sim: os eleitores da oposição, cada dia mais indignados com essa avalanche de ódio, votariam 1 milhão de vezes cada um e Aécio seria eleito. Infelizmente para eles, não é assim.
(parêntesis: essa escalada histérica no debate político não é privilégio da oposição. o governo faz exatamente o mesmo. falei da oposição no parágrafo anterior porque: 1) ela é o tema do post; 2) é ela quem precisa encontrar um novo discurso; o governo já tem o dele, o mesmo que funcionou nas últimas três disputas)
Na verdade ninguém resumiu melhor o problema da oposição do que um velho amigo meu, tucano desde que o PSDB existe: "enquanto a oposição fizer campanha pensando em 1% da população, o PT não vai sair do poder". É bem por aí. Moro em Pernambuco, um estado que deu a Dilma 77% dos votos no 2o turno em 2010. E não vejo nenhum dos temas que a oposição tanto ama explorar sequer fazer cócegas no eleitorado do estado. Simplesmente não diz respeito a eles.
Corrupção? Qualquer idiota sabe que todos os partidos são iguais nesse quesito. Impostos altos? Em um país com tanta pobreza, quem liga para isso, se essas pessoas que mais precisam consideram que suas vidas melhoraram neste governo? Comunismo? Fora os leitores da Veja, quem liga pra isso em 2014? Diminuir o tamanho do Estado? Bem, boa sorte em convencer as classes D e E de que isso é bom para elas.
Um par de meses atrás ouvi um tucano dizendo: "o Haddad aumentou o IPTU dos ricos, e os pobres é que pagam. as lojas dos bairros ricos estão demitindo seus funcionários". Numa frase, a explicitação total da distância entre o discurso oposicionista e o Brasil. Afinal: 1) presume que a política fiscal da maior cidade do país deva ser guiada pelos interesses dos lojistas de classe alta; 2) seguindo o raciocínio, se nas áreas onde o IPTU subiu houve demissões (claro que não há dados dizendo isso, mas sigamos o raciocínio), então nas áreas pobres onde o IPTU diminuiu deveria haver contratações que as compensassem, certo? Não, na cabeça deles pobre não contrata. Só existem empreendedores nos Jardins e a função do governo é ajudá-los para que o Brasil cresça. Boa sorte tentando convencer moradores da periferia das grandes cidades e dos rincões do país de que a vida é assim.
PS: me antecipo dizendo que este não é um post governista falando mal da oposição. se eu fosse tucano o escreveria sem mudar uma vírgula. trato aqui da estratégia e da postura da oposição. e, como democrata que sou (e pra mim isso está acima de preferências político-partidárias), lamento que seja assim. Primeiro porque quanto mais o governo ganhar eleições com facilidade, menos se sentirá cobrado pela sociedade. Em segundo, porque democracia precisa de oposição e alternância de poder. Mas com essa oposição que está aí, esqueçamos isso tudo.
segunda-feira, 3 de março de 2014
Agora é a Ucrânia
A bola da vez é a Ucrânia. Depois de a Venezuela passar um tempo no centro das atenções de todo mundo, despertando opiniões definitivas e absolutamente radicalizadas da parte de um bando de gente que não sabe nada sobre o assunto (inclusive eu), agora a bola está com os ucranianos. E se a gente não sabe grande coisa sobre a Venezuela, imagine a Ucrânia. Mas as opiniões definitivas seguem aí: na TV, nos jornais, nos blogs, no facebook...
Pelo que vejo, a opinião predominante é favorável à derrubada do governo. O que em si já é tristemente surpreendente. Mostra o quanto a democracia não é levada muito a sério pela humanidade. Por que diabos tanta gente comemora a derrubada de um governo de um país distante e desconhecido, com língua inacessível e sobre o qual se sabe tão pouco? Só isso já me cheira mal. Mas enfim, vamos tentar pensar com alguma lógica, já que não temos muitas informações.
Pra começar, é notório que a figura detestável de Vladimir Putin funciona como um grande espantalho nos argumentos favoráveis à derrubada do governo. Não conhecemos o governo anterior, mas ele era apoiado por Putin. Que é um cretino. Logo, o governo deve ser uma droga. Melhor comemorar a vitória de um movimento com apoio norte-americano e europeu, pois são governos democráticos. Mas será que é assim que funciona?
LÓGICO que não. Em 1964 um governo democraticamente eleito no Brasil foi derrubado para ser substituído por uma tenebrosa ditadura. Com apoio dos EUA, um país democrático, e contra os desejos da URSS, uma ditadura. O mesmo aconteceu no Chile em 1973. A contradição só existe para quem acha que países formulam políticas externas a partir de boas intenções. Cada um apóia o que vai lhe favorecer. Imagino que pouco importa a Putin que diabos seja o governo ucraniano, desde que atenda a seus interesses. O mesmo valendo para Obama e a União Européia.
A lógica do espantalho fica definitivamente comprometida quando nos lembramos de algo absolutamente óbvio. Putin não era o governante da Ucrânia. Quem governava o país era um sujeito sobre o qual nada sabemos, e tenho certeza que nem o nome dele você sabe (eu não sei). Quem governa agora não é Obama nem Merkel, mas outro sujeito sobre o qual nem eu nem você sabemos nada (não menos importante: você acha mesmo que Obama e Merkel são "selos de qualidade"?). De novo vale lembrar: em 1964 o Brasil não saiu das mãos de Kruschev para as de Lyndon Johnson, mas de um presidente constitucional para um ditador.
Nisso tudo entra mais um componente muito estranho. A ideia de que Putin é o único agindo em interesse próprio na história. Ora, claro que ele está agindo no interesse russo e que se dane pra ele como ficarão os ucranianos. Mas sério, amigos: vocês acham MESMO que EUA e UE estão envolvidos nisso por motivos diferentes dos dele? Que Merkel e Obama se importam minimamente com a Ucrania? Claro que eles estão no mesmo jogo de Putin. Defendendo o que acreditam ser seus interesses.
E há um ponto a mais, que chega a ser surreal: os resquícios de guerra fria envolvidos na situação. Afinal, EUA e Russia estão de lados opostos novamente. Aí é como se um piloto automático fosse acionado, e a direita entrasse um clima "1964 forever", e apoiasse algo que mal sabe o que é só pra impedir que os russos (aqueles traiçoeiros que comem criancinhas) botassem as mãos no tesouro.
Não sabemos nada sobre a Ucrânia, é um país distante, com língua que ninguém que conheço saiba falar, com uma história peculiar, cenário político bastante complexo, divisões étnicas e linguísticas evidentes. Não dá pra ficar formando opiniões definitivas sobre o assunto a partir de algum "oráculo" que dá entrevistas como "especialista" no assunto mas que pode estar a serviço de interesses que desconhecemos. Não dá pra entrar num clima de Fla-Flu num cenário tão multifacetado a partir de tão poucas informações.
Quem quiser arriscar fique a vontade. Mas saiba que pode se dar conta que ficou superfeliz por comemorar um golpe de estado que colocou fascistas no poder. Ou que defende um governo de tons autoritários. Os riscos são muitos para quem entende, ainda mais para nós, que não somos do ramo. Melhor observar atentamente, ter cautela e resistir às certezas.
sábado, 1 de março de 2014
Justiça com as próprias mãos: quem é o ingênuo nessa história?
Se você é contra a lógica do "bandido bom é bandido morto", certamente está cansado de ser chamado de ingênuo. Os defensores do "olho por olho, dente por dente", cada dia mais visíveis, acham que a gente defende "direitos humanos para bandidos", perguntam, cheios de arrogância, "onde estão os defensores dos direitos humanos quando um trabalhador é assassinado?" e terminam concluindo que somos pobres ingênuos.
Trata-se de um discurso muito fácil: sempre existiu e se cristalizou no filme Tropa de Elite, que nos pinta como um bando de riquinhos retardados que não sabem o que é a "vida real" (seja lá o que isso signifique). Bem, não é que eu defenda "direitos humanos para bandidos". Eu sou um democrata. Acho que todos tem os mesmos direitos. Isso inclui os criminosos. Se vivermos numa sociedade que acha que a lei não é importante, estamos à beira do caos. E é exatamente o que essas pessoas querem. Que a lei só valha para alguns.
Mas claro que essas pessoas não pensam em nada disso. Elas são movidas por um desejo absolutamente primitivo e irracional de vingança. Quem se lembra da lei quando o sangue ferve e você só quer que o outro pague na mesma moeda pelo que fez? Eu entendo. Tive um primo maravilhoso que nunca fez mal a ninguém assassinado barbaramente às vésperas de completar 24 anos, com uma vida toda pela frente. Passei semanas tomado pelo desejo de matar os caras. Até me dar conta: eu podia matar um milhão de pessoas. Meu primo não ia voltar. O desejo de vingança passou.
Mas aceitemos, apenas para efeito de raciocínio, essa lógica. Ok, Bolsonaro se elege presidente e garante que a justiça nunca recairá sobre aqueles que matarem criminosos. O que aconteceria? Bem, eu não ia matar ninguém. Nem você. A vida é dura demais, trabalhamos muito, temos gente pra cuidar, mal conseguimos passar algum tempo com as pessoas que amamos. Não íamos sair por aí trocando tiros com criminosos nas nossas horas vagas, certo?
E quem faria isso? Pessoas acostumadas a isso. Policiais desonestos, outros criminosos (exatamente o tipo de gente que amarrou aquele rapaz no poste). Rapidamente se formariam grupos dessas pessoas, especializados em matar "bandidos". Todo esse pessoal que gosta disso aplaudiria, acharia o máximo. Mas claro que essas pessoas não fariam isso pelo bem da sociedade. Fariam para ter alguma vantagem. Matariam o cara que estuprou uma garota de 12 anos, seriam idolatrados e correriam uma sacolinha "para ajudar a gente a garantir a segurança de voces".
Aí vocês já sabem onde isso termina. A matança cresceria, os critérios pareceriam menos e menos razoáveis, até chegar ao ponto em que até aquela apresentadora do SBT desconfiaria profundamente que na verdade os caras estão matando por interesse próprio, incluindo pessoas de ficha impecável. Mas você teria de continuar dando dinheiro assim mesmo, com medo de ser o próximo. Os caras ficariam mais e mais poderosos, diversificariam seus negócios e virariam mafiosos que reinariam em suas comunidades.
Em suma, meu simpático amigo defensor do assassinato de "bandidos perigosos", você está simplesmente dando o primeiro passo para ter uma milícia controlando a sua vida. Quem é o ingênuo agora?
Trata-se de um discurso muito fácil: sempre existiu e se cristalizou no filme Tropa de Elite, que nos pinta como um bando de riquinhos retardados que não sabem o que é a "vida real" (seja lá o que isso signifique). Bem, não é que eu defenda "direitos humanos para bandidos". Eu sou um democrata. Acho que todos tem os mesmos direitos. Isso inclui os criminosos. Se vivermos numa sociedade que acha que a lei não é importante, estamos à beira do caos. E é exatamente o que essas pessoas querem. Que a lei só valha para alguns.
Mas claro que essas pessoas não pensam em nada disso. Elas são movidas por um desejo absolutamente primitivo e irracional de vingança. Quem se lembra da lei quando o sangue ferve e você só quer que o outro pague na mesma moeda pelo que fez? Eu entendo. Tive um primo maravilhoso que nunca fez mal a ninguém assassinado barbaramente às vésperas de completar 24 anos, com uma vida toda pela frente. Passei semanas tomado pelo desejo de matar os caras. Até me dar conta: eu podia matar um milhão de pessoas. Meu primo não ia voltar. O desejo de vingança passou.
Mas aceitemos, apenas para efeito de raciocínio, essa lógica. Ok, Bolsonaro se elege presidente e garante que a justiça nunca recairá sobre aqueles que matarem criminosos. O que aconteceria? Bem, eu não ia matar ninguém. Nem você. A vida é dura demais, trabalhamos muito, temos gente pra cuidar, mal conseguimos passar algum tempo com as pessoas que amamos. Não íamos sair por aí trocando tiros com criminosos nas nossas horas vagas, certo?
E quem faria isso? Pessoas acostumadas a isso. Policiais desonestos, outros criminosos (exatamente o tipo de gente que amarrou aquele rapaz no poste). Rapidamente se formariam grupos dessas pessoas, especializados em matar "bandidos". Todo esse pessoal que gosta disso aplaudiria, acharia o máximo. Mas claro que essas pessoas não fariam isso pelo bem da sociedade. Fariam para ter alguma vantagem. Matariam o cara que estuprou uma garota de 12 anos, seriam idolatrados e correriam uma sacolinha "para ajudar a gente a garantir a segurança de voces".
Aí vocês já sabem onde isso termina. A matança cresceria, os critérios pareceriam menos e menos razoáveis, até chegar ao ponto em que até aquela apresentadora do SBT desconfiaria profundamente que na verdade os caras estão matando por interesse próprio, incluindo pessoas de ficha impecável. Mas você teria de continuar dando dinheiro assim mesmo, com medo de ser o próximo. Os caras ficariam mais e mais poderosos, diversificariam seus negócios e virariam mafiosos que reinariam em suas comunidades.
Em suma, meu simpático amigo defensor do assassinato de "bandidos perigosos", você está simplesmente dando o primeiro passo para ter uma milícia controlando a sua vida. Quem é o ingênuo agora?
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